Sunday 6 October 2024

Das silenciosas maiorias. Do medo e da liberdade.


Mais uma vez, atravessaremos o Atlântico, só para ficarmos conscientes do quão perto estamos e porque é que devemos prestar atenção ao que ali se passa.

Em Julho, escrevi um artigo para o jornal Público sobre o que se tornou numa situação extrema de proibição de livros nas bibliotecas escolares e públicas dos Estados Unidos. Escrevi na altura que os livros contestados tratam normalmente de questões LGBTQI+, raça e racismo, escravatura, genocídio de povos indígenas, religião. Existem também inúmeras exigências para que os livros sobre a puberdade sejam transferidos da secção juvenil para a secção de adultos... Situações semelhantes estão a ocorrer no Brasil e noutros países, sendo mais ou menos noticiadas pelos meios de comunicação mainstream.

Um relatório recente sobre a situação nos EUA, publicado pela Knight Foundation, mostrou alguns resultados muito relevantes: 78% das pessoas confiam nas suas escolas públicas para selecionar materiais apropriados; revelou também que “a maioria dos americanos se sente informada sobre os esforços para proibir livros nas escolas, mas apenas 3% dos inquiridos disseram que se envolveram pessoalmente na questão - com 2% a envolverem-se no sentido de defender o acesso aos livros e 1% a procurar restringir o acesso.” (ler mais). O que é que isto nos diz? Muitas pessoas estão informadas sobre o assunto, algumas, poucas, envolvem-se na defesa da liberdade de ler num país democrático, enquanto uma minoria vocal, muitas vezes violenta, tem permissão para decidir o que os outros podem ler e onde. Soa familiar?

Nesse mesmo artigo para o Público, partilhei a minha preocupação relativamente às primeiras tentativas de proibição de livros em Portugal e o comunicado de editoras, livrarias e associações (subscrito, entretanto, por mais de 3000 pessoas) que denunciava “os repetidos ataques de elementos da Habeas Corpus e do partido de extrema-direita Ergue-te a escritoras de livros infantojuvenis e a bibliotecários, à leitura tranquila numa Biblioteca pública e a apresentações de livros e debates.” O comunicado refere-se ainda a estes agressores invadirem e desrespeitarem a privacidade e a vida familiar das escritoras, procurando “criar um clima de medo e insegurança, [intimidando] com berros e insultos, calúnias e mentiras.“ No passado mês de Agosto, o Habeas Corpus apresentou uma lista de “terroristas LGBTQI+”, que é actualizada todos os meses (fui informada ontem que estou incluída na lista de Outubro). Tendo sido acusados ​​ de incitar ao ódio e à violência contra as pessoas na lista, fazem agora um disclaimer: “Estas pessoas não são terroristas; estas pessoas não devem ser alvo de qualquer forma de violência. (…) Estas pessoas promovem o homossexualismo e o transexualismo junto das crianças e dos jovens.” Afirmam ainda que este “movimento” é financiado pelo dinheiro dos contribuintes (Gosto particularmente deste argumento... Quem são os contribuintes? E o que querem?)

Até agora, no nosso espectro político, apenas o Bloco de Esquerda questionou repetidamente o governo e as autoridades sobre a actuação deste grupo e a tolerância para com ele. Foram apresentadas várias queixas formais pelas vítimas, mas não tenho conhecimento de nenhuma acção concreta no seu seguimento. Mais recentemente, o Partido Socialista também questionou o governo sobre a permissão dada a este grupo para espalhar o ódio. Mais uma vez, não tenho conhecimento de quaisquer respostas.

Estamos agora a entrar num novo capítulo desta história. Uma situação não inédita, nem surpreendente, que já se está a desenvolver no outro lado do Atlântico e provavelmente também noutros lugares: chama-se “censura suave”.

Embora existam dados sólidos sobre os pedidos de proibição de livros, um artigo recente no NBC News recorda-nos que “O que os relatórios não quantificam é o dano colateral da proibição de livros, ou a chamada censura suave, quando um título é eliminado, removido ou condicionado antes de ser explicitamente proibido, por receio de reações adversas.” George M. Johnson, cujo primeiro livro, “All Boys Aren’t Blue”, é um dos livros mais proibidos nos EUA, disse que isto “se aplica fortemente nas escolas e nas bibliotecas”, onde os livros nem sequer são encomendados. Não podemos identificar e contabilizar livros que não são encomendados, autores que não são convidados a feiras, escolas ou bibliotecas para falarem sobre o seu trabalho. Soa familiar? Talvez não, mas é exactamente o que está a acontecer também em Portugal.

E isto deve preocupar-nos a todos: pais, professores, profissionais da cultura, escritores, editores, juízes, políticos, a polícia, todos. Percorrendo o país nestes últimos dias vi muitos municípios assinalarem com orgulho o 50º aniversário da Revolução dos Cravos. Sentimo-nos realmente orgulhosos quando um pequeno grupo de agressores barulhentos impõe os seus pontos de vista a todos os outros? Sentimo-nos orgulhosos quando crianças sentem medo pela segurança dos seus pais e pela sua própria? Sentimo-nos orgulhosos por fazer parte da maioria silenciosa? E sentimos orgulho em ensinar o medo e o silêncio às gerações mais novas para “evitar problemas”? Abril é isso?

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