Augusto M. Seabra escreve na Arte Capital sobre A obra de arte na era da sua reprodutibilidade digital. É um texto interessantíssimo, que apresenta e reflecte sobre uma série de antíteses na forma como vários autores vêem as obras de arte na sua relação com os museus e a relação do público com elas por meio dos museus e, hoje em dia, por meio da sua presença online.
As considerações dos referidos autores (Valéry, Proust, Malraux, Benjamin) e as questões levantadas pelo próprio Augusto M. Seabra motivam uma reflexão tanto do ponto de vista do profissional de museus como do visitante. No entanto, o texto faz-me querer sobretudo comentar sobre questões de terminologia e percepção.
Diz-nos Seabra que Theodor Adorno, na introdução do seu livro Prismas, enuncia: “A palavra alemã ‘museal’ (museulike) tem acentos desagradáveis. Refere-se a objectos com os quais o observador já não tem uma relação vital e que estão em processo de morte, devendo a sua preservação mais ao respeito histórico que à necessidade do presente. Museus e mausoléus estão ligados por mais que a associação fonética. Os museus são como o sepulcro familiar das obras de arte.”
O texto de Adorno data de 1967. Vinte e quatro anos mais tarde, em 1991, Nick Merriman publicava Beyond the Glass Case: The past, the heritage and the public. Merriman fez um estudo de públicos procurando perceber melhor a percepção que as pessoas tinham dos museus. Uma das perguntas era: “Em qual destas coisas os museus vos fazem pensar mais?”. A maioria dos inquiridos (35%) respondeu ‘biblioteca’ (44% dos visitantes frequentes e 24% dos não-visitantes) e 34% disse ‘monumento aos mortos’ (a grande maioria dos não-visitantes e visitantes raros, mas, também, 17% dos visitantes frequentes e 28% dos regulares).
Passados mais vinte anos, vários estudos de público apontam para uma viragem na relação das pessoas com os museus. Se bem que nem de todas as pessoas e nem com todos os museus… A percepção do espaço silencioso, morto, irrelevante, intelectualmente inacessível, persiste. O que faz a diferença? Sem dúvida, a postura escolhida pelos próprios museus. A relação e as percepções mudam quando os museus procuram cumprir a sua missão assumindo todas as suas cinco funções (coleccionar, preservar, estudar, expor e interpretar) como igualmente importantes; quando não olham apenas para dentro e não procuram impor necessidades e interesses; quando se interessam em conhecer melhor as comunidades em que estão inseridos e que deverão servir; quando trabalham no sentido de serem relevantes para elas; quando sabem pôr as pessoas à vontade, do ponto de vista físico, psicológico e intelectual; quando reconhecem, e não menosprezam, o contexto social da visita ao museu; quando procuram ser espaços de descoberta, de desafios, de fruição; quando abandonam o monólogo e promovem o diálogo; quando sabem adaptar a sua linguagem conforme o seu interlocutor, ou seja, quando estão empenhados em comunicar (abordei anteriormente estas questões nos posts Convite para a festa, E afinal, qual é a minha visão?, Por falar em novos públicos, Museus: as novas igrejas? e Livres de visitar um museu de arte).
A referência de Adorno à palavra ‘museu’, e ao que ela representa, fez-me pensar em tudo isto e em particular na terminologia hoje usada pelos profissionais portugueses. A definição de museu do ICOM abrange vários tipos de instituições e de espaços que partilham a mesma missão e desempenham as mesmas funções que os museus. Mais concretamente, são considerados museus: os sítios e monumentos naturais, arqueológicos, etnográficos e históricos; os jardins botânicos e zoológicos, os aquários e viveiros; os centros de ciência e os planetários; as galerias de arte e galerias de exposição de bibliotecas e arquivos; as reservas naturais; as instituições ou organizações que desenvolvem actividades de conservação, investigação, educação, formação, documentação e outras relacionadas com museus e museologia; os centos culturais e outras instituições que promovem a preservação, continuidade e gestão dos recursos patrimoniais materiais e imateriais.
Com uma definição tão abrangente, pergunto-me, então, porque é que em Portugal sentimos a necessidade de usar expressões como ‘espaços musealizados’ e ‘objectos musealizados’. É que a mim sempre me soaram respectivamente a ‘espaços mortos e silenciosos’ e ‘objectos embalsamados’. Sei que não deve ser o mesmo para todos, mas a mim é a isto que me soam. Nunca usei estas expressões. Nunca precisei delas para me exprimir com precisão. Nunca gostei delas. Acho que só servem, por um lado, para complicar (porque não dizer as coisas com o seu nome?), e, por outro, para reforçar as percepções negativas que algumas, muitas, pessoas têm dos museus. As palavras ‘musealizar’ e ‘musealizado’ apontam, na minha opinião, para um processo. O processo de ‘dignificar’ um espaço ou de retirar um objecto do seu contexto natural e de lhe dar um ‘tratamento’ que o torne ‘digno’ de pertencer a uma colecção, de se tornar ‘objecto de museu’. Penso que esta terminologia, o sentimento – muito subjectivo, sim – que me provoca, não faz justiça ao esforço de muitos profissionais de museus que estão empenhados, exactamente, em criar ou preservar contextos, contar histórias, criar condições de conforto, tornar a visita numa experiência estimulante, surpreendente, divertida, permitindo às pessoas apropriarem-se do espaço. Uma vez que as percepções negativas do público são do nosso conhecimento, parece-me preferível evitar o uso de uma linguagem que as possa reforçar. Parece-me preferível acarinharmos a palavra ‘museu’ e continuarmos a trabalhar para que a mesma passe a adquirir acentos positivos para cada vez mais pessoas.