Saturday 19 October 2024

And now for something completely different: o museu populista


Em Novembro de 2022, o Ministro da Cultura italiano, Gennaro Sangiuliano, falou sobre a necessidade de proteger melhor as obras de arte das acções dos activistas climáticos e afirmou: “Considerando o enorme património a proteger, a intervenção representará um custo considerável para o ministério e para toda a nação. Infelizmente, só posso prever um aumento do custo do bilhete de entrada.”

A declaração pareceu-me profundamente populista (e ridícula) na altura. Talvez não seja mais populista (ou ridícula), no entanto, do que a declaração da National Gallery no dia 17 de Outubro:

“Após os recentes incidentes no interior do museu, é agora necessário introduzir medidas reforçadas para garantir a segurança de todos os que a visitam, do pessoal da National Gallery e da colecção de pinturas da nação.

Nenhum líquido pode ser trazido para a National Gallery, com a excepção de leite de fórmula, leite extraído e medicamentos sujeitos a receita médica. Pedimos a todos os visitantes que tragam artigos mínimos com eles e não sacos grandes.

Prevemos que levará mais tempo para entrar no museu e pedimos desculpa por este inconveniente antes da sua visita.”

Assim, o Ministro da Cultura italiano antecipava um aumento do custo do bilhete de entrada, tal como a National Gallery prevê que se demore mais tempo para entrar no museu. Tudo por causa dos “malucos climáticos”, dos “vândalos climáticos”, que fazem “o resto de nós pagar pela [sua] estupidez”, “arruinando a experiência de outras pessoas” (apenas alguns comentários do público no Facebook, após o anúncio das novas medidas).

Nós e Eles. Os amantes da arte e os maluquinhos. As pessoas decentes e os vândalos. Aqueles que cuidam do futuro dos humanos e dos mais-que-humanos no planeta e… quem?

Poucos dias antes do anúncio da National Gallery, li a carta aberta do National Museums Directors’ Council (NMDC) e fiquei intrigada e perturbado com a sua declaração de que “Embora respeitemos o direito das pessoas de protestar, e sejamos muitas vezes solidários com a causa, estes ataques têm de parar. São extremamente prejudiciais para a reputação dos museus do Reino Unido e causam um stress enorme aos colegas a todos os níveis de uma organização, bem como aos visitantes, que já não se sentem seguros a visitar os melhores museus e galerias do país.”

Compreendo o stress que estas acções tenham causado aos funcionários do museu, mas, olha… faz parte do trabalho, não é? Estou certa de que os directores e funcionários dos museus britânicos se recordam da altura em que o IRA ameaçava os cidadãos no espaço público, incluindo nos museus. Tenho dificuldade em compreender porque é que os visitantes podem não se sentir seguros nos museus hoje em dia, devido aos activistas climáticos. Alguém expressou essa preocupação ou medo?

Estamos a assistir à diabolização dos activistas climáticos, à sua comparação implícita, mas consciente, com terroristas. Podíamos questionar: Quais são as causas com as quais estes museus/diretores de museus solidarizam? A emergência climática é uma delas? Porque é que estão a repetir a mentira de que obras de arte foram danificadas? Como lidaram com os activistas climáticos até agora? Convidaram-nos para conversar?

Não fizeram nada disto. Na verdade, foram os activistas que pediram uma reunião. Salientando que o NMDC não reconheceu na sua declaração a “emergência climática” ou as responsabilidades dos seus signatários como “guardiões dos nossos tesouros nacionais”, a Just Stop Oil fez um convite:

“Juntemo-nos na próxima semana, num local público da National Gallery. Temos activistas que arriscaram a liberdade para pedir o fim do petróleo e do gás e que adorariam falar com [o director da National Gallery] Dr. Gabriele Finaldi. (…) Hoje discordam da sopa e dos autocolantes, mas amanhã vão enfrentar a subida das águas no Tamisa e ondas de calor mortais na cidade. As pessoas perturbam os espaços dos museus e das galerias de arte para quebrar a ilusão de que está tudo bem. Precisamos que as instituições enfrentem as suas responsabilidades neste momento – de frente.”

Seguindo os comentários feitos no Facebook sobre as novas medidas na National Gallery, podemos ver o quão longe esta instituição está (e muitas outras) de assumir as suas responsabilidades nas alterações climáticas e o seu papel ao serviço de um público muito amplo e diversificado, “O mais importante: as gerações futuras”. As gerações que já tentam sensibilizar em relação à emergência climática.

Assim, vários cidadãos, irritados mas prestáveis, ​​responderam ao meu pedido de esclarecimento à National Gallery com argumentos baseados no “e se”…

“E se o líquido libertado pelos activistas não fosse benigno, mas sim, um ácido químico suficientemente forte para dissolver a carne?”

“Começam a atirar sopa, depois algum idiota copia-os e destrói o Hay Wain.”

“Acha que é melhor esperar até que algo insubstituível seja realmente danificado e irreparável?”

“Mas eu estava aqui a pensar – vende-se sopa no local. O que impede um activista (e odiador de arte?) de a comprar no restaurante e de a usar.”

“Os vândalos do clima estão a danificar obras de arte e ninguém sabe, até deitarem fora o que quer que tenham trazido, que substância é – pode ser qualquer coisa.”

A sério, National Gallery?

A sério, seguidores da National Gallery? Se o propósito dos activistas fosse destruir obras artísticas ou magoar pessoas, não o teriam feito?

Depois, temos também uma longa lista de comentários e perguntas sobre o trazer água ao museu, que a National Gallery teve de esclarecer um a um…

“Somos mais velhos e precisamos de levar água sempre que saimos.”

“Levo 4 horas para regressar da National Gallery para casa e tenho sempre bebidas suficientes para a viagem. Existe algum lugar onde as possa deixar?”

“Quando estou fora o dia todo em Londres, tenho sempre uma garrafa de água (cheia) na mala. Não consigo mesmo andar por uma galeria/exposição durante horas sem beber um gole de vez em quando. Normalmente sento-me num banco nma galeria, longe de uma obra de arte. Como é que isso deveria funcionar agora?”

“Se alguém tem de tomar um medicamento prescrito (ou seja, comprimidos, para tomar com água), então o que faz? Nunca fico sem garrafa de água porque tenho de tomar medicação regularmente e também devido às enxaquecas intensas. Isso significa que não posso visitar-vos agora?”

“Para pessoas como eu com POTS, cuja maior alegria são as artes, isto é realmente muito difícil. Para reter o volume sanguíneo e não desmaiar quando estou de pé durante muito tempo, tenho de ingerir água e sal sempre que possível. Por isso, não ter água disponível seria arriscado num museu maior.”

E outra vez: a sério, National Gallery?

Em Setembro, o juiz Christopher Hehir condenou Phoebe Plummer a dois anos de prisão e Anna Holland a 20 meses por causar danos estimados em 10 mil libras na moldura dos “Girassóis” de Van Gogh. As suas palavras foram assustadoras:

“Vocês as duas simplesmente não tinham o direito de fazer o que fizeram aos Girassóis, e a vossa arrogância em pensar o contrário merece a mais forte condenação. (…) Vocês as duas estiveram à distância da espessura de um vidro de danificar irreparavelmente ou mesmo destruir este tesouro inestimável, e isso deve ser reflectido nas sentenças que dou.”

Sentenças baseadas no “e se”? Da mesma forma que o mesmo juiz condenou os activistas climáticos no verão passado a cinco e quatro anos de prisão por planearem bloquear uma autoestrada? E se nem todos compreendemos a gravidade destas sentenças no que diz respeito aos direitos humanos, ao protesto pacífico e à desobediência civil, George Monbiot tornou-o mais claro:

“O mesmo juiz, Christopher Hehir, presidiu ao julgamento dos dois filhos de um dos homens mais ricos da Grã-Bretanha (…) [que] espancaram violentamente dois agentes da polícia fora de serviço, aparentemente por pura diversão. Um dos polícias necessitou de uma grande cirurgia, incluindo a inserção de placas de titânio na bochecha e na órbita ocular. Um dos irmãos, Costas, já tinha três condenações semelhantes por agressão. Mas Hehir deu a ambos penas suspensas. Decidiu também que um polícia que fez sexo no seu carro com uma mulher embriagada que ‘se ofereceu para levar para casa’ deveria receber apenas uma pena suspensa. (…) Hehir também condenou com pena suspensa um homem que chocou com o seu carro contra os portões da Downing Street e foi então descoberto pela polícia que tinha imagens extremas de abuso infantil no seu telefone.”

O Relator Especial da ONU para os Defensores Ambientais no âmbito da Convenção de Aarhus divulgou um documento de posição afirmando:

“A repressão que os activistas ambientais que recorrem à desobediência civil pacífica enfrentam actualmente na Europa é uma grande ameaça à democracia e aos direitos humanos. A emergência ambiental que enfrentamos colectivamente, e que os cientistas documentam há décadas, não pode ser abordada se aqueles que dão o alarme e exigem acção forem criminalizados. A única resposta legítima ao activismo ambiental pacífico e à desobediência civil neste momento é que as autoridades, os meios de comunicação social e o público percebam como é essencial para todos nós ouvirmos o que os defensores ambientais têm a dizer.”

E outra vez: A sério, National Gallery? A sério, National Museum Directors’ Council? A sério, directores e funcionários de museus de todo o mundo que ainda preferem acreditar que isto não tem nada a ver com os museus, com a sua governança, com o seu funcionamento, com os seus patrocinadores ou… com a arte?

No dia 21 de Outubro temos a conferência anual da Acesso Cultura: “Emergência climática: e a Cultura?”. A oradora principal será a artista Maret Anne Sara. Nunca ouviram falar dela? “Google her”, para seguir o conselho/ordem dos prestáveis ​​seguidores da National Gallery.

 

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