Tomada de posse de Bill De Blasio (imagem retirada do portal Hyperallergic) |
Bill
de Blasio é o 109º Presidente da Câmara de Nova Iorque. É casado com a
activista e poetisa Chirlane McCray. Tomou posse no passado dia 1 de Janeiro.
Dois dias antes, o New York Times (NYT) publicou um artigo intitulado A new mayor brings hope for a populist arts revival.
Fiquei curiosa. O jornal referia que o novo presidente tem uma marca populista
e que, considerando os seus hábitos culturais e artísticos, pode esperar-se que
o seu interesse recaia numa parte da vida cultural da cidade bastante diferente
daquela que mais atraía o seu antecessor, Michael Bloomberg. Mais
concretamente, o NYT dizia que o novo presidente nunca foi visto no Lincoln
Center e que a sua família raramente visita os grandes museus de arte da
cidade. Pelo contrário, são muitas vezes vistos em pequenas galerias e museus
nos bairros. Chirlane McCray frequenta sessões de leitura, foi membro do júri
de concursos de poesia e promoveu, no dia da tomada de posse do seu marido, a
leitura de um poema de um jovem poeta. A comissão de transição de De Blasio (ou
seja, as pessoas que o ajudarão a escolher a sua equipa) inclui peritos ligados
ao Public Theatre, ao Brooklyn Museum, à Brooklyn Academy of Music, assim como
o director do Studio Museum in Harlem.
Poucos dias depois, o portal Hyperallergic publicava um
artigo de Mostafa Heddaya, De Blasio and the mythology of a new arts populism.
Heddaya comentava as considerações do NYT, mas concluía que, no final de
contas, os interesses culturais do novo presidente e da sua esposa são pouco
relevantes, tal como o eram os do seu antecessor. Heddaya partilha com outros
comentadores, que refere no seu texto, a preocupação pela forma como o novo
executivo poderá vir a apoiar as artes, de forma construtiva e justa, e,
também, como poderá conseguir mecenato para compensar o apoio que o anterior
presidente Bloomberg garantia a certas instituições culturais da cidade
investindo os seus próprios milhões.
Problemas
de financiamento e problemas permanentes com a falta de políticas culturais
construtivas e justas. Nova Iorque não parece estar a enfrentar uma situação
muito diferente daquela de outras cidades. No entanto, e para além desta
discussão, fiquei a pensar em dois outros pontos: no facto dos gostos do novo
presidente serem considerados “populistas” pelo NYT (haverá aqui um significado
da palavra que eu desconheça?); mas, sobretudo, o facto destes mesmos gostos e
hábitos serem um assunto discutido publicamente, nos jornais e nos blogs.
Conheço pouco ou nada sobre os hábitos culturais dos homens e das mulheres que
nos governam. Raramente este é um assunto entre nós, antes ou depois das
eleições. E raramente me cruzei com eles, com os que nos governam, quer nos
sítios onde trabalhei quer nos espaços que frequento, a não ser em momentos em
que a sua presença era exigida pelo protocolo. (Há algumas ilustres excepções,
poucas, as mesmas que compram bilhete ao invés de reclamarem convites.)
Fiquei com isto na cabeça, fiquei a pensar se importa saber
que livros é que os nossos políticos lêem, que peças de teatro têm visto, que
música ouvem, quais foram os seus filmes preferidos em 2013. Um outro
acontecimento nos EUA lembrou-me novamente desta questão.
Imagem: Witness Against Torture (retirada do Flickr) |
No dia 11 de Janeiro, dia do 12º aniversário da abertura de
Guantánamo, activistas do grupo Witness Against Torture realizaram um protesto no National Museum of American History em
Washington (ver aqui). Usando os característicos fatos laranja e capuzes pretos, ficaram em posição
de detenção perto da entrada do museu. Outros fizeram um discurso, pedindo a
Barak Obama para libertar os restantes 155 presos e fechar o campo. Mais tarde,
dirigiram-se à sala da exposição “The price of freedom: Americans at war”,
assumiram as mesmas posições de detenção e exibiram cartazes que diziam “Are
these the price of freedom?” ou “Civil liberty?”.
Vi na escolha do local um simbolismo mais favorável para os
museus do que aquele que os organizadores quiseram atribuir. “Viemos aqui hoje
porque queremos ver Guantánamo relegado a um museu”,
escreveram no comunicado de imprensa; mas diziam também: “(…) queremos vê-lo
encerrado e condenado, mas também entendido como um exemplo de onde o medo, o
ódio e a violência nos podem levar.”
Tinha sido no livro de Tzvetan Todorov La
peur des barbares: Au-delà du choc des civilisations que li pela primeira vez
sobre o Torture Memo, um documento
redigido em 2002 pelo gabinete jurídico do Ministério da Justiça dos EUA, que
serviu para apresentar uma “nova definição” do que constitui tortura e defender
a legalidade dos actos cometidos pelo governo americano. Uma linguagem muito
bem trabalhada por quem sabe usar (ou abusar?) das palavras. Um documento
público chocante, que serviu para justificar actos desumanos, humilhantes,
vergonhosos (por isso pensei que a escolha do National Museum of American
History tinha um significado mais profundo do que “ver Guantánamo ‘relegado’ a
um museu”).
Fiquei novamente a pensar que livros lêem,
que peças de teatro vêem, que música ouvem, quais os filmes preferidos desses
políticos, juristas, agentes de segurança, economistas e outros que,
aproveitando-se e alimentando os nossos medos, encontram justificações para a
barbárie e querem tornar-nos seus cúmplices. Desde o torturar presos que nunca
foram formalmente acusados, ao promover referendos sobre direitos fundamentais,
cortar pensões que já eram de miséria, aumentar o número de alunos por turma e
diminuir o número de professores e matérias, pôr em risco o bom funcionamento das
instituições culturais e comprometer o acesso às mesmas, os direitos humanos
são todos os dias violados, ‘por uma boa causa’, nos nossos países
‘civilizados’.
Distribuição de roupa e alimentos, Portugal, Natal 2013 (Foto: Bruno Simões Castanheira para o Projecto Troika) |
Martin Luther Kink disse que “A verdadeira
medida de um homem não é a posição que mantém em momentos de conforto e
conveniência, mas a posição que mantém em momentos de desafio e controvérsia”.
Talvez não importa mesmo saber quais os hábitos e gostos culturais de quem nos governa e de quem os apoia. Os livros, o teatro,
a música não têm super-poderes. É preciso o homem ter força e consciência para
conseguir usar o que neles encontrou contra a sua própria, sempre subjacente,
barbárie.