Thursday 17 October 2024

Contra os passes cultura


Casa com telhado mas sem alicerces?
foi um post que escrevi em 2011 sobre a iniciativa do governo brasileiro de proporcionar o “Vale Cultura” a pessoas com baixos rendimentos. É um caso abordo ainda frequentemente em formações e debates, pois nunca me convenceu de que estava a abordar os verdadeiros problemas. As perguntas que os cidadãos fizeram na altura foram reveladoras: Podemos comprar videojogos com isto? Podemos pagar a TV Cabo? Uma senhora entrevistada na altura disse que achou muito bem, pois nunca tinha “ousado” ir ao teatro municipal do Rio de Janeiro (“É tão grande, tão bonito”, disse, “pensei, não é para mim”…). Mais importante ainda, houve pessoas que fizeram as perguntas difíceis: Como é que o vamos gastar? Não há livraria – cinema – museu – teatro onde vivemos.

Depois disso, escrevi repetidamente tanto sobre passes cultura, como sobre políticas de entrada gratuita (ver no final deste post). Em 2013, voltei a escrever sobre a iniciativa brasileira, que inspirou acções semelhantes dos EUA ao Líbano. E novamente em 2016, quando o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, anunciou que o passe cultura (um subsídio de €500 anunciado em 2015 para cada jovem com 18 anos gastar em produtos culturais) era uma forma de combater o extremismo islâmico… Alguns anos mais tarde, uma colega que participou numa conferência em Nápoles disse-me que os jovens vendiam o seu passe para comprar outras coisas. The Art Newspaper confirma agora: “O programa também foi ofuscado por um prolífico mercado negro, com os beneficiários a trocarem os seus passes por telemóveis, computadores ou dinheiro.” O jornal refere ainda que, na altura em que o programa foi anunciado, 60% dos jovens elegíveis inscreveram-se, mas pouco antes do prazo acabar, apenas 6% tinham encontrado formas de gastar o dinheiro. Além disso, “a maioria das cidades italianas não tem teatro, sala de concertos, cinema ou livraria para utilizar o passe”.

Mas – apesar de todas as evidências de que estas iniciativas simplesmente permitem “mais do mesmo”, mas não “diversidade – os políticos adoram anunciar entradas gratuitas e passes cultura; um enorme passo, na sua opinião (e na opinião de muitos profissionais da cultura) em direcção à “democratização da cultura”. Nunca duvidei da importância da barreira financeira para muitas pessoas, apenas nunca pensei que os passes-subsídios-bónus culturais fossem a resposta.

Agora, The Art Newspaper traz-nos mais sobre isto. O passe cultura foi a única proposta de política cultural de Emmanuel Macron quando foi eleito em 2017, lê-se no artigo. “O custo aumentou para 260 milhões de euros por ano, incluindo 50 milhões de euros para actividades nas escolas. Tornou-se a despesa mais elevada do Ministério da Cultura, equivalendo ao dobro do apoio público concedido ao Museu do Louvre.” E, em Abril, o Presidente francês afirmou que o programa tinha tanto sucesso no seu país que deveria ser alargado a toda a Europa.

Nos países onde não existem estudos e dados, os políticos podem afirmar o que lhes apetecer. Em França, o órgão de auditoria do Ministério da Cultura concluiu que “é impossível demonstrar que o programa cumpriu a sua missão de serviço público alargando e diversificando as práticas culturais”. De facto, o relatório, publicado em Setembro, revela que “80% dos jovens de 18 anos beneficiaram do passe. Em dois anos e meio, 71% dos 24 milhões de utilizadores compraram livros, sendo que metade deles comprou Mangá e banda desenhada. No geral, o sistema beneficia principalmente os adolescentes de famílias instruídas e ricas, que já têm acesso a banda desenhada e filmes.”

Em 2011, escrevi que “Não me parece realista continuarmos a usar a gratuitidade como um argumento em prol da democracia e da igualdade”. Mas fazemo-lo, ainda em 2024. E esta é uma forma de os políticos e os profissionais da cultura ignorarem as verdadeiras questões relativas ao acesso à participação cultural; e a nossa irrelevância. Não sou contra os passes cultura, na verdade. Sou contra os falsos argumentos que os sustentam; sou contra os seus objectivos desonestos.

 

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