Imagem retirada do website do Público |
Tem toda a razão o Secretário de Estado da Cultura quando diz “não acho justo que uma companhia, um encenador ou produtor não manifeste preocupação com as questões de público” (ler notícia). Mas é logo aqui que acaba a sua razão. Porque a preocupação não se comprova apenas e em primeiro lugar nos resultados de bilheteira. E porque a ‘criação de públicos’ se tornou nos últimos tempos em mais um conceito politicamente correcto e vazio.
Sinto-me cada vez menos confortável com a expressão ‘criação de públicos’. Porque vem reforçar a postura de ‘deus’, de ‘guardião’, que muitos de nós que trabalhamos no sector cultural assumimos. Somos os donos das instituições, sabemos (nós, e só nós) o que é que ali se deve apresentar, o que tem qualidade, interesse, valor. O que é que os outros, os ‘públicos’ que pretendemos ‘criar’, devem ver e apreciar.
Sabemos muita coisa, é verdade. Não deveríamos estar a trabalhar nesta área se não soubéssemos. Mas existe muito conhecimento, muitas experiências, muitas visões e formas de fruir das artes e da cultura também do ‘outro lado’, no meio desse ‘público’ que está aí fora, que existe e com o qual não estabelecemos ainda um contacto. Por isso, quando penso nestas questões agora, gosto cada vez mais de palavras como ‘participação’ ou ‘envolvimento’.
No seguimento disto, manifestar preocupação com as questões de público não significa, em primeiro lugar, ter em conta os resultados de bilheteira. Porque, em primeiro lugar, uma companhia ou um encenador ou um produtor não manifesta preocupação quando não está consciente ou insiste em ignorar as particularidades do meio sócio-cultural onde se insere; quando não está em contacto com as diferentes realidades ali existentes, com a arte e a cultura que se cria e que se consome nos vários meios; quando faz sempre… aquilo que sempre fez, sem adaptação nenhuma a novas tendências ou necessidades; quando encara a Comunicação como um acessório, por vezes ‘inevitável’; quando está concentrado na criação, como deve, mas sem interesse ou disponibilidade para considerar os timings necessários para se poder comunicar ao mundo exterior (aquele que queremos que venha comprar bilhetes…) qual é o sonho, a aspiração, o que está a ser feito, como e com quem; quando se recusa a dar entrevistas, quando não vai ao programa X ou Y (por considerar que representa a ‘baixa cultura’), quando faz os meios de comunicação esperar, quando não permite que se filme ou se tirem fotografias nos ensaios, quando não colabora na calendarização das entrevistas e dos ensaios de imprensa (tal como se calendarizam outros aspectos, de ordem técnica ou de produção). Uma companhia, um encenador ou um produtor não manifestam preocupação com as questões de público quando não querem entender que não basta criar, é preciso comunicar também. Faz parte do seu trabalho.
Mas porque eu não valorizo apenas os resultados de bilheteira dos teatros e dos cinemas, mas também os dos museus, penso que não se deve deixá-los de fora nesta reflexão. Porque também um director de um museu ou um curador não pode deixar de manifestar preocupação com as questões de público. E não manifesta preocupação quando, tal como outros profissionais da cultura, está concentrado apenas no seu museu sem considerar o meio em que o mesmo se insere; quando desconhece ou ignora as motivações, interesses, preocupações das pessoas que é suposto servir; quando não as envolve na actividade do museu; quando escreve textos (aquele meio de comunicação elementar, do qual todos os museus dispõem) que são entendidos apenas por ele próprio e pelos seus pares; quando se preocupa apenas em expor os objectos - de uma forma bonita, elegante, colocando (ou escondendo…) uma legenda mínima -, mas não disponibiliza simultaneamente aos visitantes os meios para poderem interpretar esses objectos, descobrirem a sua história, ficarem fascinados, comovidos, surpreendidos, rendidos; quando não se abrem canais para também os visitantes poderem contribuir nas escolhas, na interpretação, nas abordagens que se fazem; quando não se põe as pessoas à vontade no espaço (fisicamente, psicologicamente e intelectualmente). Museus místicos, fechados em si próprios, que comunicam apenas com quem já os conhece e os aprecia, que não sabem adaptar a sua linguagem, tornam-se em museus irrelevantes para grande parte da comunidade em que se inserem e não são ‘usados’ por ela, mesmo que a entrada seja livre ou o bilhete muito barato.
A resposta a dar quando a preocupação está relacionada, em primeiro lugar, com os números de bilheteira não é nada complicada, nem para os teatros, nem para os cinemas, nem para os museus: programa-se o que é mais popular; distribui-se mais convites; marca-se mais visitas de grupos escolares. Ou seja, estrangula-se o experimental, põe-se de lado o que for menos conhecido, acaba-se com a qualidade das visitas nos museus. Os números de espectadores e visitantes são importantes, sim. Mas antes de chegarem a ser indicadores de desempenho (e nunca o podem ser isoladamente), há muito por fazer na forma como as instituições culturais se relacionam com as pessoas. Tratemos da relação primeiro, com respeito e honestidade. E não nos esqueçamos das responsabilidades que o próprio Estado tem na construção da mesma, no que diz respeito aos objectivos que deve partilhar com os agentes culturais e aos recursos que deve disponibilizar, humanos e financeiros. Assim como não podemos esquecer que um apoio com dinheiros públicos deveria criar responsabilidades perante ‘os públicos’, nomeadamente de acesso – físico, psicológico, intelectual. A avaliação, números incluídos, é bom que se faça mais à frente e que diga respeito à prestação de todos.
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