Monday, 16 December 2013

Blogger convidado: "Museus na Ucrânia: Aprendendo a estar com as pessoas", por Ihor Poshyvailo (Ucrânia)

O Museu Ivan Honchar em Kiev, onde trabalha o meu amigo e colega Ihor Poshyvailo, publicou um post no Facebook no passado dia 20 de Novembro que dizia: “O Museu Ivan Honchar apoia os protestos nacionais contra a política do governo e contra os crimes da polícia para com os estudantes em protesto, e encoraja as pessoas a juntarem-se ao actual movimento popular para a democracia. Não sejam indiferentes – venham à Maidan! Só poderemos ganhar se estivermos juntos!”. Fiquei profundamente impressionada com esta afirmação tão audaz da parte de um museu nacional e pedi ao Ihor para partilhar connosco a sua reflexão sobre o papel que os museus podem desempenhar nas suas sociedades em momentos históricos, como estes que estão a ter lugar actualmente na Ucrânia. Não tenho palavras para agradecer ao Ihor o seu lindíssimo texto. mv

Foto: Bohdan Poshyvailo

No dia 1 de Dezembro, a minha amiga e colega americana Linda Norris publicou o post  If I Ran a Museum in Kyiv Right Now no seu blog The Uncataloged Museum. Foi a resposta imediata desta especialista em museus, muito conhecida na Ucrânia, ao ataque nocturno da polícia de choque a manifestantes pacíficos, sobretudo estudantes, em Kiev. Uma onda de manifestações e de agitação civil surgiu no final de Novembro, resultado de uma reivindicação maciça em Kiev por uma maior integração europeia, que se chamou “Euromaidan”. Guy Verhofstadt, membro do Parlamento Europeu e antigo Primeiro-Ministro da Bélgica, considerou-a a maior manifestação pró-Europa na história da UE. Victoria Nuland, Assistant Secretary no United States Department, declarou que a Euromaidan é um símbolo do poder da sociedade civil: “É sobre justiça, direitos civis e a exigência das pessoas de ter um governo que as ouve, que representa os seus interesses e que as respeita.”

No seu post, Linda coloca-se no lugar do director de um museu ucraniano e apresenta um plano de acção em três áreas: representação dos valores e ética da comunidade, serviço à comunidade, e colecção. Mais especificamente, teria feito uma declaração pública, teria olhado para o comportamento ético e a transparência no seu próprio museu, teria aberto as portas e convidado o público a entrar gratuitamente. Teria mantido o museu aberto cedo de manhã e até tarde à noite, oferecido chávenas de chá, proporcionado um lugar quente para reflexão e contemplação e criado, na exposição, um espaço para as pessoas escreverem ou desenharem sobre as suas esperanças e medos; teria encorajado os participantes a pensar sobre a Ucrânia como uma nação, sobre a beleza, a verdade e as histórias complicadas. Mais do que isso, teria permitido e até encorajado os funcionários do museu a participar nos protestos, se assim desejassem. Se a Linda fosse directora de um museu de história, estaria na rua a coleccionar objectos para a colecção, começando por Tweets e posts no Facebook, histórias orais, bandeiras, estandartes e sinais feitos à mão, e fotografias de barricadas, capacetes e fardas de polícia e até antídotos ao gás lacrimogéneo feitos em casa.

Foto: Bohdan Poshyvailo
Realmente, esta é uma reacção simples, eficaz e aparentemente comum para um típico museu americano ou ocidental. Um museu que é “sobre”, “para” e “com” as pessoas. Tinha sido este o tema da comunicação de uma outra colega e amiga, Maria Vlachou, na European Museum Mediators Conference em Lisboa, no ano passado (aqui). Servir a comunidade é particularmente importante para os museus modernos, que se estão a tornar em agentes de comunicação, operando não apenas explicitamente ao nível dos objectos de história, ciência, cultura, educação e entretenimento, mas também a um nível implícito, abordando as esferas do poder, da ideologia, dos valores e da identidade.

Mas para mim, no contexto dos actuais eventos em Kiev, a combinação das palavras “museus com as pessoas” ganha um novo sentido, um sentido especial. Isto parece bastante óbvio, banal até. Mas será comum para a Ucrânia e outros nações pós-soviéticas? Os nossos museus querem, podem e sabem como estar com as pessoas? Especialmente num período de revoltas sociais e tensões políticas, em situações invulgares, que exigem de um museu um olhar aberto e honesto nos olhos dos seus actuais e potenciais visitantes, das comunidades que representam.

Foto: Bohdan Poshyvailo
Acontece que a maioria dos museus na Ucrânia são estatais e, por isso, dependem ideologicamente, financeiramente e administrativamente do governo. Portanto, como deveriam comportar-se durante um conflito profundo entre o governo e a sociedade? Espero que para muitos museus a resposta seja teoricamente óbvia – o mesmo que para os soldados do exército e da polícia de choque que juraram “estar ao serviço das pessoas”. Serão os museus ucranianos observadores indiferentes dos eventos empolgantes da Praça da Independência, que têm tido cobertura a nível internacional? Como é que podem responder e mostrar-se inclusivos para as necessidades da sociedade e das comunidades que representam e que servem?

Ironicamente, no momento que o Presidente da Ucrânia Yanukonych estava de visita no Museu Qin dos Soldados em Terracotta na China e escrevia no livro dos convidados de honra, o ICOM Ucrânia e uma série de museus ucranianos emitiam declarações públicas condenando a inesperada repressão de manifestantes pacíficos e a retirada do pacto de associação à União Europeia. O Conselho de Directores dos Museus de Lviv coordenou as declarações de protesto de vários museus de Lviv. Um dos mais antigos museus etnográficos da Europa Oriental-Central, o Museu de Etnografia e Artesanato de Lviv, exibiu um estandarte na sua varanda que dizia “Apoiamos as exigências do Euromaidan”. Em Kiev, uma dúzia de museus fizeram declarações públicas, incluindo o Museu da História de Kiev que é gerido pela Câmara e tutelado pelo seu Presidente, cuja sede foi ocupada pelos manifestantes. O Museu-Memorial Pavlo Tychyna (perto de Maidan) abriu as suas portas aos manifestantes e ofereceu-lhes chá, um espaço para descansarem e programas culturais. O Museu-Reserva de História “Tustan” na região de Lviv pediu às pessoas através do Facebook para cozinharem bolos de mel, escreverem uma mensagem e enviarem aos activistas que gelam na rua. O Museu Ivan Honchar, que glorifica as eternas virtudes tradicionais do povo ucraniano – liberdade, fé, honra, democracia e humanismo, levou os seus programas educativos para a Euromaidan. Realizou uma série de flash mobs (como a instalação e decoração do tradicional símbolo ucraniano do Natal – Didukh, “o espírito dos antepassados”, aos pés do monumento da Independência) e organizou celebrações populares, danças e canções no epicentro da área dos protestos.

Praticamente todos os museus na Ucrânia são geridos e financiados pelo estado. Naturalmente, estamos preocupados com eventuais repercussões. Soubemos do director do famoso Museu do Território do Terror em Lviv que foi inquirido pelo Departamento de Investigação do Gabinete do Procurador-Geral como “testemunha” dos eventos na Euromaidan. Ouvimos sobre o condutor do metro de Kiev que foi despedido simplesmente por dizer aos passageiros como encontrar a saída mais próxima das estações centrais que estavam bloqueadas para se juntarem aos manifestantes. Ouvimos sobre os comandantes da polícia de choque que foram dispensados em algumas regiões quando os seus soldados se recusaram a ir a Kiev e atacar os manifestantes.

Foto: Bohdan Poshyvailo
Claro que o síndrome da Praça Tahrir está vivo nas memórias de muitos profissionais de museus, mas penso que a Euromaidan ucraniana é uma grande oportunidade para muitos museus testarem a sua capacidade de estar com as pessoas. Vi esta necessidade nos olhos brilhantes de muitos manifestantes pacíficos nas últimas três semanas. Cheguei à conclusão que, para estarem com as pessoas, os nossos museus não precisam necessariamente de fazer coisas extraordinárias, deveriam sobretudo ouvir com atenção o pulso da nação e abrir as suas portas aos corações gelados.



Ihor Poshyvailo é Etnólogo, doutorado pelo Instituto de Estudos Artísticos, Arte Popular e Etnologia, Academia Nacional das Ciências da Ucrânia (1998). É Director-Adjunto do Centro Nacional de Cultura Popular “Ivan Honchar Museum” (Kiev). Co-moderador e co-organizador de seminários internacionais sobre gestão de museus (desde 2005). Participou no International Visitor Program (EUA, 2004), Global Youth Exchange Program (Japão, 2004) e The World Master’s Festival in Arts and Culture (Coreia do Sul, 2007). Curador de projectos artísticos internacionais, incluindo a exposição itinerária Smithsonian Folklife Festival: Culture  Of, By, and For People” (2011), “Interpreting Cultural Heritage” (2011), “Home to Home: Landscapes of Memory” (2011-2012). Foi Fulbright Scholar no Smithsonian Center of Folklife and Cultural Heritage (2009-2010) e Summer International Fellow no Kennedy Center (2011-2013). Ihor escreveu um outro post para este blog em 2012, intitulado Reinventando e tornando os museus relevantes.

Monday, 9 December 2013

'Paideia': onde se encontram educação e cultura

Visita escolar ao Crystal Bridges Museum of American Art (Foto: Stephen Ironside, retirada do site Education Next)
Penso com muita frequência ultimamente nos resultados do estudo de 2008 sobre participação cultural do National Endowment for the Arts, que indicavam que a educação para a arte na infância acaba por ser um factor mais determinante do que a idade ou o estatuto socioeconómico no que diz respeito à participação cultural na idade adulta. 

Lembrei-me novamente destes resultados depois de ler um artigo no New York Times que falava de um estudo no Crystal Bridges Museum of American Art que procurou avaliar os efeitos das visitas escolares, o seu valor educacional. Entre várias coisas muito interessantes (relacionadas com a capacidade de pensamento crítico, a empatia, a tolerância, o interesse pela arte – ler pormenores aqui), houve duas que me chamaram particularmente a atenção:

1. Os benefícios observados eram significativamente maiores para alunos que pertenciam a minorias étnicas, famílias com baixo rendimento e provenientes de escolas rurais, sendo que muitos deles visitavam um museu de arte pela primeira vez.

2. Tendo sido dada a possibilidade de regressar ao museu (através de distribuição de cupões que continham um código) tanto aos alunos que participaram nas visitas escolares no âmbito do estudo como também a outros que não faziam parte da amostra, verificou-se que os alunos do estudo demonstravam um maior interesse em voltar (mais 18% do que os restantes alunos).

Os estudos referidos foram realizados em território americano, mas penso que os resultados não teriam sido muito diferentes se se tratasse dos nossos países, por isso, temos que olhar para eles com atenção, na medida em que vêm afirmar a importância da educação para a arte na infância como factor determinante para a participação cultural na idade adulta, e, igualmente, a importância da escola e das visitas escolares aos espaços culturais como um meio para a criação de condições de igualdade no acesso à cultura.

A escola teve desde sempre um papel determinante no contacto com a arte e com a cultura em geral. O resultado não foi (e continua a não ser) sempre o melhor. Todos tivemos experiências de visitas escolares a espaços culturais muito pouco interessantes – aborrecidas mesmo – ou pela falta de preparação da visita pelos professores ou pela falta de qualidade da oferta em si (por exemplo, ambientes pouco acolhedores e desconfortáveis, discursos formatados e muito pouco adequados para os interesses e necessidades específicas dos jovens visitantes/espectadores, etc.). No entanto, temos, igualmente, memórias de visitas escolares que nos deixaram maravilhados, entusiasmados, inspirados, que nos mostraram caminhos e que, não poucas vezes, determinaram as decisões de alguns de nós relativamente ao que íamos querer fazer na nossa vida.

O papel da escola e das visitas escolares a espaços culturais torna-se ainda mais determinante no caso daqueles alunos cujo meio familiar não lhes proporciona certas oportunidades, por falta de hábitos ou de meios ou de conhecimento. As visitas escolares são, provavelmente, a única hipótese que certas crianças e jovens terão de entrar num museu ou num teatro. Qual o significado disto numa altura em que a educação para a cultura e a arte tem cada vez menor expressão nos currículos escolares, neste e noutros países, e em que os cortes limitam cada vez mais a possibilidade das escolas organizarem estas saídas?

Significa que aquelas crianças e jovens cujas famílias não lhes proporcionam certas oportunidades (de visita ou de prática artística) se vêem privadas de usufruir de uma oferta, de uma experiência, que muito pode contribuir para o seu desenvolvimento cognitivo e emocional, ultrapassando barreiras e limitações impostas pelo seu meio socioeconómico.

Significa que as crianças e jovens em geral vêem cada vez mais limitada a sua formação como futuros cidadãos activos, pensantes, críticos, emocionalmente e intelectualmente ricos.

Significa que a nossa sociedade será composta por cidadãos com menos paideia (palavra grega da qual gosto muito e que expressa o resultado da acção conjunta da educação e da cultura).

Poderíamos pensar que, na impossibilidade da escola actuar, as instituições culturais poderiam procurar reforçar o seu papel. Poderiam ser elas a ir ao encontro dos alunos nas escolas. Na verdade, isto não seria algo novo. Já existem projectos móveis (do género “o museu vai à escola” ou “o teatro vai à escola”) que têm procurado servir este propósito. No entanto, a situação que se vive neste momento – uma situação marcada por cortes financeiros tão graves no sector cultural como no sector educativo – parece ser muito pouco propícia para a intensificação e multiplicação deste género de iniciativas.

Onde ficamos, então? Será este um impasse?

Não podemos deixar que isto se torne num impasse. E digo isto sem ter neste momento nenhuma solução concreta a propor, a não ser indicar aquele caminho que me parece ser o caminho natural, óbvio: reconhecer a gravidade da situação e, mais do que procurar reagir com acções pontuais, procurar planear e estabelecer aquelas parcerias que irão permitir resistir e ultrapassar as decisões governamentais que põem em causa a qualidade do futuro de muitas gerações. Devemo-lo às nossas crianças. Sobretudo àquelas para quem, se a via não for esta, dificilmente haverá outra.



Monday, 2 December 2013

Blogger convidado: "Construindo memórias", por Ricardo Brodsky (Chile)

Ricardo Brodsky, Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Santiago de Chile, abriu a conferência da Museums Association em Liverpool no passado dia 11 de Novembro. A fotografia que o museu colocou no Facebook fez-me logo sentir pena de não ter podido assistir ao seu discurso. Mas contactei o Ricardo e ele teve a amabilidade de me enviar o seu texto e de autorizar a sua publicação neste blog. Apresentamos aqui uma versão editada, mais curta, mas existe um link no fim para os interessados em ler o texto na íntegra. mv


Este é o nosso 11 de Setembro, o início da história à qual irei referir-me e que inspirou o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (MMDH) no Chile.

1. Memória

A memória não é um exercício nostálgico. A memória é a nossa identidade, o que somos. Poderíamos dizer que a memória habita em nós de tal forma que define as nossas ideias sobre o presente, os nossos valores e a nossa percepção do futuro.

No seu texto La Muralla y los Libros, Jorge Luís Borges fala do Emperador Shih Huang Ti, que construiu a muralha da China e ordenou, ao mesmo tempo, que todos os livros produzidos antes dele fossem queimados. Com a muralha pretendia proteger o seu país dos inimigos externos e queimou os livros porque os seus opositores recorriam a eles quando queriam louvar os seus antepassados. O mesmo foi testemunhado nos anos de Pinochet, quando as instituições do país foram destruídas, desapareceram pessoas, foram queimados livros e as pessoas ligadas à cultura e história popular foram banidas porque, de alguma forma, representavam todas uma epopeia que tinha que ser abolida.

Uso a palavra ‘abolida’ e não a palavra ‘esquecida’ de propósito. O género de memória de que estamos a falar não equivale à capacidade de armazenamento de um disco rígido num computador, onde tudo é registado sem hierarquia. O oposto à memória não é o esquecimento mas a abolição, a eliminação. A memória funciona com eventos exemplares, com o que nos permite aprender lições, dar sentido à experiência vivida. A memória é, por isso, um passo mais alto, além do trauma e dos sentimentos de desespero, solidão e depressão que a memória pode causar. A memória é o que permite à vida continuar, com a esperança de voltarmos atrás, de voltarmos a nos apoiar nos nossos próprios pés. Com uma narração sobre o nosso passado e uma aposta sobre o nosso futuro.

2. Ligações

No MMDH trabalhamos com material que é extremamente complexo e sensível: verdade, justiça, vitimização, memória, reconciliação, reparação. Todas estas são ideias que nos questionam permanentemente e que nos obrigam, repetidamente, a reflectir sobre os conceitos que são a base do nosso trabalho. É impossível, no entanto, perceber a nossa instituição se não percebermos o processo do qual resultou, assim como as necessidades sociais e políticas que é suposto serem consideradas.

Em 11 de Setembro de 1973 começou uma das experiências políticas mais traumáticas do Chile. As forças armadas, lideradas por uma junta militar de comandantes-em-chefe, levantou as armas contra o Governo de Unidade Popular de Salvador Allende, instalando uma ditadura cruel que durou 17 anos, suprimindo os direitos legais e cometendo graves violações contra os direitos humanos, que resultaram na morte e desaparecimento de mais de três mil pessoas e a prisão política e tortura de mais quarenta mil, assim como o exílio de quase um milhão de Chilenos.  

Dezassete anos mais tarde, no seguimento da vitória da oposição num referendo realizado em 1988, com o objectivo de prolongar o governação de Pinochet, foi iniciada uma transição complexa e difícil para a democracia, que incluiu enfrentar as dívidas espinhosas deixadas pela ditadura, não apenas na esfera social e política, mas especialmente na área da recomposição moral da nossa sociedade, ou seja, na esfera da verdade, da justiça e dos direitos humanos. As políticas de direitos humanos do governo democrático têm-se centrado em quatro pilares ou exigências básicos: verdade, justiça, reparação e memória.

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: MMDH)
3. Verdade

Quando a democracia foi recuperada, o primeiro esforço na área dos direitos humanos no Chile foi no sentido de procurar estabelecer a verdade sobre as mais sérias violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura de Pinochet. Foram estabelecidas duas comissões, envolvendo pessoas com altas credenciais, que afirmaram que as violações dos direitos humanos cometidas por agentes do estado eram massivas, sistemáticas e tinham sido aprovadas ao mais alto nível do governo de então. Esta afirmação, apoiada pela existência de provas e testemunhos irrefutáveis, permitiu ao país saber a verdade sobre a existência de mais de 3.000 detidos-desaparecidos e executados e permitiu ainda dar um segundo passo muito relevante, que foi a abertura da possibilidade de estabelecer políticas de reparação para as vítimas e as suas famílias. Em 2003, a segunda comissão, criada para investigar os casos de pessoas que foram presos políticos e que tinham sido torturadas, reconheceu a existência de 38.254 vítimas de tortura.  

4. Justiça

A luta pela justicça no processo de transição tem sido o aspecto mais difícil e polémico. Desde o fim do regime militar e até 1998, a investigação judicial teve, em geral, escassos progressos e era normal os tribunais aplicarem um decreto de amnistia passado pela ditadura militar. Em 1998, com a detenção de Pinochet em Londres, ordenada pelo juiz espanhol Baltazar Garzón, foram criadas novas condições, que produziram, lentamente mas gradualmente, alguns progressos nas investigações judiciais, que permitiram identificar aqueles directamente responsáveis por violações dos direitos humanos. Hoje em dia, existem 1.426 casos abertos, dos quais 1.402 lidam com desaparecimentos ou assassinatos. No entanto, apenas 66 agentes servem penas de prisão, entre eles algumas figuras-chave da DINA (Departamento de Inteligência Nacional) e da CNI (Agência de Inteligência Nacional); 173 agentes foram condenados mas não estão na prisão, por várias razões, e existem ainda 528 agentes cuja acusação foi concluída, mas que ainda não tiveram uma sentença definitiva. 

5. Construindo memória

Neste contexto, o governo de Michelle Bachelet criou em 2010 o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, como um projecto de reparação moral ou simbólica para as vítimas da ditadura e como um projecto educativo, de forma que as novas gerações possam entender o valor do respeito pelos direitos humanos.

Museo de la Memoria y los Derechos Humanos

O MMDH, onde a sociedade chilena cumpre simbolicamente o seu dever de memória, olha directamente para o seu passado e dá resposta ao direito de memória para as vítimas da ditadura. As suas origens podem ser encontradas nas recomendações do relatório de verdade de 1991 e na afirmação em 2004 da UNESCO que os arquivos de varias organizações de direitos humanos do Chile fazem parte da memória do mundo. Além disto, existe uma exigência por parte das organizações de familiares e vítimas de abusos dos direitos humanos. O museu dispõe da maior colecção de documentos, fotografias, testemunhos e filmes sobre a ditadura no país e expõe-los ao público, procurando criar empatia pelas vítimas e fazer reviver os valores e lições das experiências de abusos dos direitos humanos. Os grupos de vítimas estão activamente envolvidos na vida do museu e sentem-se incluídos.

A missão do MMDH é “dar a conhecer as violações sistemáticas dos direitos humanos em nome do estado chileno entre 1973 e 1990, de forma a – reflectindo eticamente sobre a memória, a solidariedade e a importância dos direitos humanos – a vontade da nação seja reforçada, para que não se repitam nunca mais repetidas acções que afectam a dignidade humana”.

Museo de la Memoria e los Derechos Humanos (Foto: MMDH)
Qual o lugar deste museu na sociedade chilena hoje?

Pierre Nora disse que os Lugares de Memória são construções que procuram “fazer parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado das coisas, imortalizar a morte, materializar o que é imaterial de forma a cativar o maior número de sentidos no menor número de sinais”. Neste sentido, o MMDH tem como missão recuperar e preservar os vestígios desse passado traumático, dar testemunhos do sofrimento, de forma que o conhecimento do público sobre o que se passou possa quebrar o círculo de silêncio e impunidade e dar ênfase à necessidade de prevenir que algo assim volte a acontecer. Noutras palavras, o Museo de la Memoria, como expressão de uma política pública de reparações, é o principal gesto do Estado de reparação moral para as vítimas da ditadura: é aqui que a história ou a biografia de cada uma das vitimas é encontrada ou construída e onde a sua dignidade, que lhes foi arrancada, lhes é devolvida. O MMDH tornou-se numa referência para o país e a região, estando a ser construídos projectos similares em países como Peru, Brasil, Argentina e Colômbia.

Dito isto, devo também dizer que este é um projecto localizado na terra das controvérsias. Cada museu que lida com histórias traumáticas sabe da tensão entre história e memória, entre a explicação dos acontecimentos organizados cronologicamente e a experiência subjectiva das memórias apoiadas por testemunhos. Os museus de memória enfrentam, precisamente, o desafio de conjugar esta tensão, de forma que os testemunhos possam ser exemplares e representativos, transcendendo a mera experiência pessoal ou aquela dos grupos directamente afectados. Apenas resolvendo esta tensão de uma forma positiva pode a mensagem ser universal e ligar as exigências para verdade e justiça com um imaginário democrático mais amplo.

De acordo com alguns, a museografia do MMDH coincide com o que Pierre Nora chama de transformação da memória em história, ou seja, “depende completamente do que é mais preciso nos rastros deixados, do que é mais natural nos destroços, do que é mais concreto nos registos, o mais visível na imagem”. Certamente, os visitantes enfrentam os vestígios do passado, as caras dos desaparecidos, o bombardeamento de La Moneda, os testemunhos dos que foram torturados, a angústia das famílias. São forçados a viver uma experiência de apreensão, de compaixão, empatia e emoção. Mas encontram também os documentos, os ficheiros legais, os decretos que levam a uma experiência de confronto, de análise, de comparação, de visualização do contexto em que a violência teve lugar. Neste sentido, o museu propõem uma narrativa capaz de transmitir sentido, começando por um sentimento de empatia para com as vítimas.

A criação do MMDH gerou uma grande controvérsia no país desde o primeiro dia. Estes são precisamente os tópicos desta conferência. Como lidamos com questões sensíveis e controversas numa instituição que deve apresentar uma história que é ainda viva na sociedade chilena, uma vez que muitos dos seus actores ocupam ainda lugares públicos e as famílias chilenas vêem ou sofrem ainda as consequências desse período?

As atitudes críticas perante o Museu de la Memoria ou negam a existência de violações dos direitos humanos ou as justificam, invocando a necessidade de travar uma guerra contra uma ameaça representada por partidos marxistas. Há uma crítica mais ligeira da parte de outros grupos, acusando o museu de distorcer a história mostrando apenas um aspecto do período da ditadura (as violações dos direitos humanos) e fragmentando o tempo, não permitindo, assim, às pessoas visualizarem as causas da ditadura militar. Resumindo, os críticos apontam para a parcialidade do museu quando inclui uma visão desse período, aquela das vítimas. Isto significaria que a narrativa não é tão objectiva quanto devia e, sobretudo, que não nos permite saber porque é que teve lugar a crise política de 1973, culminando no golpe de estado e nas violações dos direitos humanos.

Instalação de Alfredo Jaar no Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Foto: Cristóbal Palma para o jornal El País) 
Para nós, a missão do museu é sensibilizar o público em relação à gravidade das violações dos direitos humanos no período Pinochet, e esta sensibilização não tem um propósito político ou eleitoral, mas, sim, um propósito moral, ou seja, transformar o respeito pelos direitos humanos num imperativo categórico na nossa coexistência, independentemente do contexto em que tem lugar.

O Museu não pode fingir estabelecer uma leitura inequívoca do passado. Pelo contrário, a sua perspectiva é abrir múltiplas possibilidades de leitura. É importante dizer que o MMDH é entendido como um museu vivo, aberto à reinterpretação da experiência e, por isso, fornece um espaço importante para a arte contemporânea. Prova disto é a presença de obras de arte na exposição permanente, tal como o poema de Jorge Tacla escrito por Victor Jara na prisão e o trabalho de Alfredo Jaar “A geometria da consciência”, que sugere que o diálogo é um tributo às vítimas.


Leiam o discurso na íntegra aqui.

Ricardo Brodsky Baudet é Director do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos em Chile desde Maio 2011. Desenvolveu um projecto no Museo de la Memoria como um espaço de reflexão e de educação pública, dando mais importância à colecção e à exposição permanente e uma posição proeminente às artes visuais e vários eventos culturais relacionados com a memória e os direitos humanos. Foi Secretário-Geral da Federação de Estudantes no tempo da ditadura. Secretário Executivo da Fundação “Chile 21” em 1992, da Fundação “Proyectamérica” em 2006 e fundador e director da Fundação para as Artes Visuais de Santiago; organizador da primeira Trienal do Chile (2009). Foi consultor para a política cultural do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, Chile (2004-2007). Ocupou vários lugares no governo entre 1993 e 2010. Chefe da Divisão de coordenação interdepartamental da Secretaria-Geral do Ministério da Presidência (2007-2010), Embaixador do Chile na Bélgica e no Luxemburgo (2000-2004).


Monday, 25 November 2013

E tudo o vento levou?


No dia 15 de Novembro teve lugar no Convento de Cristo em Tomar o encontro “Museus e Monumentos: comunicar, inovar, sustentar”, organizado pela Direcção-Geral do Património Cultural. Houve quatro painéis: Mass media: mediação ou medianização?; Estratégias de comunicação; Marketing e branding; Fontes de financiamento, modelos de gestão. Foi um encontro interessante para mim, sobretudo pela integração nos painéis de pessoas que não trabalham em museus e monumentos e que possam trazer ao debate pontos de vista muito relevantes para todos nós. Isto é… se estivermos interessados em ouvir, em ser confrontados com as nossas práticas, em actuar no sentido de mudar para melhor.

São dois os momentos do encontro nos quais gostaria de me concentrar. O primeiro é a comunicação da jornalista Paula Moura Pinheiro, integrada no primeiro painel, “Mass media: mediação ou medianização?”. A Paula referiu-se ao trabalho do jornalista e ao seu papel na comunicação para e com o grande público. Para ela, o jornalista tem o papel do tradutor. É alguém com uma boa cultura geral, mas que tem consciência que não sabe tudo e que, por isso, procura os especialistas e as fontes mais variadas, no sentido de reunir informação. Esta informação é depois trabalhada e ‘traduzida’, para ser levada ao grande público de não-especialistas. “Os meus programas não são para os especialistas”, disse Paula Moura Pinheiro, “e os especialistas não precisam dos meus programas. Os meus programas são para quem não sabe.” Lembrou-me, inevitavelmente, do naturalista britânico Edward Forbes que escreveu em 1853: “Os conservadores de museu podem ser prodígios do conhecimento e, mesmo assim, impróprios para o seu lugar, se não conhecem nada sobre pedagogia, se não estão preparados para ensinar pessoas que não sabem nada.” E lembrou-me ainda de algo que tinha lido há uns anos no livro The Manual of Museum Management de Barry Lord & Gail Dexter Lord: que uma exposição é como um programa de televisão, pode sensibilizar, mas não torna ninguém perito.

Uma outra comunicação no primeiro painel da tarde, “Marketing e branding”, veio testar a compreensão e relevância das palavras de Paula Moura Pinheiro. O publicitário Pedro Bidarra, que esteve durante muitos anos à frente da conhecida agência BBDO, falou-nos do “Muro das Palavras”. Mostrou-nos excertos de textos que encontrou em exposições e que não lhe transmitiram absolutamente nada, porque… não os compreendeu. Os seus exemplos provocaram muitos risos na plateia, mas o Pedro insistiu: “Como querem que eu vá ver as vossas exposições se vocês próprios criam barreiras na comunicação? Não me falta interesse, gostaria mesmo de visitar, mas sinto que a vossa oferta não é para mim, não foi produzida a pensar em mim”.

Os textos do Pedro Bidarra foram muito bem escolhidos; o que não significa que são difíceis de encontrar. O discurso dos nossos museus é, em grande parte, uma conversa entre especialistas. Um enorme esforço é feito para se ganhar no fim o aplauso e aprovação dos nossos pares. Onde é que isto deixa o público, as pessoas, a nossa relação com elas?

Escrevia há duas semanas sobre a forma como os resultados do euro-barómetro foram recebidos por muitas pessoas no nosso sector e perguntava se estes mesmos resultados alguma vez nos vão fazer questionar as nossas práticas ou se vamos continuar a culpar as pessoas por falta de cultura, ignorância, desinteresse.

Penso no encontro em Tomar e no impacto que estas duas comunicações, de Paula Moura Pinheiro e de Pedro Bidarra, terão tido (ou não) na forma como os profissionais de museus presentes, e sobretudo aqueles com responsabilidades de direcção, reflectem sobre as suas práticas diárias. Qual terá sido o significado dos tantos risos na plateia enquanto o Pedro apresentava os seus exemplos? Porque naquela plateia encontravam-se, sem dúvida, pessoas que foram as autoras de textos muito parecidos com os que vimos no ecrã. Como dizia a portuguesa Sandra Fisher Martins, fundadora da campanha Português Claro, na sua TEDx Talk “The right to understand”: “Estes documentos (estava-se a referir a documentos da administração pública) não caem do céu, alguém os escreve”.


Para haver mudança, é preciso haver coragem para enfrentar a crítica; abertura para reconhecer o que não está bem; determinação em prestar um serviço melhor. É também necessário termos sentido de humor, sabermos rir dos nossos próprios erros, desde que o riso sirva para atenuar o – provavelmente inevitável – sabor amargo que deixa a crítica negativa e reforçar a vontade de fazer de outra forma, melhor. Se o riso não passar de um riso, sinto que por trás está um Rhett Butler a pensar: “Francamente, minha querida, eu não ligo a mínima”.

Monday, 18 November 2013

Blogger convidado: "Círculos de apoio", por Kateryna Botanova (Ucrânia)

Os meus dois amigos e colegas ucranianos, Ihor Poshyvailo e Kateryna Botanova, são a representação viva daquilo que é a Ucrânia hoje em dia. Um país que deseja fortemente preservar as suas tradições e destacar, assim, a sua distinta identidade cultural; um país determinado em olhar para a frente e para fora, em marcar a sua posição no mundo contemporâneo, livre de ideologias controladoras e de ofertas de “protecção”. Ihor escreveu para este blog no ano passado. Agora, é a vez da Kateryna partilhar connosco as suas ideias, ansiedades e, sobretudo, o enorme e consistente trabalho que ela e o resto da pequena equipa do Center for Contemporary Art tem estado a desenvolver, determinados em lutar contra as suas inseguranças e de ultrapassar os obstáculos para cumprirem a sua missão e assumir em pleno as responsabilidades que traçaram para eles próprios no sector cultural do seu país. mv

SPACES: Architecture of Common, CSM, 2013. Foto: Kosti​antyn Strilets, © CSM
A Ucrânia é um país peculiar onde a palavra “independente” significa algo completamente diferente do que no resto da Europa. Aqui, “cultura independente” e “instituição cultural independente” não estão apenas livres do controlo ideológico e/ou político do governo ou de qualquer outra entidade pública, mas são também definidas como não sendo dependentes de qualquer tipo de apoio financeiro público – porque não há.

Ser uma instituição cultural independente na Ucrânia significa escrever a sua própria missão de servir a comunidade, ser suficientemente corajoso para ver as lacunas na política cultural do Estado e tentar preenchê-las da melhor forma que puder, e ser completamente responsável pelo seu próprio futuro – financeiro e profissional.

No Foundation Center for Contemporary Art (CSM), Kiev, Ucrânia, começamos os nossos encontros mensais de planeamento com uma pergunta – para quem estamos a fazer isto? A nossa declaração de missão define que trabalhamos para criar uma plataforma de possibilidades para os profissionais da cultura – artistas, críticos, arquitectos, escritores, etc. – para promover a comunicação interdisciplinar, a experimentação e a inovação. Mas como é que o fazemos? Como é que sustentamos o seu trabalho quando o acesso à cultura está limitado - e, por isso, a apreciação por ela também – e não há apoios disponíveis, públicos ou privados? Quem pode criar círculos de compreensão e construir apoio para este género de arte?

O CMS é uma instituição independente e sem fins lucrativos criada em 2009, sucessor do Center for Contemporary Art estabelecido por George Soros em 1993, como parte da rede de centros de arte criada por Soros em toda a Europa Central e Oriental. Poucos sobrevivem hoje, sobretudo devido à falta de financiamento. O CSM sobreviveu graças a uma reestruturação significativa – de uma instituição grande, que tinha como objectivo apresentar o trabalho e promover a formação de artistas, para uma pequena e flexível equipa curatorial que procura promover produções experimentais, a crítica e o desenvolvimento de públicos.

Em 2010, um ano após esta transformação, quando tivemos que deixar de repente a nossa sede numa das principais universidades da capital e mudar-nos literalmente “underground”, para a cave de um prédio, Art Ukraine, uma das mais importantes revistas de arte na Ucrânia, incluiu o CSM na lista dos 10 mais importantes instituições artísticas da Ucrânia, destacando “o verdadeiro renascimento do CSM no sentido de se tornar uma das instituições mais activas”. Percebemos que a decisão desconfortável de continuarmos como uma instituição pequena - com base na convicção que é possível e necessário trabalhar nesta área onde nem as corruptas instituições estatais nem o ofensivo capital privado queiram entrar - estava certa.

SEARCH: Other Spaces. Workshop de Anton Lederer, CSM, 2012. Foto: Dmitro Shklyarov, © CSM 
A ideia de continuar a trabalhar – fazendo projectos multidisciplinares em espaços públicos, apresentando iniciativas e programas educativos e de auto-formação, criando novos espaços para o trabalho conjunto de artistas e públicos, fazendo pesquisa em história de arte e políticas culturais - foi importante. O CSM foi e ainda é um exemplo de resiliência e de criação de mudança. Enquanto nós estivermos a trabalhar, as instituições culturais independentes neste país poderão trabalhar também. É difícil, mas é possível.

Quanto mais longe vamos, melhor percebemos que, por enquanto, a maior mudança está na criação de círculos de apoio e compreensão dos públicos: apoio à cultura contemporânea e às ideias que esta articula – criando acesso não apenas aos produtos culturais, mas ao pensamento sobre o mundo em que vivemos e a sua compreensão através da cultura.

Foi em 2010 que nós no CSM tivemos a ideia de lançar uma plataforma para a reflexão crítica e a compreensão dos desenvolvimentos culturais contemporâneos – a revista digital Korydor. Criada inicialmente como uma ferramenta para a comunidade artística poder escrever e debater eventos, questões e problemas, conseguiu dentro de três anos reunir mais de 6000 leitores por mês. Quando tomámos a decisão no verão passado de lançar uma campanha de crowdfunding para a Korydor, tínhamos dúvidas e receio. A quem estamos a dirigir-nos? Os leitores de uma revista intelectual, num país sem tradição de pagar por produtos culturais, precisariam dela o suficiente para a apoiar financeiramente? Se conseguíssemos, o que é que este apoio significaria para a Korydor? Como é que a revista ia mudar? Como é que nós íamos mudar?

Mais de 200 pessoas apoiaram a Korydor, excedendo o objectivo inicial da campanha. Em três meses aumentámos o número de leitores em 20%, conseguindo mais e mais da comunidade artística para dar à comunidade de pessoas que querem que a arte faça parte da sua vida. As contribuições eram frequentemente acompanhadas pelo seguinte comentário: “(mesmo que não estivéssemos a ler a revista antes) estão a fazer algo tão importante, por favor, continuem!”.

A Korydor foi o primeiro meio de comunicação na Ucrânia que foi apoiado via crowdfunding. Seguiram-se outros, como o Public Radio, uma iniciativa independente que atingiu recentemente o seu objectivo de crowdfunding.

Project "Working Room" with Anatoliy Belov, CSM, 2013. Foto: Kostiantyn Strilets, © CSM
O CSM está a dar mais um passo no sentido de alargar o seu círculo de apoio. Daqui a três semanas, em colaboração com o Kyiv-Mohyla Business School, vamos lançar o primeiro programa especial para estudantes de MBA que permitirá a gestores de empresas falar, ver, ouvir e aprender com artistas ucranianos de diferentes géneros e gerações. Tentaremos pensar o nosso futuro juntos e ver como é que podemos todos permanecer independentes no nosso pensamento, expressão e compreensão mútua de quaisquer interesses restritos e necessidades medonhas. 


Kateryna Botanova é crítico de arte, curadora, investigadora em cultura contemporânea e políticas culturais, tradutora. Desde 2009, é a Directora do Foundation Center for Contemporary Art em Kiev, fundadora e editora principal do jornal cultural Korydor. Membro do Conselho Consultivo do festival FLOW (desde 2009), European Cultural Parliament (desde 2007), Vienna Seminar steering group (Erste Foundation, 2012), Public Council of Junist at Andrijivsky project (desde 2012), comissão de peritos do prémio PinchukArtCenter para Jovens Artistas ucranianos. A Kateryna trabalha na área do envolvimento social da arte nos processos transformativos das sociedades. Dá aulas e escreve sobre arte contemporânea, gestão cultural e crítica cultural. É Mestre em Estudos Culturais pela National University of Kyiv-Mohyla Academy. Em 2009 a sua tradução de Culture and Imperialism de Edward Said recebeu o prémio Ukrainian Book of the Year.

Monday, 11 November 2013

Auto-barómetro

Todas as imagens retiradas do Facebook da Accion Poetica.
O Eurobarómetro realizou um estudo sobre Acesso e Participação Cultural (relatório completo e sumário). O último estudo tinha sido realizado em 2007, antes da crise atingir a Europa, por isso, este estudo mais recente pode ajudar-nos a compreender os efeitos da crise nos hábitos e práticas culturais das pessoas.

Falando em termos muito-muito gerais, e no que diz respeito a Portugal, os resultados mostram que a participação dos portugueses está abaixo da média europeia em todas as actividades consideradas no estudo, tanto em termos de visitação / assistência como em termos de envolvimento em actividades culturais. As maiores diferenças registam-se na leitura de livros (UE: 68%; PT: 40%), visitas a monumentos e sítios históricos (UE: 52%; PT: 27%) e idas ao cinema (UE: 52%; PT: 29%).



A principal barreira ao acesso referida pelos europeus foi a falta de interesse e a falta de tempo. Para os portugueses, a falta de interesse foi a principal razão de não participação, registando uma percentagem mais alta que a da média europeia em todas as actividades consideradas no estudo. As actividades que menos interessam aos portugueses em relação aos restantes europeus são a leitura de livros (PT: 49%; UE: 25%), a visita a museus e galerias (PT: 51%; UE: 35%) e a visita a monumentos e sítios históricos (PT: 44%; EU: 28%).

A razão porque queria escrever hoje sobre o estudo do Eurobarómetro não é analisar gráficos e resultados. É questionar como é que vamos interpretá-los e o que vamos fazer a partir daqui, sendo profissionais da cultura. Os resultados foram sobretudo recebidos com pessimismo ou algum fatalismo; com afirmações como “Somos um país de incultos” ou “Os portugueses não querem saber, não se interessam, acham que não vale a pena” – com uma certa acusação implícita, pensei, do género “Vale a pena fazer qualquer coisa que seja para esses ignorantes e ingratos?”.


Confesso que fiquei cheia de perguntas, algumas permanentes, frequentemente discutidas neste blog, independentemente da existência de estudos formais. Tentando agrupá-las, penso que se resumem em duas grandes questões:

1ª Questão: Quão larga terá sido a definição de “participação cultural” no estudo? Terão sido apenas considerados a visitação / assistência e o envolvimento com o que podemos chamar “instituições culturais formais”?

Depois de ter acesso ao relatório completo e ao questionário, fiquei contente em ver que a definição não tinha sido estreita (considerou a participação através da Internet e actividades como a dança ou a fotografia ou os trabalhos manuais). No entanto, não tenho a certeza se, da forma como foi feita a pergunta, ajudou os inquiridos a considerar as suas actividades numa perspectiva mais ampla (quantas pessoas, por exemplo, terão pensado que o facto de terem dançado num casamento ou num club constitui uma forma de participação cultural?). Os estudos “Public Participation in the Arts” do National Endowment for the Arts, realizados de quatro em quatro anos nos EUA, disponibilizam-nos este género de detalhes relativamente a “o que exactamente; onde exactamente; como exactamente” – todos os relatórios estão disponíveis online, mas vejam, por exemplo, o último relatório completo de 2008 (alguns destaques aqui), ou os destaques do estudo de 2012, sendo que o relatório completo será disponibilizado em 2014.


No que diz concretamente respeito à participação na Internet, deveríamos destacar o facto dos portugueses usarem este meio numa percentagem acima da média europeia para jogar jogos no computador (+11%), para colocar os seus próprios conteúdos culturais online (+3%), para ouvir música e rádio / fazer o download de música / ler e consultar blogs culturais (+1%).

2ª Questão: Estarão as pessoas pouco interessadas na cultura em geral ou no género de cultura que as “instituições culturais formais” lhes oferecem? Estaremos a programar tomando em consideração as pessoas - os seus interesses, preocupações, conhecimentos prévios, perguntas, necessidades, barreiras práticas e psicológicas que as possam manter afastadas? Iremos alguma vez questionar a forma como fazemos as coisas e a sinceridade da nossas afirmação “Somos para as pessoas”?


Alguns factos pessoais: por vezes, consulto a agenda de exposições em museus e, a julgar pelos títulos, nada soa suficientemente emocionante ou interessante para visitar; um grande número de concertos e intérpretes, de todos os géneros musicais, é promovido como “o melhor do mundo”, mas isto simplesmente não chega para tomar a decisão de comprar um bilhete, uma vez que o mundo está tão cheio de “os melhores” artistas; no que diz respeito a artistas menos conhecidos, a grande maioria das instituições que os apresentam comportam-se como se devêssemos todos conhecê-los já, não acrescentando absolutamente nada ao título e/ou nome.

Portanto, isto pode ser um problema meu como consumidora. Mas pode também ser um problema das instituições culturais que desejam comunicar comigo (pelo menos, dizem que o desejam): o problema de escolher títulos interessantes e inspiradores; o problema de escolher temas (quero dizer, histórias) que possam atrair um público mais diversificado, menos especializado; o problema de tentar atrair mais pessoas usando a informação básica compreendida apenas por poucos; mas também a necessidade (diria, a obrigação) de perceber o que é que as pessoas optam por fazer nos seus tempos livres e porquê. Porque, quando eu, como pessoa / consumidora, não vou aos vossos concertos / exposições / peças de teatro / festivais, não é “simplesmente” porque sou inculta, desinteressada, ignorante ou ingrata (e, francamente, não gosto de vos ouvir dizer isso sobre mim…). Pode ser porque outros tenham sido mais sinceros no seu desejo em comunicar comigo e tenham feito um trabalho melhor em chamar a minha atenção e ganhar o meu interesse e tempo precioso.  

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Em 1996, os mexicanos não liam, em média, mais que um livro por ano. O escritor Armando Alanis Pulido, preocupado com o declínio da literatura e da poesia, e ainda com o preconceito de que a poesia era opaca, difícil de ler e de entender, virou-se para as paredes das cidades, numa tentativa de tornar a poesia parte do dia-a-dia das pessoas. Iniciou um movimento chamado Accion Poetica. Desde aquela altura, a iniciativa espalhou-se em mais 20 países da América Latina e até atravessou o Oceano Atlântico. No outro dia, o jornal Le Monde apresentava este título: As paredes da América Latina falam de amor. A assinatura uma, única: Accion Poetica.

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