Um tema não se esgota num post. Aliás, é preciso alguma disciplina para não tornar um simples post num longo tratado. Muita coisa fica sempre por dizer, por aprofundar, por explicar melhor. A tarefa torna-se mais estimulante quando a nossa reflexão se cruza com aquela de outras pessoas. Este blog não se tornou ainda numa plataforma de discussão em público, mas em privado já por várias vezes recebi o feedback de pessoas amigas e de outras desconhecidas.
Foi o que aconteceu com o post sobre os novos públicos. As perguntas choveram, os argumentos também. Porque é importante a cultura hoje? Qual a sua ligação com a sociedade, com a vida, com uma cidade? Os novos públicos são um conceito de moda? Porque uma pessoa devia ir ao teatro? A experiência ao vivo tem mais valor do que o consumo em casa? É menos culta uma pessoa que não assiste a espectáculos? O que pode surpreender um público habituado à cultura? Qual é a programação que pode motivar as pessoas para se deslocarem a um teatro?
Não vou tentar aqui responder a cada uma das perguntas. Vou tentar dar seguimento à reflexão que começou no post dos novos públicos, que muito tem a ver com estas e outras questões. E espero que daqui surjam mais questões e mais cruzamentos. Quem sabe, talvez em público.
A existência de museus, galerias, salas de espectáculos, centros culturais não faria sentido se não houvesse público. São lugares de encontro entre os artistas e as pessoas. São espaços de estímulo, diálogo, confronto, emoções; espaços de descoberta, aprendizagem, entretenimento. São também espaços onde as pessoas entram de livre vontade e não por obrigação; e são também livres de gostar de experiência ou não, de voltar ou não. A preocupação em criar acesso a estas experiências para cada vez mais pessoas tem a ver com a missão desses espaços, a sua razão de existir; mas é também uma necessidade.
A fruição das artes é um direito das pessoas. As nossas instituições estão ao serviço deste direito. Existem não só para aqueles com hábitos de frequentação, como também para aqueles que não têm este hábito, ou porque apreciam outras formas de participação cultural ou porque essa participação nunca fez parte da vida deles e por isso desconhecem-na ou consideram-na irrelevante. Construir pontes, dialogar com as pessoas, conhecê-las melhor, dar a conhecer a nossa oferta, procurar adaptá-la a diferentes necessidades e conhecimentos são algumas das formas através das quais as instituições culturais procuram cumprir a sua missão. Por outro lado, é também uma necessidade. Se não nos preocuparmos com a renovação, o alargamento e a diversificação dos nossos públicos, vamos estagnar. Estaremos todos a trabalhar para as mesmas pessoas e chegará o momento, se não chegou já, em que a oferta será superior à procura. Não haverá público para todos os espectáculos, exposições, concertos e outros eventos que produzimos.
Não existem formas mais ou menos legítimas de fruição e criação artística e cultural. As pessoas são livres de escolher a que melhor responde às suas necessidades e interesses. Mas nós estamos no ‘negócio’ da experiência ao vivo, acreditamos no seu valor, queremos mantê-lo vivo, trabalhamos para que as pessoas possam usufrui-lo. No entanto, a forma como o temos feito continua a demonstrar algum distanciamento e desconhecimento do ‘outro’ e também alguma arrogância. Posicionamo-nos como guardiões únicos e absolutos da ‘verdadeira cultura’, daquela que tem qualidade e valor. Muitos de nós continuamos satisfeitos em trabalhar para e com os ‘poucos, mas bons’, os entendidos, os iniciados; e eles também apreciam este estatuto e, não poucas vezes, reagem a qualquer tentativa de abertura por parte da instituição, àquilo que consideram popularização e baixar de nível. Por outro lado, também muitos de nós advogamos o ‘acesso’, mas o acesso àquilo que nós definimos como cultura válida. E se procurássemos conhecer melhor as comunidades nas quais estamos inseridos? E se abríssemos os nossos espaços (que são também os delas), envolvendo-as, criando conforto (físico, psicológico e intelectual) e um sentimento de pertença? E se desenhássemos juntamente com elas a nossa programação? E se fossem elas os artistas?
Li dois textos muito inspiradores nas últimas semanas, que alertam para a necessidade de estarmos atentos às mudanças ocorridas nas formas de participação cultural e ao impacto das mesmas nas nossas instituições. John Holden, em Culture and Class, e Diane Ragsdale, em The Excellence Barrier, defendem a urgência, a importância e a necessidade de olharmos para fora; de tentarmos perceber os hábitos, gostos e expectativas das comunidades que pretendemos servir; de procurarmos relacionar-nos com elas, tornando a nossa oferta relevante para a vida delas, criando a procura juntamente com elas.
John Holden defende no seu texto uma postura neo-cosmopolita, por oposição à postura dos snobs culturais (que abraçam apenas certas formas de expressão artística e procuram condicionar o acesso a elas) e dos neo-mandarins culturais (que desejam partilhar o seu entusiasmo, que defendem o acesso para todos, mas querem ser eles a definir o que constitui cultura de qualidade). “O neo-cosmopolitismo”, diz Holden, “envolve acção, produção e participação. Enquanto o velho cosmopolita se sentia em casa nas culturas das elites de diferentes cidades, o novo cosmopolita sente-se à vontade com as diferentes culturas na sua própria cidade.” Defende, assim, uma postura ecléctica, que procura abrir a definição do que é cultura de qualidade a formas de expressão que não apenas aquelas associadas à chamada ‘alta cultura’, e cuja criação e fruição envolve hoje em dia vários meios (sobretudo os disponibilizados na Internet) e espaços (incluindo as nossas próprias casas).
Por seu lado, Diane Ragsdale, apresenta uma interessante e divertida analogia com o movimento slow food em resposta ao fast food, que adoptou três estratégias: 1. a defesa da biodiversidade na fruição de excelente comida; 2. a educação do gosto das pessoas na redescoberta da alegria de comer, na preocupação com a proveniência da comida, no conhecimento de quem a fez e como; 3. o encontro dos produtores com os consumidores, nas feiras, nos mercados, em eventos especiais. Num eventual movimento ‘slow arts’, as nossas instituições culturais entenderiam que são apenas uma parte da arte e da cultura que se faz; encorajariam a participação das pessoas e o seu envolvimento; disponibilizariam os meios e as ferramentas que permitiriam desmistificar a experiência; criariam redes sociais nas quais os novos participantes se sentiriam integrados e confortáveis; conheceriam a comunidade em que estão inseridas e procurariam fazer uma programação culturalmente relevante; estariam mais preocupadas com o seu impacto nas vidas das pessoas, procurando alcançar tanto a excelência como a equidade; e estariam permanentemente atentas às mudanças que ocorrem à sua volta. “Para atrair e manter novos públicos, as entidades culturais precisam talvez de deixar de vender excelência e de começar a promover relações entre pessoas e arte(-istas)”.
Mais food for thought para esta nossa reflexão sobre a fruição cultural e os novos públicos. Que não se esgota aqui.
Nota
Feliz coincidência: foi ontem publicado no jornal The New York Times um artigo sobre a directora do Lehman Center em Bronx, Nova Iorque, Eva Bornstein. Institula-se Bridging Cultures Onstage.