Monday, 28 April 2014

Mostrem-me as pessoas



Penso frequentemente que os painéis e as legendas nos museus de arte ou de história são incapazes de transmitir paixão, maravilha, alegria, orgulho, tristeza, desespero, entusiasmo; de falar com pessoas sobre outras pessoas; de criar empatia, a necessidade de ler mais, de descobrir mais. A linguagem é normalmente seca, académica, factual, incompreensível – estou certa – para uma série (talvez a maioria?) de visitantes.

Voltei a pensar nisto durante a minha visita ao Museu Benfica. Este é o mais recente museu na cidade de Lisboa, inaugurado em Julho 2013, e recebeu até agora cerca de 43.000 visitantes (a entrada não é gratuita, o bilhete adulto custa €10,00). O seu objectivo é contar a história do clube e das suas diferentes modalidades – sendo que o futebol ofusca, claro, todas as outras.



Haveria muitas coisas a dizer sobre o museu, mas gostaria de me concentrar na mensagem e no sentimento que transmite através da sua comunicação escrita e das ligações que cria com as pessoas.

Este é claramente um museu para e sobre pessoas. Um museu sobre paixões. Procura contar a história de uma forma que as pessoas, todo o género de pessoas, entendam, se sintam relacionadas com ela, envolvidas nela. Pensando nos museus de arte ou de história, diria que a opção aqui não é narrar simplesmente alguns factos ou explicar técnicas. A opção é reforçar a identidade do clube – apresentando os seus valores, os seus objectivos, conquistas, a sua contribuição para o país como um todo e para as vidas dos indivíduos.

(junção de duas fotos)

No que diz respeito às pessoas, encontramos neste museu tanto os ‘artistas’ (jogadores de futebol, outros atletas, treinadores) como também os que desfrutam da ‘arte’ (pessoas famosas e sócios e fãs anónimos). Os pensamentos e sentimentos de todos eles têm um lugar nas paredes deste museu, ninguém é mais importante. Assim, vemos uma instalação com as caras de sócios do clube, mas também um cenário especial com citações de escritores, cantores, actores e de outras figuras públicas que apoiam o clube.




“É diferente, é futebol”, poderão dizer. “Têm dinheiro, isto faz toda a diferença”, poderão dizer.

Começando pelo fim, não é uma questão de dinheiro. É uma questão de atitude. O dinheiro pode permitir a um museu como o Museu Benfica usar uma série de audiovisuais e outros truques caros para abrilhantar a experiência. Mas todos os museus, independentemente do dinheiro que têm, produzem painéis e legendas (e folhetos e websites). A linguagem que usam, a história que optam por contar, as pessoas a quem se dirigem são opções que nada têm a ver com dinheiro.



O futebol atrai mais pessoas do que a arte ou a história ou a arqueologia? À primeira, podemos dizer que sim. Mas, pensando melhor, talvez a arte e a história e a arqueologia atraiam também, mas não quando são representadas em museus…. Talvez quando um amigo nos conta uma história e desperta a nossa curiosidade; quando vemos uma reportagem ou um documentário na televisão; quando lemos uma notícia na Internet ou no Facebook. Ou seja, quando nos encontramos num contexto confortável onde alguém fala connosco numa linguagem que entendemos, partilha os seus conhecimentos e entusiasmo sobre uma temática querendo mesmo comunicar connosco, põe os seus sentimentos na narrativa, torna-a numa conversa normal entre pessoas.



Não podem os museus falar e escrever sobre arte e história e arqueologia e uma série de outras matérias transmitindo paixão, maravilha, alegria, orgulho, tristeza, desespero, entusiasmo? Não podem falar e escrever para as pessoas sobre outras pessoas? Não podem criar empatia, a necessidade de ler mais, de descobrir mais? Acredito que podem, e alguns fazem-no, mas muitos outros optam por não o fazer. A necessidade de impressionarmos e garantirmos a aprovação dos nossos pares torna-se em muitos casos na prioridade quando se toma este género de decisões. Dizemos que “Estamos aqui para todos, os museus são para as pessoas”, mas a prática está longe de confirmar a retórica.



A diferença entre o Museu Benfica e muitos outros museus que visitei é que este permanece fiel à sua missão. É um museu para e sobre pessoas e isto não é apenas retórica, é algo que se confirma em cada opção (mais ou menos bem sucedida; mais ou menos necessária) no desenvolver da história que se pretende contar. No Museu Benfica senti as pessoas, senti as suas paixões, o seu orgulho, a sua angústia, a sua tristeza, a sua alegria. E isto acabou por me fazer ficar mais tempo no museu do que tinha inicialmente pensado.


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Monday, 14 April 2014

O Atentado



Li O Atentado de Yasmina Khanda há uns anos. É a história de um médico árabe, Amin Jaafari, que vive e trabalha em Tel Aviv. Após um atentado suicida que abala a cidade, Jaafari é chamado para identificar o corpo da sua mulher, Sihem, uma das vítimas do atentado. Pouco depois, é confrontado com a informação que a bombista suicida tinha sido a própria Sihem.

Com a sua escrita bonita, sensível, incisiva, Khandra conduz-nos através das várias fases do estado emocional de Jaafari e da sua viagem à procura de respostas: desde a dor de ter perdido a sua mulher, à incredulidade perante a informação que a mulher que amava tinha cometido tal crime, à confusão e à raiva quando começa a aperceber-se que desconhecia uma série de acções, pensamentos e sentimentos da sua mulher, à determinação de encontrar uma explicação que pudesse fazer sentido e ao regresso a uma realidade que tinha deixado há muito para trás.

Adorei o livro de Yasmina Khandra porque mostra que a amizade, a tolerância, a compreensão e a coexistência são possíveis, são uma realidade. E com esta realidade como ponto de partida, leva-nos lentamente, seguindo a busca de Jaafari, àquela outra realidade, que existe ao lado da primeira, comprometendo-a, questionando-a, todos os dias: aquela de milhões de Palestinianos nos territórios ocupados ou no exílio; aquela da humilhação diária, do desespero, da dor, do abuso, da morte, da revolta; aquela de um poder arbitrário que faz nascer terroristas, bombistas suicidas, que são venerados como heróis e mártires.

Khandra faz-nos questionar a primeira realidade. Será o resultado de silêncios convenientes; da ignorância? Será falsa; incapaz de sobreviver quando o silêncio é quebrado? Ou será o resultado de força e determinação, do desejo informado, e por isso consciente, de paz?

Ziad Doueri, realizador do filme O Atentado.
O filme O Atentado de Ziad Doueri abriu este ano a Judaica – Mostra de Cinema e Cultura em Lisboa. Fui vê-lo sabendo que raramente ou nunca os filmes são tão bons como os livros. A regra foi mais que confirmada.

O que mais me impressionou foi a superficialidade com a qual Doueri lidou com a história. Não foi capaz de dar qualquer profundidade aos personagens, aos seus sentimentos e ideias, e mais que uma vez tive a sensação que estava a ver uma telenovela. Além disso, Doueri optou por ignorar a narrativa de Yasmina Khandra na descrição da busca de Jaafari nos territórios e praticamente apresentou os Palestinianos como nada mais do que uma máfia. Levantei-me assim que o filme acabou, perplexa também pelo facto do final ser totalmente diferente daquele do livro. Mesmo antes de sair da sala, pude ouvir o realizador explicar ao público que o final do livro não lhe era conveniente, por isso optou por um final diferente. Porque é que não escreveu a sua história em vez de arruinar a de Khandra?

Cena do filme O Atentado.
Poucos dias mais tarde, vi uma entrevista de Douari e apercebi-me que havia mais. Enquanto o ouvia falar da sua infância em Beirut, dos seus pais liberais, dos tabús dos árabes no que diz respeito a Israel, da estupidez que é o ramadão, percebi que Doueri, ao querer ser progressista e de mente aberta e liberal, construiu a sua própria versão d´O Atentado com a intenção de desafiar o ponto de vista árabe. Desafiá-lo ignorando-o, fazendo dele uma caricatura. Mais uma vez, porque é que não escreveu a sua história em vez de se aproveitar do best seller de Khandra?


A coexistência, a reconciliação, a construção de um futuro comum não é algo fácil. È o que nos diz Yasmina Khandra. É o que sinto quando tenho que falar ao meu filho do passado e presente greco-turco. É o que me atormentou enquanto lia The Antelope's Strategy, Living in Rwanda after the Genocide de Jean Hatzfeld. Podem ser precisos alguns silêncios, mas como resultado de conhecimento e de compreensão e não de ignorância. É preciso força, a capacidade de perdoar sem esquecer. E preciso abertura de espírito, a capacidade de ouvir e pesar os argumentos da outra parte. Não é fácil; é muito difícil e é complexo. É preciso começar por reconhecer precisamente este facto; e respeitá-lo.