Castelo de Mértola (Foto: Fátima Alves) |
Uma família chega ao sopé do castelo de Mértola. Tem
quatro crianças, uma delas com mobilidade bastante condicionada; um rapazinho
nos seus 10-11 anos. Um dos irmãos pega no andarilho e transporta-o a correr
até ao topo dos degraus que levam à entrada do castelo. A mãe apoia o seu filho
no braço e começam os dois a subir lentamente os degraus. A meio, sugere-lhe
fazer uma pausa. O rapaz prefere continuar. Faz um esforço enorme para colocar
o pé, que treme do cansaço, no degrau seguinte. Não quero ultrapassá-los;
sigo-os, quero acompanhá-los no seu ritmo. Chegando à entrada do Castelo, o
rapaz finalmente descansa. A mãe avança um pouco para avaliar a dificuldade do
resto do caminho.
Assisti a esta ‘subida ao castelo’
no fim de uma semana em que participei em dois encontros sobre museus e
acessibilidade: o seminário anual do GAM – Grupo para a Acessibilidade nos
Museus, no Seixal, intitulado Programar para a Diversidade, e o 1ºEncontro Transfronteiriço de Profissionais de Museus, em Alcoutim. Dias
antes da realização do seminário do GAM, encontrei-me com uma colega polaca que
me colocou a seguinte questão: “O que esperas destes encontros”?
Fala-se bastante de acessibilidade
entre os profissionais de museus, cada vez mais. E o conceito de
‘acessibilidade’ está constantemente a crescer e a alargar-se. Não se trata
apenas da preocupação em e da obrigação de dar resposta às necessidades das
pessoas com deficiência (física e cognitiva), mas de um amplo leque de
necessidades intelectuais, sociais e culturais dos cidadãos. Trata-se, ainda,
de gerir e de saber aproveitar uma cada vez maior vontade e necessidade das
pessoas em estarem envolvidas no processo de tomada de decisões, de forma a que
se revejam nos produtos finais propostos pelos museus ao público (a minha
comunicação sobre este tema em Alcoutim encontra-se disponível na coluna da
direita).
Escrevo este texto quase uma
semana depois e apercebo-me que as coisas que mais me marcaram nesses dois
encontros e que mais me fizeram reflectir estão todas ligadas a questões de mentalidade,
da nossa mentalidade, dos profissionais de museus.
Fernando António Baptista Pereira,
professor na Faculdade de Belas-Artes e comissário de várias exposições
apresentadas em Portugal e no estrangeiro, fez a conferência de abertura no
seminário do GAM. Questionado sobre a sua melhor e a sua pior exposição, não
hesitou em admitir que as suas piores exposições, apesar de lindíssimas, foram
aquelas que fez para os seus pares, aquelas que não foram feitas a pensar no
público em geral. Dá esperança ouvir isto da parte de alguém que comissariou e
voltará a comissariar exposições que atraem um grande número de pessoas. E como
Fernando António Baptista Pereira, haverá, com certeza, mais profissionais
desta área (comissários, directores de museu, curadores) que, mesmo que não o
digam, tenham consciência que assim é. Por isso, uma pessoa fica a pensar
quando é que podemos esperar ver nos museus portugueses, e em particular nos
museus nacionais (públicos) portugueses, exposições que possam ser entendidas pelos
não-especialistas que as visitam e que são a maioria dos visitantes. Exposições
que possam ser fonte de novos conhecimentos, de verdadeiro prazer e de
descoberta, em vez de um meio de comunicação e de diálogo entre poucos
entendidos e uma fonte de frustração para os restantes?
Em Alcoutim, assistimos à
apresentação de Maribel Rodriguez Achutégui “Redacção de textos expositivos
para todos os públicos”, que veio lembrar-nos que é possível, sim, escrever
para todos, sem infantilizar, sem banalizar o discurso, sem pôr em causa a
precisão científica da informação apresentada. A alguns de nós, a sua
apresentação trouxe memórias do excelente seminário Sabe escrever para todos? A acessibilidade da comunicação escrita nos museus, o
primeiro seminário anual do GAM, em 2006, que contou com duas presenças
marcantes: a de Helen Coxall (consultora em museum language – sim, a
especialidade existe, assim como existe extensa bibliografia sobre a matéria,
que em parte se encontra no site do GAM) e a de Julia Cassim (designer ligada
ao Helen Hamlyn Centre for Inclusive Design). Mais
tarde nesse ano, Helen Coxall fez um memorável workshop, Am I Communicating?
Writing effective museum texts, organizado pelo GAM na Fundação Calouste
Gulbenkian. Qual terá sido o impacto dessas iniciativas em Portugal? Quem
trabalha em serviços educativos queixa-se frequentemente da dificuldade em
‘convencer’ comissários e directores de museus da necessidade dos textos (para
as exposições, mas também para todos os suportes de comunicação do museu) serem
escritos numa linguagem mais acessível
(se bem que as excepções existem: lembro-me, por exemplo, dos textos da
exposição sobre o automóvel no Museu dos Transportes e Comunicações no Porto ou dos do
Museu da Comunidade Concelhia da Batalha, para
referir apenas dois). Uma pessoa fica a pensar, porque é que é que tão difícil
convencê-los? Será que nunca ouviram as queixas dos seus visitantes,
destinatários últimos, diz-se, desta oferta? Ou será que não se importam?
Uma outra apresentação brilhante e
muito ‘educativa’ foi a do designer gráfico Filipe Trigo, que nos trouxe uma
série de exemplos daqueles que já todos temos visto nas nossas visitas a museus
e exposições: bíblias na parede (ou book on the wall), letra pequena,
legendas escondidas ou colocadas muito baixo ou muito alto, contrastes que
tornam a leitura impossível, anarquia na apresentação dos conteúdos (que ficam
onde der mais jeito, sem uma lógica por trás). Esta apresentação merecia ser
vista por comissários e directores de museus, mas também por designers
gráficos, uma vez que não existe consenso sobre quem é que impõe soluções a
quem. Existe é uma desconfiança mútua e talvez alguma indefinição sobre o papel
de cada um e, entre os dois, sobre o papel dos museólogos e/ou profissionais
dos serviços educativos e/ou profissionais da comunicação. Não faria sentido
que cada um fosse ouvido sobre a sua área de especialidade, com o objectivo
final de servir melhor as necessidades dos visitantes?
Hoje poderia responder melhor à
pergunta da colega polaca, “O que esperas destes encontros?”. Espero que da
próxima vez que se organizar um encontro para se falar de acessibilidade
(qualquer tipo de acessibilidade) haja mais directores de museu, comissários de
exposições, arquitectos e designers na audiência. Esta não é uma questão que
diga apenas respeito aos serviços educativos. Diria até que diz cada vez mais
respeito àqueles que tomam as decisões finais. Para que serve sensibilizar e preparar
tecnicamente nos cursos de museologia futuros profissionais, que só daqui a 20
ou 30 anos estarão numa posição de tomar decisões, se nos próximos 20 ou 30
anos continuarem a encontrar a maior barreira de todas dentro dos próprios
museus? Se estes encontros continuarem a ser uma oportunidade para se
encontrarem os já sensibilizados e para concordarem entre eles, o seu impacto,
então, continuará a ser mínimo ou quase inexistente. Há necessidade de assumir
compromissos e não ficar pelo discurso politicamente correcto. Há também a
obrigação de cumprir a lei. E tem que ser agora, não daqui a 20-30 anos. Não
custa nada (e não custa mais…).
Vídeos
Joaquina Bobes, Textos expositivos y visitantes: ¿hablamos el mismo idioma?
Julia Cassim, Inclusive design
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