Monday 27 December 2010

Enquanto se espera pelos mármores

O novo Museu de Acrópolis parece um enorme meteorito que caiu no meio de uma área densamente construída. Não é fácil apreciar o edifício do exterior, falta-lhe uma zona de ‘respiração’ à volta. À medida que nos aproximamos, obtendo vistas diferentes dos diversos volumes que o compõem, poderíamos até dizer que se trata de um objecto estranho e feio, que se impõe de forma arrogante no espaço onde se insere.

No entanto, a obra do arquitecto suiço Bernard Tschumi, em colaboração com o arquitecto grego Michael Photiadis, conquista-nos incondicionalmente a partir do momento que nos encontramos no seu interior. Este não é um edifício que se sobrepõe aos objectos que é suposto exibir. Antes, parece que cada espaço foi concebido a pensar concretamente nas peças que iria albergar. As vistas sobre a excavação subterrânea (através do chão de vidro) assustam – devido à altura - e impressionam. O corredor principal que dá acesso à área expositiva – chamado “as enconstas de Acrópolis” – dá-nos a sensação que fazemos mesmo parte da procissão que está a subir para entregar as oferendas ao templo da deusa Atena. Na sala do período arcáico entramos num jardim de estátuas, solenes, sorridentes, algo tristes. Bonitas.
Foto: Aris Messinis (Agence France-Presse)

Todo o terceiro e último piso do museu é dedicado ao Partenon. Luminoso, airoso, com uma vista directa e deslumbrante sobre a Acrópolis e o Partenon, tem as dimensões exactas do templo de Atena. A maioria dos objectos aqui expostos são cópias de gesso do friso e das métopas originais, que se encontram no British Museum, em Londres.
Foto: http://hellasbutnotleast.blogspot.com

Foto: http://greatfi.com
A batalha para a devolução dos originais à Grécia insere-se numa discussão maior, a nível internacional, sobre a restituição de antiguidades aos seus países de origem (se bem que a utilização do termo ‘países’ neste contexto poderá não ser a mais precisa). Para além da Grécia, países como Itália, Egipto, Perú, Nigéria, Etiópia e outros, reclamam junto de museus americanos, britânicos, franceses, alemães, a devolução de peças que consideram fazer parte do seu património cultural, chegando às vezes a promovê-los como símbolos nacionais, objectos de orgulho nacional.

Esta parece ser uma batalha entre estados nacionalistas e museus universais. Em Dezembro de 2002, dezoito museus (todos eles norteamericanos e europeus) assinaram a Declaração sobre a Importância e Valor dos Museus Universais. Condenando o tráfego ilegal de objectos arqueológicos, artísticos e étnicos, consideram, no entanto, que objectos adquiridos há mais tempo (não especificam quanto) deverão ser vistos à luz de sensibilidades e valores diferentes, próprios daquela época. Esses objectos, lê-se na declaração, fazem hoje em dia parte dos museus que cuidaram deles e que os tornaram acessíveis a um público internacional. Não pertencem aos cidadãos de uma nação, mas a pessoas de todas as nações. Em 2008, o polémico livro de James Cuno Who owns antiquity? Museums and the battle over our ancient heritage veio apoiar a posição dos museus universais. Cuno afirma que esses deveriam ter a liberdade de adquirir antiguidades mesmo quando a sua origem é incerta, para evitar que as mesmas ‘se percam’ em colecções privadas, não permitindo aos grandes museus cumprir a sua missão de educar o público sobre várias culturas, exibindo objectos de todos os períodos e continentes.

Duas das críticas mais equilibradas ao livro de James Cuno foram escritas por Tom Flynn e pelo arqueólogo Colin Renfrew. Flynn critica aquela que considera uma visão paternalista e colonialista dos museus universais. Aponta para o facto de todas as pessoas que contribuiram com textos serem directores de museus norteamericanos (com a excepção de Neil McGregor, director do British Museum) e para a falta de referência à relação que América e Europa deveriam procurar estabelecer com outros países, cujos museus não são de todo mencionados no livro (ler artigo completo aqui). Renfrew, por seu lado, critica Cuno por reclamar para os museus universais uma liberdade sem regulação, sem nenhuma diligência, na aquisição de antiguidades e defende a necessidade de serem elaborados códigos e políticas claras de aquisição a nível internacional (ler artigo completo aqui).

Esta é uma discussão muito mais vasta e complexa, que ultrapassa os limites do resumo que se faz aqui. Os argumentos de ambas as partes merecem ser analisados com atenção e objectividade. No entanto, e não querendo simplificar demasiado uma questão bastante complexa, diria que não receio que as solicitações para a repatriação de certos objectos esvaziem os chamados museus universais e os impeçam de proceder e cumprir a sua missão, como temem os seus defensores. Os pedidos são muito específicos, muito concretos, não dizem respeito a todo e qualquer objecto que se encontre nas colecções desses museus, e de outros.

Quando olho para o Partenon, vejo um monumento amputado. Acho que os originais do friso e das métopas deveriam ser devolvidos, uma vez que existem as condições. Devolvidos não à Grécia e aos Gregos, mas ao seu contexto natural, histórico e cultural, para serem apreciados por cidadãos do mundo inteiro, aos quais pertencem.

Outras referências
Elginism
The Committee for the Reunification of the Parthenon MarblesLista de artigos de Kwame Opoku no portal Modern Ghana
Who draws the borders of culture? (Artigo de Michael Kimmelman no New York Times de 5 de Maio de 2010)
The Medici conspiracy: The illicit journey of looted antiquities - From Italy´s tomb raiders to the world´s greatest museums (Livro de Peter Watson e Cecilia Todeschini)

Monday 20 December 2010

Gravado na memória

No post Let´s talk business, de Maio passado, falava do recurso às memórias e da análise das mesmas como uma forma de avaliar o impacto da visita a um museu ou uma exposição ou um espectáculo. Tenho estado a acompanhar com interesse a publicação no blog Museum Audience Insight de alguns dos resultados preliminares de um grande inquérito a frequentadores de museus.

Museum Audience Insight é o blog dos
Reach Advisors, uma empresa americana de investigação e estratégia em marketing que trabalha com muitos museus. No início do ano lançaram este inquérito, com o objectivo de recolher dados que pudessem dar respostas a questões como:

- As experiências em museus durante a infância afectam as motivações e as expectativas dos frequentadores adultos dos museus?
- Se alguns tipos de experiências durante a infância são comuns entre os visitantes adultos que mais se envolvem com os museus, os museus hoje poderão oferecer experiências similares às crianças?
- As visitas escolares são cruciais na criação de uma nova geração de frequentadores de museus?
- A curiosidade é importante como motivação?

O inquérito foi lançado através das mailing lists, páginas de Facebook e Twitter de 103 museus em 5 países (EUA, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, Austrália e Índia), sendo que 97% das pessoas que participaram residiam nos EUA. Foram recebidas mais de 40.000 respostas. A metodologia é explicada
aqui e aqui.

Uma das principais linhas do inquérito diz respeito às memórias da infância. Os investigadores procuram, entre outras coisas, perceber quais os factores que tornam a experiência num museu memorável; quais as idades mais impressionáveis; como é que as experiências durante a infância diferem entre os vários segmentos de público. Pediram aos inquiridos para relatarem a sua primeira ou mais forte memória da visita a um museu, para indicarem a idade que tinham na altura e com quem estavam. A seguir, podiam relatar tudo aquilo de que se lembravam da visita.

Em termos gerais, a idade da primeiríssima ou mais forte memória de uma visita a um museu são os 7 anos. Mais de metade dos inquiridos tinha na sua memória a presença da sua mãe. Um pouco menos de metade lembrava-se do seu pai. As visitas escolares são cruciais nos hábitos de visitação dos adultos, sobretudo entre as pessoas cujos pais tinham mais baixas habilitações literárias. As memórias diziam respeito a museus de história e sítios históricos (24%), museus de história natural (21%), museus e centros de ciência (21%), museus de arte (17%).

Nos últimos dois meses, os Reach Advisors têm publicado mais resultados, mais específicos, do inquérito, todos complementados com relatos das pessoas que participaram no mesmo. A 28 de Outubro houve um post totalmente dedicado aos museus de história natural (
“When you´re seven, it´s all about the dinos, baby!”). Isto porque a análise dos dados mostrou que as memórias desses museus em particular ficam com as pessoas durante décadas, memórias essas vivas e detalhadas. Os factores determinantes aqui são a escala dos objectos expostos, os dinossauros, os dioramas, mas, surpreendentemente, também as rochas e os minerais. Há também muitas memórias das lojas desses museus.

Seguiu-se um post sobre experiências interactivas
(“Hands-on exhibits are very fun!” – Hands-on experiences in childhood memories). Através da análise das respostas, os investigadores concluem que estes são componentes muito importantes das experiências nos museus. No entanto, as memórias das actividades interactivas em si são menos vivas e detalhadas, a não ser que estejam associadas a um objecto específico ou uma exposição.

Um outro elemento que pode marcar profundamente as memórias de uma visita é o edifício em si. No post
“A grand and beautiful building with cool things’ to look at” – Architecture in early childhood museums memories” lê-se que em certos casos, mais do que os objectos expostos ou as actividades, são os edifícios que marcam as memórias das pessoas. No entanto, a escala e a grandeza de muitos deles não os torna frios e proibitivos para as crianças, ao contrário do que se poderia esperar. Quase todas as memórias são positivas e certas entre eles dizem respeito a edifícios mais pequenos e modestos.

Nos posts
“Museums are awesome!” e “Awesome? Try fascinating!” analisa-se a linguagem utilizada na descrição das memórias. A escala de edifícios e objectos, assim como tudo o que tem brilho, é belo ou exótico, impressiona as crianças e fica na sua memória. Essas experiências são descritas como ‘impressionantes’ (se bem que esta não deve ser a melhor tradução para ‘awesome’, que é algo que ao mesmo tempo impressiona e mete medo). No entanto, quando se trata de experiências que despertaram o interesse num determinado objecto ou o desejo de aprender mais, o adjectivo mais usado é ‘fascinante’.

O último post desta série (seguir-se-ão outros) intitula-se
Career choices: how museums sometimes make a difference. Apresenta os casos (poucos, é verdade, mas significativos) de pessoas para as quais a visita a um museu despertou o interesse sobre uma temática específica que determinou a escolha de carreira quando se tornaram adultas.

Eu tinha 8 anos quando visitei pela primeira vez o Louvre. Ia seguindo os meus pais pelas salas e corredores, até que chegámos aos pés de uma grande escadaria. E quando levantei os olhos, vi no topo a Vitória de Samotrácia. Fiquei profundamente impressionada, não conseguia tirar os meus olhos dela. Não sei se foi naquele preciso momento, mas foi durante aquela viagem que disse aos meus pais que queria trabalhar num museu (mudei muitas vezes de ideias nos anos que se seguiram…). E sempre que volto ao Louvre, aproximo-me da escadaria esperando e sabendo que Vitória de Samotrácia irá ter o mesmo impacto em mim,
como da primeira vez.

Qual é a vossa primeira ou mais forte memória da visita a um museu?

Thursday 16 December 2010

Blogger convidado: Do acesso à cultura, por Cecília Folgado

Nos últimos dias o acesso à cultura e a consagração universal dos direitos culturais estão no centro do discurso de todo o sector cultural. Pessoalmente, não me regozijo com a centralidade do tema. Confesso que me enerva e me leva a pedir tempo de antena em blogue emprestado.

O nervoso surge da minha experiência pessoal e claro que os que me conhecem já sabem que cresci numa cidade (capital de distrito) sem cinema, sem biblioteca e com a actividade cultural centrada no grupo de teatro local, no seu festival internacional e nas festas da cidade. Havia também, e claro, a televisão, onde se ia descobrindo coisas, filmes, músicas.

Saí dessa cidade em 1993 e, 17 anos e um CAE depois (resultado da rede de cine-teatros imaginada pelo ministro Carrilho), a diferença não é grande. É certo que há mais oferta, que há espectáculos, há até um festival de jazz. E há um museu novo. O cinema continua a ser residual bem como outras formas de expressão cultural e artística. Ainda há, claro, a televisão, a que hoje se adiciona a internet (que dá a ilusão de estarmos no centro de tudo e de termos acesso a tudo).

Nos últimos tempos, a centralidade do tema do acesso à cultura e a sua reivindicação faz-se no contexto do corte de 23% sofrido pelas estruturas apoiadas quadrienalmente pelo MC (corte esse, na verdade, sofrido por todas as estruturas apoiadas). Ora, a bem da honestidade, o que se está a reivindicar não é o acesso à cultura, o que está em causa é exclusivamente o acesso aos meios financeiros necessários por parte de uma parcela do sector cultural: os criadores e as suas estruturas. (Uma parcela central, mas ainda assim uma parcela, porque nem só de criação ou de criadores se faz a cultura).

O financiamento estatal é necessário, é certo, ainda que a medida, a forma e a oportunidade do mesmo devesse ser com urgência e seriedade pensada; mas há que ser distanciado do direito ao acesso à cultura. Este último maior, mais largo e mais fundamental que qualquer sistema de financiamento.

O acesso à cultura implica que todos tenhamos as mesmas oportunidades, tenhamos nascido em Portalegre ou na Cova da Moura, andemos ou não de cadeira de rodas, saibamos ou não ler e escrever. É este acesso que a UN consagra: o acesso que permita a igualdade e a não exclusão. Este acesso, efectivamente reconhecido e garantido, só será efectivado se nos dermos ao trabalho (nós, o sector cultural) de pensarmos uma política cultural consistente, inteira, para o futuro, uma política que fortaleça o tecido cultural, nas áreas de expressão, de criação, mas também e muito fundamentalmente no território; só será efectivado quando percebermos que o financiamento é um investimento e que deverá ir além da criação, que deverá ir além da produção;

É certo que em tempo de crise e em tempo de cortes o susto e o medo são grandes: o sector é frágil e é órfão (6 ‘adopções’ em 11 anos), a dependência (fomentada pelo Estado) imensa. Mas, como já se escreveu noutros textos e noutros blogues, talvez este seja tempo de oportunidades. Melhor será que o tempo e a energia gastos a reivindicar os milhares que não existem se use para olhar para cada um de nós, cada agente, cada estrutura, cada área de expressão e para tentar perceber de que modo podemos trabalhar melhor, mais eficientemente; trabalhar mais eficientemente não para ‘lucrar’ ou para nos tornarmos ‘mercadores’ da cultura e sim, para que o sector e a cultura não sucumbam a cada mudança ministerial ou a cada crise económico-financeira, e sim para que garantamos o acesso efectivo e de todos à cultura.

CECÍLIA FOLGADO Formada em Gestão de Marketing pelo IPAM - Matosinhos e em Arts Management (MA) pela City University - Londres. Nas áreas da Gestão Marketing e da Produção Cultural trabalhou com o Núcleo de Experimentação Coreográfica (NEC), Companhia Instável, Fundação Narciso Ferreira de Riba de Ave (2000-2003), Henri Oguike Dance Company e Akram Khan Company, (Londres, 2003-2006). Em 2007 fez parte da equipa de produção do Fórum Cultural o Estado do Mundo (Fundação Calouste Gulbenkian). É, desde Julho de 2007, Adjunta da Direcção de Comunicação do São Luiz Teatro Municipal. Dedica-se ainda ao estudo das Cidades Criativas e do desenvolvimento sustentável por via do planeamento cultural, áreas em que desenvolveu tese académica, e à formação em Comunicação e Marketing (Setepés) e em Gestão Cultural (Escola Superior de Teatro e Cinema - IPL).

Monday 13 December 2010

Um abraço azul, ou de outra cor qualquer, à crise

Há dois anos fui comprar bilhetes para um espectáculo no Teatro Municipal de Almada (TMA). A funcionária da bilheteira informou-me que pelo valor dos bilhetes (ou um pouco mais, não me lembro ao certo) poderia tornar-me membro do Clube de Amigos do TMA. Assim, durante um ano teria entrada gratuita nos espectáculos de produção própria desse teatro, descontos significativos noutras produções, assim como bilhetes gratuitos ou com desconto para todos os meus acompanhantes (independentemente do número). Não sendo difícil fazer as contas, apercebi-me que pelo preço de quatro bilhetes para um espectáculo (dois de adulto e dois de criança) poderia praticamente ter acesso quase gratuito a toda a temporada do TMA. Lembro-me de ter pensado na altura que o TMA não parecia estar muito preocupado em gerar receitas; e que mais valia assumir que a entrada era livre para os seus espectáculos, em vez de dar a ideia que as contas não estavam muito bem feitas ou que não existia um objectivo ‘maior’ por trás da criação do Clube de Amigos.

As instituições que recorrem ao sistema das assinaturas fazem-no normalmente para garantir benefícios para a própria instituição e para os seus públicos (públicos fieis e outros que pretende fidelizar). Uma grande parte do livro de Philip Kotler e Joanne Scheff
Standing Room Only: Strategies for Marketing the Performing Arts é dedicada às políticas de bilheteira e às estratégias que têm como objectivo a fidelização de públicos. Entre os benefícios que as assinaturas trazem à instituição, os dois autores indicam: a garantia de receita; a possibilidade de reduzir os custos para a promoção dos espectáculos (os custos para atrair novos membros e convencer membros antigos a renovar são inferiores aos custos para atrair pessoas que adquirem bilhetes pontualmente, para determinadas produções); um espaço maior para o director artístico poder experimentar; garantia de mais espectadores para a programação ‘alternativa’ ou experimental ou para projectos que não envolvem artistas conhecidos e populares, uma vez que está tudo incluído no ‘pacote’. Por outro lado, o público que assina pode beneficiar de descontos; pode ter prioridade na escolha de lugar; pode ter o direito de trocar bilhetes; pode ter acesso a uma série de serviços complementares (estacionamento, descontos no restaurante, eventos especiais, programas educativos, encontros com os artistas, etc.); é-lhe dada a possibilidade e a oportunidade de ‘educar’ os seus gostos, mais uma vez porque o ‘pacote’ inclui também propostas experimentais, novas, menos conhecidas.

Fiquei, por isso, a pensar quais teriam sido os objectivos do TMA ao criar o Clube de Amigos, uma vez que o preço da assinatura não parecia poder (ou querer, talvez) garantir os benefícios acima mencionados. Eu não cheguei a renovar a minha assinatura no ano seguinte: uma opção pessoal, claro, que tem a ver com o meu estilo de vida, a minha necessidade de ter maior liberdade e flexibilidade na escolha dos espectáculos que fazem parte da (grande) oferta na zona de Lisboa; uma prova que quando um espectador não investe realmente na assinatura não sente que perde algo ao não frequentar um maior número de espectáculos e consequentemente perde o incentivo de renovar; e
uma prova ainda que o preço extremamente baixo e as entradas gratuitas não são só por si suficientes para fidelizar o público, mesmo aquele que vê muitos espectáculos. (A propósito da questão das entradas gratuitas, um tema que foi também abordado neste blog aqui e aqui, um post recente no blog Arts Marketing constitui um excelente resumo dos pontos a considerar.)

Voltei a pensar no Clube de Amigos do TMA quando na semana passada recebi por correio azul uma convocatória para uma reunião geral (apesar de já não ser membro), assinada pelo encenador e Director do TMA Joaquim Benite. No Domingo passado recebi também um telefonema para confirmar a minha presença na reunião. O propósito da reunião era o corte de €150.000 imposto pelo Ministério da Cultura, equivalente a 10% do orçamento global do teatro. Entre as afirmações do Director do TMA lia-se: “(…) uma situação de crise que favorece o desenvolvimento da confusão e o fortalecimento daquelas forças que não desistem de empurrar a Arte e a Cultura para as ‘leis do mercado’ (…)”; “(…) revigoramento da luta já antiga e persistente contra as subvenções dos Poderes Públicos aos Teatros, tendo por fim a mercantilização da Cultura e da Arte e a subversão do preceito constitucional que garante o direito de todos à fruição cultural e artística.”; “No TMA não estamos dispostos a assistir a esta avançada do Ministério da Cultura de uma forma conformista e passiva”. (Joaquim Benite assina ainda
este texto no site do TMA).


(Clicar na imagem para aumentar)
Fiquei a pensar até que ponto a própria forma do TMA reagir à crise e à situação concreta gerada pelos cortes em Portugal não estará a revelar algum conformismo e passividade. Quem diz TMA, diz também outras estruturas. Muitos países passaram ou estão a passar por crises idênticas. Em todos eles ouvem-se vozes, oficiais e outras, que consideram a crise uma oportunidade de olhar para o sector e para a forma como funciona, um olhar esse que deve ser honesto e realista. Em vez de nos agarrarmos aos direitos ‘adquiridos’, à nossa dependência do Estado, a uma retórica que pretende equiparar a gestão saudável e eficiente das nossas instituições à mercantilização da nossa oferta, não será este o momento de procurarmos estabelecer outras relações, que nos permitirão criar uma visão mais arrojada e perspectivar um futuro mais estável e sustentável? Não será este o momento de avaliarmos os recursos (financeiros e humanos) e de procurarmos optimizá-los e gerí-los de forma mais prudente, eficiente e imaginativa? Incluindo o que se gasta em selos e telefonemas?

Não será também o momento de arranjar coragem para decisões difíceis? Quando há necessidade de fazer cortes, a opção mais óbvia parece ser cortar na programação, mantendo os custos fixos, custos esses sobretudo com o pessoal. Não estaremos, porém, a esquecer que a razão porque as nossas instituições existem em primeiro lugar é a programação? Não seria esta a última área onde se deveria cortar? Tanto no sector da cultura como noutros, tanto neste país como noutros, os analistas da crise apontam para a inflação no número de funcionários em muitas instituições públicas, que parece que afinal servem para empregar pessoas. Serão todas necessárias? Serão todas competentes? Terão todas formação adequada para as funções que desempenham? Os analistas dizem que não. A minha experiência também diz que não.

Olhemos, sim, para a crise como uma oportunidade. A oportunidade de desenvolvermos novos modelos de gestão, de nos adaptarmos às novas realidades, de sermos criativos e imaginativos na resolução dos problemas; a oportunidade de crescermos, saindo da alçada do Estado; a oportunidade de nos tornarmos mais exigentes, rigorosos e eficientes. Criemos, ao mesmo tempo, espaço para serem ouvidas outras vozes, de uma nova geração de profissionais da cultura, que poderão juntar o seu contributo àquele de figuras mais conhecidas, respeitadas e com um excelente conhecimento do sector (sugeria, por exemplo, a leitura do post
Crises que vêm por bem: Contribuições para um sector cultural diferente, publicado por Miguel Magalhães no blog Cost Disease Diaries no passado dia 8 de Dezembro). Procuremos ainda colocar os profissionais certos no lugar certo, integrando no sector aquelas pessoas cujos formação e know-how muito poderão contribuir para a transformação do mesmo. Enfim, juntemos os nossos esforços contra o conformismo e a passividade. Esta é uma oportunidade.

Monday 6 December 2010

De como se constrói um imigrante

Peço o título emprestado a um artigo de Ana Bigotte Vieira publicado no blog BUALA – Cultura Contemporânea Africana a 10 de Novembro. A autora apresenta, sem sentimentalismos e excessos na escrita, a situação que se vive próximo de Ceuta, em solo marroquino, lugar onde se reúnem pessoas de várias nacionalidades, à espera do momento certo para tentarem o salto desesperado e esperançado contra o arame farpado. Contra elas, a exaustão, a fome, os abusos dos donos das redes de imigração ilegal, mas também das polícias marroquina e espanhola, e o SIVE, um sistema de detecção e bloqueio dos barcos dos imigrantes em alto mar, composto por radares, câmaras de vigilância e ligação por satélite, que permite às autoridades impedirem o acesso à costa.

 

Ao ler o artigo de Ana Bigotte Vieira, lembrei-me de um dos meus livros favoritos. Eldorado, de Laurent Gaudé (ed. ASA), veio parar nas minhas mãos por acaso. Comecei a ler com alguma indiferença - não tinha mais nada para ler naquele dia - mas rapidamente a escrita do autor francês me captivou e nãoJustify Full consegui largar o livro até o acabar. Esta é a história do comandante Italiano Salvatore Piracci, que durante vinte anos patrulha o Mediterrâneo e intercepta as embarcações dos imigrantes clandestinos, muitas vezes abandonadas em alto mar pelos traficantes. Um dia, a sua fé na missão é profundamente abalada quando é confrontado por uma sobrevivente que perdeu o seu filho durante a viagem. O comandante abandona tudo e todos e segue o caminho dos imigrantes, tornando-se um deles. Paralelamente, seguimos a história de dois irmãos que saem do Sudão esperando poder chegar à Europa, o novo Eldorado. Só um deles chegará ao destino.
Foi também ao livro de Laurent Gaudé que pensei quando olhei pela primeira vez para a obra do artista camaronês Barthélémy Toguo Road for Exile, integrada na exposição Islands Never Found, apresentada no Museu Estatal de Arte Contemporânea de Thessaloniki, Grécia. Mesmo antes de saber qual era o título da obra, a fragilidade no equilíbrio das peças amontoadas no barco, a falta de espaço, a transparência do mar feito com garrafas de vodka (bonito, mas duro e enganador ao mesmo tempo), lembrou-me as histórias contadas por Gaudé, o universo por ele descrito. Barthélémy Toguo criou até agora cinco versões da peça Road for Exile. Uma delas foi apresentada no ano passado no Carpe Diem no Bairro Alto (ler aqui).
Recentemente li mais um romance cujo tema era a imigração. Leaving Tangier (não traduzido para português), do poeta e escritor marroquino Tahar Ben Jelloun, é um livro que conta a história de dois irmãos marroquinos que procuram uma vida melhor em Espanha. Um livro sobre uma realidade que em grande parte desconhecia (sobre o regime marroquino ou sobre as relações amorosas e a homossexualidade num país árabe), o contraste sempre presente entre o tradicional e o moderno, e também entre a Europa e a África do Norte. A abordagem a estas temáticas torna-se mais interessante pelo facto de o autor estar radicado em Paris há quarenta anos, vivendo entre (ou dentro de) as duas culturas.