Sunday 6 October 2024

Das silenciosas maiorias. Do medo e da liberdade.


Mais uma vez, atravessaremos o Atlântico, só para ficarmos conscientes do quão perto estamos e porque é que devemos prestar atenção ao que ali se passa.

Em Julho, escrevi um artigo para o jornal Público sobre o que se tornou numa situação extrema de proibição de livros nas bibliotecas escolares e públicas dos Estados Unidos. Escrevi na altura que os livros contestados tratam normalmente de questões LGBTQI+, raça e racismo, escravatura, genocídio de povos indígenas, religião. Existem também inúmeras exigências para que os livros sobre a puberdade sejam transferidos da secção juvenil para a secção de adultos... Situações semelhantes estão a ocorrer no Brasil e noutros países, sendo mais ou menos noticiadas pelos meios de comunicação mainstream.

Um relatório recente sobre a situação nos EUA, publicado pela Knight Foundation, mostrou alguns resultados muito relevantes: 78% das pessoas confiam nas suas escolas públicas para selecionar materiais apropriados; revelou também que “a maioria dos americanos se sente informada sobre os esforços para proibir livros nas escolas, mas apenas 3% dos inquiridos disseram que se envolveram pessoalmente na questão - com 2% a envolverem-se no sentido de defender o acesso aos livros e 1% a procurar restringir o acesso.” (ler mais). O que é que isto nos diz? Muitas pessoas estão informadas sobre o assunto, algumas, poucas, envolvem-se na defesa da liberdade de ler num país democrático, enquanto uma minoria vocal, muitas vezes violenta, tem permissão para decidir o que os outros podem ler e onde. Soa familiar?

Sunday 18 August 2024

Guest post: "Diminuição", por Elaine Heumann Gurian

 

Com Elaine, Kennedy Center, Washington DC, 2013.

Breve introdução: Durante muito tempo, Elaine foi para mim uma daquelas pessoas que não existiam “realmente”. Autora de “Civilizing the museu”, influenciou profundamente o meu pensamento e prática, sobretudo ao cunhar o termo “o museu ‘e’”. Mas ela não era alguém que eu pudesse esperar conhecer algum dia, algures. Quando em 2013 tive coragem para lhe escrever, Elaine veio ter comigo. E isso diz muito sobre quem ela é. Mantivemos contacto desde então, ocasionalmente, sobretudo através das suas cartas aos amigos. Na semana passada, recebemos mais uma. Foi um privilégio começar o meu dia a ler aquela carta. Foi mais uma confirmação do quão extraordinária ela é como pessoa. Sempre generosa, permitiu-me partilhar a carta no meu blog. Obrigada, Elaine, por isso e por muito mais.


Diminuição
Agosto de 2024

Caros amigos,

Já há algum tempo que não escrevo. Mais precisamente, há muito tempo que não envio uma carta aos meus amigos porque escrevi algumas que rejeitei e não enviei. Mas aqui estou eu de novo, agora uma mulher de 86 anos, esperando que a minha experiência na velhice possa produzir algumas ideias de interesse geral. Reflito sobre a inevitável diminuição que todos enfrentamos.

Geralmente, nós (anciãos) começamos todos os dias (a não ser que estejamos doentes ou tenhamos um acidente) com a expectativa de termos as mesmas capacidades do dia anterior. No entanto, às vezes, essas expectativas estão erradas e ficamos surpreendidos com a nossa incapacidade. De vez em quando, podemos compensar o que foi perdido, mas frequentemente isso desaparece e os nossos cálculos devem ser reajustado.

Monday 10 June 2024

“Primeiro ignoram-te. Depois riem-se de ti. Depois lutam contra ti. No fim, tu vences.”

Sufragista a ser presa pela polícia em 1914.
(Imagem retirada de The Independent. PA Wire/PA Images)

O título deste post são palavras de Ghandi, citadas por Rebecca Solnit no seu livro “Hope in the dark”. Cada época tem as suas causas específicas, mas, ao mesmo tempo, podemos observar e sentir o desenvolvimento de outras, vindas de trás. Solnit lembra-nos que as fases identificadas por Ghandi desenrolam-se lentamente e também que “Os efeitos não são proporcionais às causas – não só porque causas enormes por vezes parecem ter pouco efeito, mas porque causas pequenas ocasionalmente têm consequências enormes”. (pág.61).

Tenho pensado na forma como os activistas de diferentes causas são actualmente vistos e tratados. Quando escrevi um capítulo para o livro “The activist museum” (editado por Robert Janes e Richard Sandell), lembro-me de ter optado pela definição de activismo tal como aparecia na Wikipédia, já que os dicionários que consultei na altura muitas vezes lhe davam uma nuance agressiva, violenta, que me deixava insatisfeita. A agressão ou a violência não estão ausentes, claro, mas não são a única forma de ser activista. Relembrando uma entrevista de John Berger, ouvir é um acto (e, na minha cabeça, é aqui que o activismo realmente começa, em sermos capazes de ouvir).

Monday 6 May 2024

Importemo-nos, honestamente

Foto: Maria Vlachou

Quando participei na conferência da Balkan Museum Network, no mês passado, tive o prazer de ouvir Łukasz Bratasz, chefe do grupo de Investigação do Património Cultural do Instituto Jerzy Haber (Polónia). A sue “keynote speech” era sobre “Sustainability-conscious management of art collections”. Para alguém como eu, que conhece o básico sobre o controlo das condições ambientais em museus, foi uma palestra surpreendente e refrescante. Talvez também para os que sabem mais do que eu. Porque Łukasz partilhou connosco os resultados de estudos que mostram que os objectos são muito menos vulneráveis às variações ambientais do que se supunha anteriormente e que existem outras formas de gerir colecções de arte, com uma pegada de carbono significativamente mais leve.

Wednesday 1 May 2024

Nunca mais: como é que se vive à altura de uma missão como esta?

Imagem retirada de Vatican News (Agence France Presse)

Em 2014, num post chamado “Em círculos”, escrevia que “Aparentemente, não damos o mesmo valor a todas as vidas humanas e assim, os países europeus representados no Concelho das Nações Unidas para os Direitos Humanos podem abster-se (todos!) na votação para a abertura de um inquérito sobre alegadas violações dos direitos humanos em Gaza; aparentemente, algumas situações do género ‘nunca mais’ são justificadas, e assim os nossos governos podem continuar a apoiar e a vender armas ao governo israelita; aparentemente, cada caso é uma caso e tudo depende, portanto, existem alguns casos do género “nunca mais” em que nós cidadãos comuns podemos reservar o direito de sermos mais ‘equilibrados’ ou neutros.”

Sunday 24 March 2024

Qual a sensação de viver numa democracia em declínio?

Claudia Roth, Ministra de Estado para a Cultura alemã, na Belinale.
Foto: Andreas Rentz | Getty Images (retirada do The Guardian)

Há alguns dias, estive num encontro internacional, onde o assunto era museus e democracias em declínio. Ouvimos falar dos infortúnios dos directores de museus polacos, amplamente divulgados na imprensa internacional (exemplos desde 2017: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui); ouvimos falar de museus na Hungria, que deveriam “interpretar para o povo as vontades do governo” ou a serem censurados por causa de um projecto de arte participativa que representava o Presidente ou, mais recentemente, a verem um director ser despedido por ignorar a lei contra a “promoção da homossexualidade”, na qual ele próprio votou quando era deputado. Também ouvimos falar da Holanda, onde a extrema-direita tem vindo a atacar há já algum tempo as narrativas dos museus e que está agora a tentar formar um governo, depois de vencer as eleições em Novembro.

Wednesday 3 January 2024

Cultura prescrita

Les Kurbas Theatre, Lviv, Ukraine, 2022. Foto: Adriano Miranda

Assistir a representações de peças antigas nos teatros gregos é uma experiência que me faz sempre pensar. Acho particularmente comovente o fluxo de pessoas que se dirigem ao teatro para assistir pela enésima vez às mesmas histórias que nos falam de amor, ódio, respeito, arrogância, sede pelo poder, guerra, justiça, vingança. Histórias escritas há muitos séculos sobre a natureza humana e tudo o que há de bom e de mau nela. Então, quando olho ao meu redor para as pessoas que enchem o teatro e, sobretudo, quando as vejo ir-se embora depois do espectáculo, muitas vezes me pergunto “E então? E agora?". Até que ponto as pessoas utilizam o “alimento” (food for thought) que lhes foi proporcionado para pensar sobre a vida contemporânea, sobre si mesmas e sobre os outros, o seu lugar no mundo e qual poderia ser a sua contribuição para um mundo melhor? Quando penso na sociedade contemporânea grega (e noutras sociedades), a forma como cuidamos (ou não cuidamos) uns dos outros, lembro-me que o poder não reside apenas na peça, mas também, e talvez até mais, no indivíduo e no que essa pessoa fará (ou não) com o que lhe foi dado.