Monday 30 May 2011

Ministério da Cultura: conseguimos manter o debate vivo por uma segunda semana?


Lux, de Laura Vinci (Foto: Maria Vlachou)

Apesar dos nomes terem uma importância secundária quando se debatem grandes questões, mas porque têm, ainda assim, a sua importância e significado, começo por dizer que é imperativo o país ter um Ministério da Cultura e que não considero de todo convincentes os argumentos de Pedro Passos Coelho relativamente à extinção do mesmo e à colocação da Cultura sob a alçada directa do primeiro-ministro. No entanto, agradeço ao candidato do PSD a provocação que lançou, a qual resultou num interessantíssimo debate ao longo da semana que passou (ver referências no fim do post). Pessoalmente, sinto a necessidade de comentar sobre dois pontos.

O primeiro ponto tem a ver com a urgência em reformular o Ministério e todo o sector. Ou seja, em criar conteúdos para as palavras ganharem, realmente, significado. Alguns aspectos que considero importantes e prioritários:

Visão, missão, estratégia
Por esta ordem e não pela ordem contrária… O que é Cultura no mundo de hoje? Porque é importante para a vida de todos nós? Sendo a sua fruição um direito de todos, como garantir o acesso a ela? Quem produz o quê, onde e como? Quem consome o quê, onde e como? Como ultrapassar a era dos ‘guardiões’ (que insistem em ser eles a definir o quê, como e onde) para chegar à era dos 'cosmopolitas contemporâneos', abertos a várias tendências e gostos? Como criar condições para que a Cultura seja vista como um assunto de todos nós?

Profissionalização e trabalho em rede
O sector não pode continuar a ser gerido com boas intenções e amadorismo. Se se reconhece a sua importância (intrínseca, e também social e económica), é urgente admitir profissionais com sólida formação teórica e excelente experiência, assim como é urgente garantir formação profissional àqueles que querem continuar a trabalhar nele e que não a possuem. Além disso, não podemos continuar a trabalhar isolados, cada um no seu canto. É de extrema importância que os profissionais do sector procurem desenvolver e manter redes de trabalho - locais, nacionais e internacionais -, para ser garantido o indispensável intercâmbio de pessoas e ideias, assim como a partilha de práticas e experiências, que resultam no crescimento profissional e contribuem para o desenvolvimento do sector.

Gestão saudável, emancipação, sustentabilidade
Sem pretender dispensar o Estado das suas responsabilidades perante os cidadãos, produtores e consumidores de cultura, é imperativo termos clara noção da realidade. O dinheiro que o Estado pode investir não chega para tudo e para todos (sempre foi vergonhosamente pouco, mas, ao mesmo tempo, sempre se reclamou mais, sem primeiro procurar avaliar se o que se investia estava bem gasto; e também nunca alguém assumiu responsabilidades por dinheiro mal gasto…). O Estado terá que estabelecer objectivos e prioridades claros. Mas o sector não pode parar. Os modelos de gestão são vários; devemos estudá-los e procurar aquele que melhor se adequa à nossa realidade e necessidades. Há uma especificidade da Cultura, isso é verdade. Mas é igualmente verdade que os gestores culturais existem, entendem e abraçam essa especificidade.

A problemática da reformulação do Ministério e do sector não se esgota, obviamente, nestas três questões, mas são aquelas que neste momento me parecem prioritárias. São aquelas que, se forem levadas para a frente, afectarão todas as outras. E por isso, deveriam ser todas abordadas com base em princípios fundamentais (e quase permanentemente ignorados): honestidade, exigência, transparência, responsabilização, meritocracia.


O segundo ponto sobre o qual gostaria de comentar tem a ver com a necessidade de assumirmos, cada um de nós, as nossas responsabilidades e de mantermos no sector um debate permanente e aberto a todos os níveis. Não podemos continuar a apenas reagir a provocações, anúncios de cortes, nomeações, re-estruturações, etc. Estas reacções são normalmente de curtíssima duração. Passado o efeito da ‘provocação’, voltamos a adormecer ou a ficar conformados. No entanto, todas estas questões são permanentes. Na semana passada, pessoas conhecidas e respeitadas partilharam com todos nós as suas opiniões sobre uma eventual extinção do Ministério da Cultura. Mas o sector não é feito apenas dessas pessoas. É feito de muitas outras, talvez menos conhecidas, mas também inteligentes, preocupadas, informadas, intelectualmente honestas. Onde estão? Porque é que não se ouvem essas vozes (com pouquíssimas excepções)? Porque é que não alimentam o debate, não tomam posição, não exprimem a sua concordância ou discordância? As plataformas de expressão não faltam, sobretudo hoje em dia. Não são apenas os conselhos consultivos dos ‘homens da cultura’ que ajudam nas decisões políticas, todos nós deveríamos contribuir para isso. Estamos à espera de um convite para falar? Poderá nunca chegar e isso não nos desresponsabilizaria. Exprimirmos a nossa opinião é um direito, mas também um dever.


Referências da semana que passou

António Pinto Ribeiro, O Ministério dos Assuntos Culturais (Público, Ípsilon, 27.05.2011)

Cecília Folgado, 0,4% de ideias (blog Musing on Culture, 26.05.2011)

Guta Moura Guedes, Sobre o Ministério da Cultura. Ou não. (Público, 24.05.2011)

Miguel Magalhães, A extinção do ministério da Cultura (blog Rua Direita, 26.05.2011)

Público, Dez personalidades ligadas à cultura falam sobre a importância de um Ministério da Cultura (26.05.2011) - Manuel Maria Carrilho, António-Pedro Vasconcelos, Pedro Burmester, Luís Braga da Cruz, Augusto M. Seabra, Isabel Pires de Lima, Maria João Bustorff, Raquel Henriques da Silva, Miguel Lobo Antunes, Augusto Mateus
 

Ainda neste blog
Onde é que todos se meteram? (7.02.2011) 
Um abraço azul, ou de outra cor qualquer, à crise (13.12.2010) 
Afinal, o que significa estratégico? (12.07.2010)
Sobre a entrevista da Ministra (28.06.2010)
De todos e para todos? (31.1.2011)
O artigo 27 (15.11.2010)

Thursday 26 May 2011

Blogger convidado: 0,4% de ideias, por Cecília Folgado

Portugal vai a banhos, de Joana Vasconcelos
Em tempo de eleições há que ouvir, pensar, pesar. Uns pesam a dívida, outros os benefícios sociais, eu peso a Cultura. É esse o meu mundo. Assim, resolvi debruçar-me sobre as propostas dos 5 ‘grandes’ partidos, procurando saber o que cada um destes perspectivava para a Cultura em Portugal nos próximos anos.

Para lá do saber se a Cultura se manteria em versão ministerial ou não (aspecto interessantemente debatido por Guta Moura Guedes no Público de 24 de Maio), o que procurava era saber a Cultura que nos espera e a Cultura que podemos esperar. A resposta é curta e taciturna, o futuro pouco iluminado. Nos programas do BE, CDU, PS, PSD e CDS o peso e a importância relativa da questão é equivalente aos 0,4% de OE que lhe cabe. No caso do BE é ainda menos que isso, é 0%. Nos restantes, a Cultura vale entre um parágrafo e pouco mais que uma página A4.

E dir-me-ão que a Cultura não se mede a palmo. Pois não, não mede, mas neste caso os conteúdos coincidem com os palmos medidos, são curtos.

Na acima referida coluna de opinião de Guta Moura Guedes, reclama-se visão de quem nos governe, ministro ou primeiro-ministro. Reclamo o mesmo: visão. Depois, reclamo seriedade. Seriedade para olhar o sector de frente, listar o que está mal e o que está bem e desenhar uma política que nos permita (ao sector e ao país) ser inteiros e que o Ministério da Cultura não seja uma conquista meramente simbólica e sim efectiva*.

Do que li e das ideias arrumadas, não me parece importante falar, são essencialmente vagas (umas) e repetidas (as outras). Importante parece-me regressar a esta lista de 2009, construída no âmbito das legislativas de então pelos colaboradores da OBSCENA. É isto, só isto. Duas páginas A4 (aqui com palmos de conteúdo bem largos).

Nos tempos que vivemos, percebo a importância relativa que a Cultura pode ter. E estar neste sector tem algo de fé e de militância que por vezes, em tempos assim, se quebra; pessoalmente, nestes momentos de quebra, reencontro o sentido da arte e da cultura numa frase de António Pinto Ribeiro: “A arte e a cultura - não necessariamente da mesma maneira, nem com as mesmas possibilidades – servem para que, na vida de cada um de nós , o futuro esteja presente e o tédio ausente, a ludicidade aconteça e a barbárie se afaste.”

Não nos podemos entregar à barbárie.

*No Público de hoje reflecte-se sobre as legislativas sob a perspectiva do sector cultural; vale (muito) a pena ler. Vale também a pena ler no P2 a reportagem sobre os 100 anos do Museu do Chiado onde, como assinala Raquel Henriques da Silva, “O que envergonha em todo este processo é a falta de uma Política de Estado.”

Monday 23 May 2011

Rostos

Nuno Santos (Frente de Casa), Cidalina Ramos (Assistente de Bilheteira), Sérgio Joaquim (Técnico de Luz), Tiza Gonçalves (Directora de Produção), Rui Lopes (Técnico de Som). Fotos: Steve Stoer
Estes são os rostos de alguns dos meus colegas no São Luiz. Colegas de várias áreas (comunicação, técnica, produção). Uns cruzam-se com o nosso público, e são até seus conhecidos, outros nem por isso. Mas são todas pessoas, estas e muitas outras, que trabalham para que o produto final chegue aos nossos espectadores.

Estas fotografias foram inseridas no livro e no folheto da programação da Temporada 2010-2011, disponíveis ao público, acompanhadas pelas sugestões dos nossos colegas relativamente a essa mesma programação e também por umas palavras sobre aquilo que mais prazer lhes dá no seu trabalho no São Luiz. Encontram-se também nos janelões da fachada do teatro. E assim, a nossa instituição ganha um, ou melhor, vários rostos. Pelo menos era essa a nossa intenção: dar um primeiro passo para tornar o abstracto, concreto; o desconhecido, conhecido; o impessoal, pessoal, ou seja, o institucional, humano. Procurámos uma forma de apresentar ao público uma outra dimensão daquilo que envolve a apresentação de um espectáculo, aquela de que menos se fala. O único indicador que temos para a avaliação desta ideia são os comentários positivos que amigos e conhecidos partilharam connosco, mas, sobretudo, aqueles espectadores que, ao dirigirem-se à bilheteira, reconhecerem a nossa colega cuja fotografia estava no livro. (Quando chego a este ponto, penso sempre que o que deveríamos ter feito era organizar um focus group e procurar obter feedback qualitativo por parte de alguns membros do público. Mas parece que há sempre outras prioridades. Os estudos de público deveriam ser uma delas.)

É um facto que, em geral, as instituições culturais procuram comunicar o objecto (a exposição ou o espectáculo) e os artistas que o criaram ou que o interpretam. No entanto, existe esta outra vertente, a das pessoas que trabalham no teatro ou no museu ou na instituição cultural, que, no meu ver, deveria ser mais ‘explorada’ na relação com o público. Porque é através delas, e graças a elas, que se cria a relação permanente, duradoura. E é importante que esta relação ganhe um rosto, se torne pessoal e concreta.

Risto Nieminen, Director do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian,
durante a apresentação da temporada ao público em 2010. (Foto: Márcia Lessa)
Achei fantástica a opção do director do serviço de música da Gulbenkian, Risto Nieminen, de ter marcado no ano passado um encontro com o público para apresentar a programação da temporada (que, se não me engano, era, na verdade, a sua primeira) e, através dela, a sua visão sobre o caminho que este serviço iria seguir sob a sua direcção. Não consegui estar presente na sessão, mas soube que esteve esgotada. E imagino que tenha sido muito gratificante para as pessoas que estiveram presentes conhecer o novo director - o seu rosto, a sua voz -, saber através dele o que tinha escolhido para lhes apresentar e porquê. Ou seja, aquela relação que normalmente se tem, e que se valoriza muito, com os meios de comunicação, que depois transmitem as notícias ao público, criou-se aqui com esse mesmo público. Uma relação privilegiada, na primeira pessoa. Estou curiosa em saber se houve a seguir outros momentos de encontro entre Risto Nieminen e o público, se se deu continuidade àquele primeiro passo. E, sobretudo, estou curiosa em saber se o novo director se encontrou, no espaço da Gulbenkian ou fora dele, com aqueles públicos que desde o início disse que gostaria que viessem assistir à sua programação. Como terá sido esse encontro? Como estará a correr essa relação?

A presença do director, da pessoa que dirige a equipa e que faz as escolhas, é algo fascinante para muitas das pessoas que frequentam instituições culturais. São encontros relativamente raros (o que é pena), às vezes muito gratificantes, e também fundamentais para a construção de pontes. São, entre outras coisas, uma forma de transmitir às pessoas a importância que têm para a nossa instituição, ou melhor, para as pessoas que nela trabalham. Em algumas ocasiões, poucas, presenciei o encontro de directores de museus com membros do público nas salas de exposições, a conversa informal - como se de amigos se tratasse -, a alegria no rosto dos visitantes por esse encontro inesperado, atreveria-me a dizer o privilégio que o mesmo parece ter sido para essas pessoas. Numa pesquisa que fiz recentemente para uma aula, encontrei fotografias do director do centro de ciência finlandês Heureka, Per-Edvin Persson - que conheci há muitos anos atrás, quando trabalhava nessa área - com membros do público: no primeiro caso, com os voluntários do centro, que completavam 10 anos de serviço nele, e no segundo, na recepção do visitante 6.000.000. Breves encontros que podem fazer toda a diferença numa relação.

Foto: Saila Puranen/Heureka

No entanto, e para voltar ao início, as nossas instituições não são feitas só de artistas nem só de directores. A verdade é que existem muitas outras pessoas, que trabalhar em diferentes áreas nos bastidores, que podem igualmente fascinar o público e contribuir na criação de uma relação diferente, mais pessoal, de maior compreensão e entendimento. Várias vezes, quando o público aplaude os intérpretes de um espectáculo, estes agradecem aos técnicos de som e de luz, apontando na direcção deles e aplaudindo. E eu várias vezes pensei quantas pessoas entre os espectadores entenderão o significado deste gesto, perceberão a quem se dirige e porquê.

É raro promovermos encontros entre os frequentadores dos nossos espaços e as pessoas que neles trabalham, nas mais variadas áreas. Mas nos casos em que presenciei estes encontros - que normalmente acontecem quando um funcionário dá uma visita guiada a um familiar ou amigo -, garanto-vos que senti a existência do mesmo fascínio, do mesmo sentimento de ‘privilégio’, como quando se está perante um artista ou um director. É algo especial, diferente. É uma forma de uma pessoa se sentir como parte daquele espaço, porque fica a conhecer o que se passa por trás, como é que se faz e quem é a pessoa que o faz. Esta é uma relação. Não entre um edifício e o público, mas entre as pessoas que nele trabalham e as pessoas que o frequentam ou possam vir a frequentá-lo. Penso que esta deveria ser uma vertente a explorar.

Agradecimentos: Elisabete Caramelo, Mikko Myllykoski

Monday 16 May 2011

O museu de história que faz toda a diferença

No meu último post comentei sobre a história contada (ou não contada) pelos museus nacionais de história que tenho visitado. Lembro-me, por alto, de ter visitado museus deste tipo em Atenas, Barcelona, Helsínquia, Berlim, Washington e, mais recentemente, em Buenos Aires (este não tem site próprio).

Há aqueles que se limitam a contar a história da luta pela independência (Atenas, Buenos Aires); que, na verdade, não contam, porque a mera exposição de armas, quadros, documentos não é suficiente para contar essa história. Normalmente, os visitantes nacionais, e mais concretamente, os visitantes nacionais com alguns conhecimentos de história, têm uma certa vantagem nestes museus relativamente aos visitantes nacionais e internacionais que entram no museu com a esperança de adquirir esses conhecimentos básicos.

Há também aqueles museus nacionais de história que avançam mais um pouco (Barcelona, Helsínquia, Berlim), em primeiro lugar no tempo, para contarem também episódios mais recentes, mas também em termos de profundidade e diversidade na abordagem, indo além da história política/militar para tocar em questões de natureza cultural e social (educação, saúde, religião, vida familiar/profissional/social, artes, etc.).

Quando comentei no meu post sobre a incapacidade da muitos destes museus em contar a história da nação, referia-me concretamente à exposição permanente, que é aquela à qual todos os visitantes têm acesso em qualquer altura. Saí da maioria dos museus que referi sentindo ou que não tinha aprendido quase nada ou que a abordagem tinha sido muito limitada, insuficiente para a minha curiosidade, para aquilo que esperava aprender sobre o país ou a região (estou-me a referir à Catalúnia) que estava a visitar.

A tarefa não é fácil, é certo. A história da nação é uma história extensa, multifacetada, sensível, controversa. Exige espaço e meios. Mas exige também visão, porque não é uma história encerrada, mas sim uma história em produção contínua e este facto tem implicações na política de aquisição de objectos para as colecções.

Destaquei no último post o Museu Nacional da História Americana de Washington como uma ilustre excepção. Deveria dizer em primeiro lugar que os meios materiais e humanos que este museu (um dos museus da Smithsonian Institution) tem à sua disposição não se podem comparar aos de outros museus. É verdade que a escala é infinitamente maior. No entanto, passando por cima da questão dos meios, o que distingue, na minha opinião, este museu de história nacional é a sua visão. Uma visão nova, inovadora no meio dos museus, fresca, inspirada sobre o que constitui a história da nação americana. Uma visão que se torna óbvia quando olhamos para os objectos em exposição e quando lemos os textos que os acompanham.

Neste museu encontramos a bandeira que inspirou o hino nacional; o manuscrito do discurso de Abraham Lincoln em Gettysbourg em 1863, um dos mais conhecidos discursos da história americana; a bancada onde em 1960 quatro estudantes negros se sentaram para almoçar na cidade de Greensboro, desafiando a regra “white only”. Encontramos ainda os sapatos vermelhos que Judy Garland usou no filme The Wizard of Oz; o sapo Kermit do Muppet Show; as luvas de box de Muhammad Ali; uma série de cartazes de várias épocas que incentivam a população a votar. Seguem-se imagens de alguns objectos e textos que ilustram a visão deste museu relativamente ao que constitui a história da nação americana (basta clicar nas imagens para as ver em tamanho real e poder ler os textos).


Em Fevereiro passado, Brent Glass, o director do Museu Nacional de História Americana, esteve em Portugal e deu uma palestra no Museu Nacional de Arte Antiga. Ficámos a saber um pouco mais sobre a gestão do museu e, entre outras coisas, sobre a sua política de aquisição. A colecção inclui e é constantemente enriquecida com objectos como carros e instrumentos musicais, materiais das campanhas presidenciais e móveis, fotografias e cartazes, objectos relacionados com áreas como a agricultura, a religião, a ciência, a cultura popular, as várias comunidades que compõe a nação americana, entre muitas outras coisas. Brent Glass esteve em Portugal porque em 2015 o museu vai apresentar uma exposição sobre o património multicultural e multinacional do seu país, onde será também feita referência à presença portuguesa.

Os objectos que noutros países fazem parte de colecções de museus distintos (museus nacionais de história, arqueologia, arte antiga, arte moderna, arte contemporânea, música, cinema, teatro, desporto, ciência, história natural, etc.), estão aqui reunidos por baixo do mesmo ‘tecto’, considerando que todos contribuem para contar a história da nação (o que não impede a existência de museus de ‘especialidade’; aliás a Smithsonian Institution gere vários deles). Conforme já disse, nem todos os museus dispõem dos recursos materiais e humanos do Museu Nacional de História Americana. Mas se partilhassem a sua visão, poderiam talvez procurar articular as suas exposições permanentes, com o objectivo de contar a visitantes nacionais e internacionais os vários capítulos de uma história única. Esta seria também uma forma de dar a entender ao público porque são ‘nacionais’.

Monday 9 May 2011

A viagem ao 'fim do mundo'

Argentina é um país imenso e diverso. Um país muito rico e muito pobre. Um país que nos surpreende, nos emociona, nos entusiasma, nos impressiona, nos entristece e nos assusta.

Argentina é um país muito orgulhoso do seu passado, com particular referência às lutas que conduziram à sua independência no início do século XIX. Os seus militares, primeiros presidentes e governadores (San Martín, Belgrano, Sarmiento, Mitre, Dorrega), assim como as datas mais marcantes dessa história (25 de Mayo, 9 de Julio, 3 de Febrero), dão o nome a ruas e avenidas em todas as suas cidades e vilas (breve história da Argentina aqui). A bandeira nacional é uma presença quase permanente. Os políticos continuam a ser venerados. Este ano é ano de eleições a vários níveis, incluindo presidenciais. Espera-se que a ‘Presidenta’ Cristina Kirchner seja reeleita.

Cartaz do casal Kirchner entre as fotografias de Perón e Evita na Avª de Mayo.
Argentina é ainda um país determinado em lidar com o seu passado mais recente; um passado de violência, tortura, desaparecimentos. Um país (neste caso concreto, uma cidade-metrópole, Buenos Aires) que se manifesta na rua por uma ou outra causa quase diariamente.

Todas as quintas, às 15h30 em ponto, tem lugar na Plaza de Mayo a manifestação da associação Madres de Plaza de Mayo. A primeira teve lugar em 1977.
O povo Qom tinha acampado na Avª 9 de Julio revendicando os seus direitos às suas terras ancestrais e denunciando perseguições e maus tratos. Houve encontros com os dirigentes da Nação, mas no dia 6 de Maio foram colocados em autocarros e mandados para trás. A despedida dos seus apoiantes foi muito emocionante.
Ao chegarmos ao aeroporto de Buenos Aires, deparamo-nos com uma extensa campanha que pretende sensibilizar relativamente à protecção do património cultural e contra o tráfego ilícito de antiguidades. Algo que se repete em muitos outros aeroportos. Uma série de cartazes chama a atenção dos residentes e dos turistas relativamente a esta causa. Já passei por vários países que sofrem do tráfego ilícito de antiguidades e nunca tinha visto uma campanha destas. E está bem feita, do ponto de vista do impacto visual e da passagem da mensagem. Falta saber se resulta.


Visitei museus de todos os tipos e tamanhos, antigos e muito recentemente inaugurados. Nos séculos XIX e XX, os museus tiveram neste país um papel fundamental, juntamente com as escolas, na ‘formação’ do cidadão argentino, incluindo os milhares de imigrantes que aqui chegaram, no que diz respeito aos valores da recém-nascida nação, ao respeito pelas personalidades que realizaram a revolução e travaram a guerra pela independência (os chamados ‘próceres’) e ao conhecimento do passado nacional. É o que se lê num dos dois painéis na entrada do Museu Histórico Nacional, aquele que pretende partilhar com o visitante a visão por trás da (re)interpretação das colecções, algo que aconteceu muito recentemente, a propósito do bicentenário da revolução (1810 – 2010). O segundo painel da entrada coloca a questão “Que museu queremos?”, explicando que reabrir o museu ao público não significou apenas re-interpretar e ampliar as suas colecções, mas também dar lugar aos interesses e às vozes dos visitantes. É raro um museu procurar ‘posicionar-se’ no início de uma visita e partilhar esta visão com o visitante. Portanto, criou-se-me uma certa expectativa, que acabou por ser defraudada. Este museu nacional de história, tal como a grande maioria de outros que tenho visitado (ilustre excepção o de Washington), acaba por não contar a história. Uma série de quadros, documentos originais e outros objectos são simplesmente identificados, mas não contam a história da construção da nação, que se iniciou no século XIX e continua, como é natural, até hoje.

De um ponto de vista geral, a interpretação é um grande ponto fraco dos museus argentinos, algo que os estrangeiros curiosos sentem sempre mais que os locais. Em muitos casos, a escassez de meios é óbvia e explica, até um certo ponto, a falha. Um outro ponto fraco, no caso específico dos museus de Buenos Aires, é o horário. A grande maioria abre apenas às 12.00.

Mas, houve pequenas surpresas e descobertas que ficarão na minha memória:

Museo de Arqueología de Alta Montaña, Salta (noroeste argentino)


Um pequeno tesouro, muito bem-feito. Neste museu encontramos a história do culto pré-colombiano da natureza e dos rituais realizados pelos Inca em pontos altos dos Andes, que envolviam o ‘casamento’ e o sacrifício de crianças aos deuses. A colecção (objectos em miniatura que acompanhavam as crianças, roupa e sapatos) é lindíssima e o nosso encontro com ‘el niño’, a múmia do rapaz de 7 anos que foi encontrada intacta na montanha, particularmente emocionante. Neste museu aprendemos ainda sobre o impressionante sistema de estradas pré-hispánicas, que tanto impressionou os conquistadores, e o esforço conjunto de Argentina, Bolívia, Chile, Perú, Colómbia e Equador em designá-lo junto da UNESCO como Património Mundial.


Museu Provincial de Bellas Artes Rosa Galisteo de Rodriguez, Santa Fe (centro)
Visitei a exposição temporária do pintor santa-fesino Lucero Hagelstange Mito: Ángeles en el Paraiso. Um estilo que faz lembrar Gauguin, pinturas de anjos que têm a cara de mulheres indígenas. Cores fortes que contrastam com as caras cinzentas, mas igualmente expressivas, dos anjos. Estes anjos ‘crioulos’ fizeram-me logo pensar noutros, que tinha visto três dias antes, na igreja da pequena localidade Uquía, no noroeste argentino. A igreja contem as pinturas de anjos executadas pelos Índios em Cuzco, Perú, no século XVII. Quando os Índios perguntaram aos Espanhóis como eram os anjos, eles responderam “São como nós, mas têm asas”.


Museo de Arte Popular José Hernández, Buenos Aires
Um museu pequeno, com uma colecção também pequena (pelo menos, a parte em exposição), mas muito interessante, e com óbvia falta de meios. No entanto, numa das duas exposições temporárias descobri a história de Hermógenes Cayo, o artesão e músico que participou em 1946 na marcha que levou de Jujuy, no noroeste, à capital 174 indígenas que reclamavam os títulos de propriedade das suas terras ancestrais. Depois de serem recebidos pelo Governo e de terem começado as conversações, um dia foram colocados todos num comboio e mandados para trás. A história repete-se… Hermógenes Cayo foi o cronista dessa marcha.



Museo Etnográfico, Santa Fe (centro)


O único museu dos que visitei neste país ‘híbrido’ que procurou abordar a questão dos escravos / imigrantes. Uma pequena e interessantíssima exposição sobre a presença africana em Santa Fe, que questiona desde o princípio as ideias dos visitantes locais, cuja maioria pensa que não houve pretos em Santa Fe. Um relato directo e aparentemente, para quem não sabe muito, objectivo, que aborda todas as vertentes da vida dessas pessoas na cidade de Santa Fe e que oferece possíveis explicações pela sua ‘invisibilidade’.

Por último, uma nota sobre a minha visita ao Teatro Cólon, o teatro que foi construído para mostrar que Buenos Aires poderia competir com Paris (uma comparação que os Argentinos continuam a fazer quando querem falar da intensa oferta cultural da sua capital). Este era o teatro da elite de Buenos Aires, que tinha pago pela sua construção. Juan Perón abriu-o ao povo, não só para assistir a ópera, mas também para reuniões sindicais, enfurecendo os seus ‘guardiões’. O teatro é gerido pelo governo nacional e voltou a ser um espaço reservado às elites. A guia disse-nos que não há muitas pessoas em Buenos Aires a ver ópera e bailado. Ela própria, que mostrou sentir um grande carinho pelo edifício (falou sempre na primeira pessoa enquanto nos contou a sua história), não assiste a espectáculos. Também parece não existir um interesse por parte dos dirigentes em dar a conhecer estas artes a mais pessoas. O teatro não tem serviço educativo, não existem descontos ou outras ofertas de última hora e as transmissões pela rádio, que outrora se fizeram, também acabaram.

Argentina é um país imenso e diverso. E as suas ‘diversidades’ estão bem separadas, tal como acontece em muitos outros países em todo o mundo. Uma viagem que começou pelos parques nacionais da Terra do Fogo - Fim do Mundo e da Patagónia, seguiu-se no noroeste ‘dos Índios’, passou por um casamento na Santa Fe, para acabar em Buenos Aires, que parece reunir todos estes mundos: da Plaza de Mayo a La Boca, dos bairros ricos da Recoleta e de Puerto Madero à estação do Retiro e à Villa 31 (nesta última não entrei, mas vi as suas cores intensas – um claro indicador, parece, de pobreza - da autopista que nos leva ao aeroporto).