Não é fácil ler o livro de Ece Temelkuran “How to lose a country: The seven steps from democracy to dictatorship”. A escrita incisiva da jornalista turca torna-se por vezes assustadora, os seus testemunhos pesam muito no coração. Tive de fazer uma pausa de vez em quando. Todas as nossas perguntas, dúvidas, preocupações, frustrações sobre o que está a acontecer à nossa volta, estão neste livro. O que alguns de nós estamos a viver pela primeira vez já aconteceu antes e as táticas nunca foram diferentes. Não só a ascensão de Erdogan, a votação do Brexit, a eleição de Trump são colocadas sob o microscópio, mas Temelkuran tem uma visão clara de até onde precisamos de recuar para encontrar as origens de acontecimentos recentes e actuais e perceber que não fizemos/fazemos nada, embora a forma como se desenvolveram seja, nesta altura, muito previsível. Tão previsível como sete passos.
Ao olharmos com incredulidade para o apoio inabalável a perigosos-autocratas-outrora-
ridículos, há coisas em que precisamos de pensar. Temelkuran escreve:
“Para muitos dos que têm o privilégio de estar em condições
para tentar analisar as questões importantes da grande política, o sentimento
de pequenez do homem comum e a raiva que gera são-lhes inacessíveis, e por isso
é-lhes igualmente difícil compreender como é que essa pequenez pode desejar
desesperadamente fazer parte de um nós que prometa grandeza.” (pág. 27)
E esta, diz-nos Temelkuran, é “uma massa de pessoas
completamente diferente, com um vocabulário mais limitado, sonhos mais pequenos
para o mundo e menos fé na sobrevivência colectiva da humanidade.” (p. 24) Este
é um mundo onde temos visto vezes sem conta “os humilhados a saudar o
perpetrador como seu salvador”. (pág. 101)
Palavras que ressoam em mim quando regresso de Berlim, de
uma conferência sobre museus, património e populismo.
Alice Millar (University College London) conduziu-nos através das bases e dos
efeitos das guerras culturais populistas: o discurso carregado de emoção, que
dá prioridade aos sentimentos sobre os factos; os dilemas binários (Nós e
Eles); as diferentes ideias sobre a utilização do património; o impacto
emocional que estes têm nos profissionais dos museus e do património: medo,
antecipação de problemas, aversão ao risco, auto-censura, exaustão. Julia Leser
(Humboldt University) falou-nos também da transformação silenciosa que está a
ocorrer (a retirada secreta, silenciosa e inteligente de material controverso,
em antecipação de problemas) e da auto-censura, muitas vezes resultante do medo
de perder o emprego. Falou-nos sobre os profissionais de museus que entrevistou
(não necessariamente na direcção de grandes museus, que todos conhecem, mas
pessoas que trabalham em pequenos museus em cidades mais pequenas) que recebem
ameaças anónimas, são aterrorizadas e têm de lidar com o grande impacto que
tudo isto tem na sua saúde mental. Algumas pessoas demitiram-se. Isto na
Alemanha, no Reino Unido, na Suécia (os três países em que o projecto CHAPTER foi
desenvolvido, e não em países que poderíamos identificar imediatamente como
iliberais).
Algumas pessoas falaram sobre a necessidade de resistir às reações emocionais e encontrar melhores formas de informar as pessoas sobre os factos. Voltando a Ece Temelkuran, lembra-nos que “na maioria das vezes, a política tem a ver com pão e esperança, e não com conceitos políticos ou factos deprimentes sobre negligência.” (p. 138) Temos visto repetidamente que os factos não convencem as pessoas que procuram desesperadamente pão e esperança; justiça e esperança; solidariedade – que o populismo de direita é especialista em destruir, ao mesmo tempo que glorifica o perpetrador-salvador – e esperança.
Enquanto escrevo sobre isto, penso constantemente no filme
“No”. Lembram-se do filme de Pablo Larrain, com Gael García Bernal, que conta a
história do referendo chileno sobre se o implacável ditador Augusto Pinochet
devia permanecer como presidente sob um regime civil? Lembram-se das discussões
acesas entre as pessoas na campanha do “Não”, algumas delas a defender que a
sociedade deveria ser lembrada de todas as formas pelas quais a crueldade de
Pinochet recaiu sobre o país e o seu povo? As coisas aconteceram de forma
diferente, no entanto. A campanha do “Não” optou por ignorar a dura realidade do
passado recente (porque “não vende”) e apresentar uma mensagem positiva e
esperançosa, assim como… um jingle: “Chile, La alegría ya viene”.
A ascensão da extrema-direita, bem como o populismo de
direita e de esquerda, estão a afectar os profissionais da cultura em
diferentes países. Era esperado, porque é que alguns de nós ainda somos
apanhados de surpresa? E porque tentamos ainda relativizar os primeiros,
pequenos sinais quando os vemos? Porque não os denunciamos imediatamente e não cerramos
fileiras, apoiando-nos mutuamente e reafirmando os nossos valores e princípios?
No verão passado, lemos sobre a demissão pela Ministra da Cultura da
Eslováquia dos directores do Teatro Nacional e da galeria Nacional, numa
tentativa de reprimir a liberdade de expressão artística. Felizmente, isso não
passou sem contestação: milhares de pessoas saíram à rua; os trabalhadores da cultura eslovacos fizeram
greve em Setembro, contra a censura motivada
pela ideologia; o maestro checo Robert Jindra demitiu-se da Košice State Philharmonic; e
Opera Europa, organização que representa as casas de óperas europeias, condenou publicamente o “vandalismo
cultural de direita". Em Portugal, multiplicam-se
os actos de censura e a perturbação de eventos públicos, mas, ainda assim, isso
não parece ser um problema ainda para nós (leiam os meus posts aqui
e aqui).
Na semana passada, a European Theatre Convention (a maior rede europeia de
teatros com financiamento público, presidida pela portuguesa Cláudia Belchior),
enviou um alerta de que os criadores de
teatros estão sob ataque de ideólogos políticos da extrema-direita;
“artistas e peças de teatro que não aderem à mentalidade nacionalista dos
partidos de extrema-direita em ascensão estão a ser expulsos da indústria em
toda a Europa”. Podemos repetir à vontade “No pasarán”, mas eles passaram,
estão aqui, estão a condicionar as nossas liberdades. E precisamos de lidar com
eles. Mas como?
Falo com amigos e colegas e muitas vezes entre nós há
incredulidade, tristeza, dormência e um terrível sentimento de desespero. Na
conferência em Berlim, comentei a certa altura que estamos a investir demasiado
tempo a discutir os “bullies” e as suas tácticas, e o como poderíamos
derrotá-los com diálogo e factos. Não poderemos. E não podemos continuar a ser
ingénuos, acreditando que pode haver diálogo com aqueles que fingem desejá-lo. Sabemo-lo,
já aconteceu antes. Temelkuran recorda-nos que, nestes casos, “a actividade
intelectual torna-se uma questão de reagir a fragmentos do discurso populista
com sarcasmo.” (p. 80) Descreve um convite que recebeu de mulheres do AKP
(Partido de Justiça e Desenvolvimento, Turquia) para colaborar com “mulheres
como ela”. Escreve: “O apelo à empatia parece uma trégua depois de uma luta esgotante.
No entanto, não é claro se estou a ser convidada a celebrar um acordo de paz em
condições de igualdade ou se estou a ser convidada a render-me. Por isso, digo
‘Obrigada, mas não, obrigada’.” (p.174)
Num país que não está perdido para nós, os “bullies” devem ser tratados com as armas da Constituição e das leis. Já não há tempo para pensar em diálogo e factos. Este é o momento da solidariedade, primeiro entre nós, enquanto profissionais da cultura (pois alguns já são vítimas dos “bullies”) e depois para a sociedade que servimos. Devemos concentrar-nos nas pessoas, na sua (nossa) necessidade de pão (literal e metaforicamente) e de esperança, de confiança e de justiça, de um vocabulário mais rico e de sonhos mais amplos. Voltarei a citar Deborah Cullinan, que em 2017 (pouco depois da eleição de Donald Trump) escreveu que “A matéria-prima da nossa democracia é a criatividade individual e a imaginação colectiva”. É isto que fazemos, esta é a nossa parte. Uma outra realidade é possível. Perdemo-la, podemos recuperá-la. La alegría ya viene.
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