Monday 16 February 2015

Bem-vindos, neo-cosmopolitas!

Foto: Adriano Vizoni/Folhapress (retirada da Folha de S. Paulo)
“Presença Negra” é uma acção promovida em São Paulo por artistas, escritores e activistas negros que visitam em grupo inaugurações de exposições em galerias de arte. Chegam um a um, tornam-se numerosos e atraem os olhares desconfortáveis dos restantes visitantes. Porque a presença de negros (como artistas e como público) não é habitual nesses contextos. Nem todos concordam com estas acções (como se pode ver nos comentários na Folha de S. Paulo), mas a mim, este acto de reivindicação por parte de cidadãos chamou-me a atenção.

E veio lembrar-me um outro. Numa conferência no ano passado ouvi Sylvain Denoncin, da empresa francesa EO Guidage, contar a história do museu Louvre – Lens. O museu foi projectado pelo atelier de arquitectura japonês SANAA. Os habitantes da cidade ameaçaram levar o projecto a tribunal se o novo museu não fosse acessível. Aí, foi chamada a EO Guidage, para intervir e remediar algo que deveria ter sido pensado desde o primeiro momento. Numa troca de opiniões com um colega no Facebook, partilhámos a mesma inquietação: quantas gerações até os cidadãos deste país se tornarem mais exigentes, mais reivindicativos em relação ao acesso à oferta cultural em instituições culturais públicas?

Estes são dois casos que levantam novamente à questão do que se entende por “acesso à cultura”; do que os profissionais do sector querem dizer quando afirmam que “estamos de portas abertas” ou que “estamos aqui para todos”; da diferença que existe entre os conceitos da “democratização da cultura” e da “cultura democrática”.

John Holden tem sido mais que uma vez citado neste blog, mais concretamente a sua identificação dos guardiões da cultura no ensaio “Culture and Class” – os “cultural snobs” e os neo-mandarins (ver referências no final do texto).

Primeiro ponto: sofremos ainda muito da mentalidade do “cultural snob”, que considera que a oferta cultural – certa oferta cultural – é apenas para os entendidos. Em relação aos outros – os não entendidos, os não cultos – a opção (cada vez menos assumida publicamente, mas presente na forma como se programa e se comunica) é a da exclusão, não havendo nada a fazer, uma vez que nem o meio familiar destas pessoas nem a escola tiveram a capacidade de as educar, de as preparar para tal experiência.

Segundo ponto: os neo-mandarins vieram alterar o contexto criado e defendido pelos “cultural snobs”, vieram promover o acesso, a democratização da cultura. Apesar de se tratar de uma postura diferente, mais aberta e inclusiva, na prática revela também um outro tipo de guardião. Os neo-mandarins defendem o acesso, mas querem ser eles a definir a que é que vale a pena ter acesso e como. Ultimamente, em mais que uma reunião, quando levantada a questão da “inclusão”, quando levantada a necessidade dos espaços culturais serem mais representativos das sociedades em que estão inseridos e mais acolhedores para as diversas  pessoas que as compõem, a resposta variou pouco: passa normalmente pelas acções do serviço educativo, visitas guiadas ou idas a espectáculos aos quais as pessoas assistem fazendo parte de grupos específicos (pessoas com deficiência, séniores, imigrantes, crianças e adultos institucionalizados, pessoas vindas de meios “desfavorecidos”, etc.).

Terceiro ponto: o aparecimento dos neo-cosmopolitas no sector cultural, dispostos a abdicar do seu papel de guardião, de abrir verdadeiramente as portas para uma maior colaboração e envolvimento das pessoas “de fora”, no sentido de tornar a oferta cultural mais representativa e relevante, vem alterar também esta mesma relação com as pessoas e a forma como vêem e se apropriam das instituições culturais. O objectivo dos neo-cosmopolitas é caminhar para uma cultura mais democrática.

Para haver mudança, é necessário o contributo de vários agentes. Irei concentrar-me em dois deles: as associações que representam os grupos de pessoas anteriormente referidos; e os profissionais do sector cultural.

Sem dúvida, é preciso haver cidadãos mais participativos, conhecedores dos seus direitos, mais reivindicativos, que queiram ter uma palavra sobre as instituições culturais e o acesso à oferta cultural. O papel das associações que representam certos grupos de cidadãos é aqui fundamental, por se tratar de organizações formadas com uma voz, às vezes, mais forte e respeitada. Estas associações devem promover e defender os direitos dos seus associados, devem intervir sempre que necessário, devem ponderar muito bem que soluções propõem e que soluções aceitam. Há poucos meses, um actor que ia representar num teatro municipal reagiu negativamente à presença dos intérpretes de língua gestual à frente do palco. O teatro procurou alternativas e sondou a Federação das Associações de Surdos em relação à hipótese de transmissão ao vivo da peça numa outra sala, a partir da qual os espectadores surdos poderiam seguir o espectáculo. A Federação considerou a solução aceitável. Não o era. Nenhuma solução que discrimine os cidadãos e o seu direito de acesso à cultura é aceitável e as associações devem ser as primeiras a defendê-lo.

No entanto, é preciso haver também um movimento por dentro, no próprio sector. Um movimento que permita contrariar as atitudes “snob”; um movimento que permita aos neo-mandarins evoluírem e tornarem-se neo-cosmopolitas. Acredito que não teremos cidadãos mais reivindicativos enquanto tivermos profissionais da cultura “snob”, conformados, preparados apenas para repetir receitas do passado, sem as questionar, sem pensar no passo seguinte, na promoção da inclusão a médio e longo prazo.

Os cidadãos precisam de sentir e de ver na prática que existe uma outra mentalidade da parte dos profissionais do sector, uma mentalidade que procura fomentar a relação com as pessoas, diversas pessoas e não apenas os entendidos, e criar espaço para que esta relação exista e cresça, seja real e duradoura. Seremos mais inclusivos quando os cidadãos, na sua diversidade, sentirem que a programação das instituições culturais públicas é relevante para eles; quando se sentirem representados e se a representação pressupor um maior envolvimento; quando a comunicação for desenvolvida com a preocupação de chegar mesmo a elas, de entrar em diálogo numa língua partilhada por todos; quando a nossa acção deixar de promover o acesso à oferta cultural através da manutenção de grupos segregados, mas dando passos todos os dias para que as pessoas possam co-existir no mesmo espaço, usufruir da mesma oferta. Se os profissionais da cultura não conseguirem convencer as pessoas das suas intenções honestas em fomentar esta relação e em trabalhar para uma cultura democrática, a oferta (não a cultura) continuará irrelevante, e consequentemente inexistente, para elas.


Mais neste blog:









Ensaios de John Holden:








Monday 2 February 2015

O que sabemos e o que não fazemos


Nas últimas semanas, tive a oportunidade de conversar com alguns colegas em relação a certas questões de acessibilidade nas suas exposições. Coisas como legendas mal iluminadas, mau contraste entre letras e fundo, legendas colocadas demasiado baixo, objectos expostos a um nível elevado e sem inclinação, textos longos e complicados. Acredito que estas são questões que podem ser facilmente resolvidas, sem qualquer investimento adicional, apenas com um algum planeamento prévio e a preocupação de não excluir. Na verdade, quando as exposições são projectadas para ser inclusivas, não só não custam mais, como podem, realmente, trazer mais receita, uma vez que mais pessoas terão acesso às mesmas.

Senti-me um pouco confusa quando as pessoas que abordei me disseram que sabiam tudo sobre as questões que levantei. Porque é que as coisas aconteceram dessa maneira, então? É possível que nós estejamos a criar conscientemente barreiras ao conteúdo das nossas exposições? Porque é que as fazemos, então, se não para as pessoas as poderem apreciar?

Sinto a mesma perplexidade em conferências ou cursos de formação, quando discutimos questões de gestão, comunicação, marketing, serviços ao visitante, educação, etc. Às vezes, alguns colegas aproximam-se e dizem: "Temos estado a dizer aos nossos superiores o que acabaste de dizer há anos e anos. "

Assim, parece que não faltam profissionais de museus (incluindo os vigilantes) que estão conscientes de uma série de pequenos e grandes problemas de gestão ou de comunicação. Temos ainda feedback dos próprios visitantes, através de livros de visitas, cartões de comentários, estudos de público, etc. Por fim, existe ainda o contributo de académicos, pensadores, bloggers, como Maria Isabel Roque - que recentemente nos lembrou algumas das coisas que ainda estão por acontecer, no seu post Acerca do que (ainda) falta ao património - ou Luís Raposo - um dos poucos profissionais de museus em Portugal que partilha regularmente e publicamente as suas opiniões, sendo o seu mais recente artigo de opinião sobre a abertura do novo Museu dos Coches e os planos para o eixo Belém - Ajuda em Lisboa.

Assim, não podemos reclamar que não temos já feedback realmente valioso - tanto de “insiders” como de “outsiders” - que pode ajudar a construir estratégias, corrigir erros, tomar decisões, registar tendências, compreender mudanças e desenvolvimentos. Porque é que os decisores e os responsáveis directos pela gestão dos museus não agem sobre isso? O que é que nos impede de avançar, com que tipo de barreiras estamos a lidar? Porque é que procuramos mais estudos, estudos novos, se não fizemos nada ainda sobre as coisas que já sabemos? Porque é que o conhecimento existente parece não ter qualquer impacto sobre práticas de gestão?

Aqui está a minha tentativa de identificar algumas razões:

Talvez seja porque, apesar das declarações politicamente correctas que os museus estão ao serviço da sociedade, eles estão sobretudo ao serviço de quem as gere. As pessoas - aquelas que vêm e as que não vêm - e os seus interesses e necessidades não são, na verdade, a nossa principal preocupação. Os objectos é que o são e basta que fiquem bonitos para aqueles que sabem apreciá-los.

Talvez seja porque neste sector trabalhamos com planos de curto prazo, que seguem os ciclos eleitorais e que podem facilmente ser abandonados, sem explicações de maior e sem assumir responsabilidades. Assim, grandes e pequenas questões permanecem e a sua discussão perpetua-se, sem trazer desenvolvimentos.

Por fim, talvez seja porque temos a tendência de ficar pelo que é “bom o suficiente”. Sabemos quais são os problemas, mas chega um momento em que não podemos insistir mais: ou porque não conseguimos convencer com os nossos argumentos ou porque sentimos que não podemos esperar ou exigir mais dos outros. Só que “bom o suficiente” não é bom o suficiente e o argumento “um passo de cada vez” não nos leva tão longe quanto devia. Na verdade, muito frequentemente nos mantém no mesmo lugar.


Ainda neste blog