Saturday 26 October 2024

Obrigada, mas não, obrigada.

Não é fácil ler o livro de Ece Temelkuran “How to lose a country: The seven steps from democracy to dictatorship”. A escrita incisiva da jornalista turca torna-se por vezes assustadora, os seus testemunhos pesam muito no coração. Tive de fazer uma pausa de vez em quando. Todas as nossas perguntas, dúvidas, preocupações, frustrações sobre o que está a acontecer à nossa volta, estão neste livro. O que alguns de nós estamos a viver pela primeira vez já aconteceu antes e as táticas nunca foram diferentes. Não só a ascensão de Erdogan, a votação do Brexit, a eleição de Trump são colocadas sob o microscópio, mas Temelkuran tem uma visão clara de até onde precisamos de recuar para encontrar as origens de acontecimentos recentes e actuais e perceber que não fizemos/fazemos nada, embora a forma como se desenvolveram seja, nesta altura, muito previsível. Tão previsível como sete passos.

Ao olharmos com incredulidade para o apoio inabalável a perigosos-autocratas-outrora- ridículos, há coisas em que precisamos de pensar. Temelkuran escreve:

“Para muitos dos que têm o privilégio de estar em condições para tentar analisar as questões importantes da grande política, o sentimento de pequenez do homem comum e a raiva que gera são-lhes inacessíveis, e por isso é-lhes igualmente difícil compreender como é que essa pequenez pode desejar desesperadamente fazer parte de um nós que prometa grandeza.” (pág. 27)

E esta, diz-nos Temelkuran, é “uma massa de pessoas completamente diferente, com um vocabulário mais limitado, sonhos mais pequenos para o mundo e menos fé na sobrevivência colectiva da humanidade.” (p. 24) Este é um mundo onde temos visto vezes sem conta “os humilhados a saudar o perpetrador como seu salvador”. (pág. 101)

Palavras que ressoam em mim quando regresso de Berlim, de uma conferência sobre museus, património e populismo. Alice Millar (University College London) conduziu-nos através das bases e dos efeitos das guerras culturais populistas: o discurso carregado de emoção, que dá prioridade aos sentimentos sobre os factos; os dilemas binários (Nós e Eles); as diferentes ideias sobre a utilização do património; o impacto emocional que estes têm nos profissionais dos museus e do património: medo, antecipação de problemas, aversão ao risco, auto-censura, exaustão. Julia Leser (Humboldt University) falou-nos também da transformação silenciosa que está a ocorrer (a retirada secreta, silenciosa e inteligente de material controverso, em antecipação de problemas) e da auto-censura, muitas vezes resultante do medo de perder o emprego. Falou-nos sobre os profissionais de museus que entrevistou (não necessariamente na direcção de grandes museus, que todos conhecem, mas pessoas que trabalham em pequenos museus em cidades mais pequenas) que recebem ameaças anónimas, são aterrorizadas e têm de lidar com o grande impacto que tudo isto tem na sua saúde mental. Algumas pessoas demitiram-se. Isto na Alemanha, no Reino Unido, na Suécia (os três países em que o projecto CHAPTER foi desenvolvido, e não em países que poderíamos identificar imediatamente como iliberais).

Algumas pessoas falaram sobre a necessidade de resistir às reações emocionais e encontrar melhores formas de informar as pessoas sobre os factos. Voltando a Ece Temelkuran, lembra-nos que “na maioria das vezes, a política tem a ver com pão e esperança, e não com conceitos políticos ou factos deprimentes sobre negligência.” (p. 138) Temos visto repetidamente que os factos não convencem as pessoas que procuram desesperadamente pão e esperança; justiça e esperança; solidariedade – que o populismo de direita é especialista em destruir, ao mesmo tempo que glorifica o perpetrador-salvador – e esperança.


Enquanto escrevo sobre isto, penso constantemente no filme “No”. Lembram-se do filme de Pablo Larrain, com Gael García Bernal, que conta a história do referendo chileno sobre se o implacável ditador Augusto Pinochet devia permanecer como presidente sob um regime civil? Lembram-se das discussões acesas entre as pessoas na campanha do “Não”, algumas delas a defender que a sociedade deveria ser lembrada de todas as formas pelas quais a crueldade de Pinochet recaiu sobre o país e o seu povo? As coisas aconteceram de forma diferente, no entanto. A campanha do “Não” optou por ignorar a dura realidade do passado recente (porque “não vende”) e apresentar uma mensagem positiva e esperançosa, assim como… um jingle: “Chile, La alegría ya viene”.

A ascensão da extrema-direita, bem como o populismo de direita e de esquerda, estão a afectar os profissionais da cultura em diferentes países. Era esperado, porque é que alguns de nós ainda somos apanhados de surpresa? E porque tentamos ainda relativizar os primeiros, pequenos sinais quando os vemos? Porque não os denunciamos imediatamente e não cerramos fileiras, apoiando-nos mutuamente e reafirmando os nossos valores e princípios? No verão passado, lemos sobre a demissão pela Ministra da Cultura da Eslováquia dos directores do Teatro Nacional e da galeria Nacional, numa tentativa de reprimir a liberdade de expressão artística. Felizmente, isso não passou sem contestação: milhares de pessoas saíram à rua; os trabalhadores da cultura eslovacos fizeram greve em Setembro, contra a censura motivada pela ideologia; o maestro checo Robert Jindra demitiu-se da Košice State Philharmonic; e Opera Europa, organização que representa as casas de óperas europeias, condenou publicamente o “vandalismo cultural de direita". Em Portugal, multiplicam-se os actos de censura e a perturbação de eventos públicos, mas, ainda assim, isso não parece ser um problema ainda para nós (leiam os meus posts aqui e aqui). Na semana passada, a European Theatre Convention (a maior rede europeia de teatros com financiamento público, presidida pela portuguesa Cláudia Belchior), enviou um alerta de que os criadores de teatros estão sob ataque de ideólogos políticos da extrema-direita; “artistas e peças de teatro que não aderem à mentalidade nacionalista dos partidos de extrema-direita em ascensão estão a ser expulsos da indústria em toda a Europa”. Podemos repetir à vontade “No pasarán”, mas eles passaram, estão aqui, estão a condicionar as nossas liberdades. E precisamos de lidar com eles. Mas como?

Falo com amigos e colegas e muitas vezes entre nós há incredulidade, tristeza, dormência e um terrível sentimento de desespero. Na conferência em Berlim, comentei a certa altura que estamos a investir demasiado tempo a discutir os “bullies” e as suas tácticas, e o como poderíamos derrotá-los com diálogo e factos. Não poderemos. E não podemos continuar a ser ingénuos, acreditando que pode haver diálogo com aqueles que fingem desejá-lo. Sabemo-lo, já aconteceu antes. Temelkuran recorda-nos que, nestes casos, “a actividade intelectual torna-se uma questão de reagir a fragmentos do discurso populista com sarcasmo.” (p. 80) Descreve um convite que recebeu de mulheres do AKP (Partido de Justiça e Desenvolvimento, Turquia) para colaborar com “mulheres como ela”. Escreve: “O apelo à empatia parece uma trégua depois de uma luta esgotante. No entanto, não é claro se estou a ser convidada a celebrar um acordo de paz em condições de igualdade ou se estou a ser convidada a render-me. Por isso, digo ‘Obrigada, mas não, obrigada’.” (p.174)

Num país que não está perdido para nós, os “bullies” devem ser tratados com as armas da Constituição e das leis. Já não há tempo para pensar em diálogo e factos. Este é o momento da solidariedade, primeiro entre nós, enquanto profissionais da cultura (pois alguns já são vítimas dos “bullies”) e depois para a sociedade que servimos. Devemos concentrar-nos nas pessoas, na sua (nossa) necessidade de pão (literal e metaforicamente) e de esperança, de confiança e de justiça, de um vocabulário mais rico e de sonhos mais amplos. Voltarei a citar Deborah Cullinan, que em 2017 (pouco depois da eleição de Donald Trump) escreveu que “A matéria-prima da nossa democracia é a criatividade individual e a imaginação colectiva”. É isto que fazemos, esta é a nossa parte. Uma outra realidade é possível. Perdemo-la, podemos recuperá-la. La alegría ya viene.

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