Sunday 24 March 2024

Qual a sensação de viver numa democracia em declínio?

Claudia Roth, Ministra de Estado para a Cultura alemã, na Belinale.
Foto: Andreas Rentz | Getty Images (retirada do The Guardian)

Há alguns dias, estive num encontro internacional, onde o assunto era museus e democracias em declínio. Ouvimos falar dos infortúnios dos directores de museus polacos, amplamente divulgados na imprensa internacional (exemplos desde 2017: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui); ouvimos falar de museus na Hungria, que deveriam “interpretar para o povo as vontades do governo” ou a serem censurados por causa de um projecto de arte participativa que representava o Presidente ou, mais recentemente, a verem um director ser despedido por ignorar a lei contra a “promoção da homossexualidade”, na qual ele próprio votou quando era deputado. Também ouvimos falar da Holanda, onde a extrema-direita tem vindo a atacar há já algum tempo as narrativas dos museus e que está agora a tentar formar um governo, depois de vencer as eleições em Novembro.

Wednesday 3 January 2024

Cultura prescrita

Les Kurbas Theatre, Lviv, Ukraine, 2022. Foto: Adriano Miranda

Assistir a representações de peças antigas nos teatros gregos é uma experiência que me faz sempre pensar. Acho particularmente comovente o fluxo de pessoas que se dirigem ao teatro para assistir pela enésima vez às mesmas histórias que nos falam de amor, ódio, respeito, arrogância, sede pelo poder, guerra, justiça, vingança. Histórias escritas há muitos séculos sobre a natureza humana e tudo o que há de bom e de mau nela. Então, quando olho ao meu redor para as pessoas que enchem o teatro e, sobretudo, quando as vejo ir-se embora depois do espectáculo, muitas vezes me pergunto “E então? E agora?". Até que ponto as pessoas utilizam o “alimento” (food for thought) que lhes foi proporcionado para pensar sobre a vida contemporânea, sobre si mesmas e sobre os outros, o seu lugar no mundo e qual poderia ser a sua contribuição para um mundo melhor? Quando penso na sociedade contemporânea grega (e noutras sociedades), a forma como cuidamos (ou não cuidamos) uns dos outros, lembro-me que o poder não reside apenas na peça, mas também, e talvez até mais, no indivíduo e no que essa pessoa fará (ou não) com o que lhe foi dado.

Tuesday 26 December 2023

Desejamos o futuro (ainda)

Fachada do Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 2020-2021

Dois recentes programas na RTP com foco na cultura, assim como inúmeros encontros com profissionais da área ao longo do ano e nos últimos anos, intensificam a preocupação em relação ao como este sector é entendido e gerido, que visão projecta e como a pratica.

Friday 10 November 2023

Zia and Manuela were present.

Conferência da RTCP em Portalegre, 7.11.2023

Os encontros profissionais são, cada vez mais, um momento precioso para quem consegue dar a si próprio ou consegue reclamar junto de chefias o tempo para participar. Com cada vez mais profissionais da cultura a falar abertamente de doença mental, de esgotamento, de depressão, de ritmos que não fazem sentido, estes momentos de encontro - em que podemos estar juntos, abraçar-nos, olharmo-nos nos olhos, sorrirmos, conversarmos – são mais que necessários, são urgentes.

Friday 3 November 2023

Aptos para a democracia: tão natural como a água?

Photo: Maria Vlachou

Este ano, tive a oportunidade de passar três dias no FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos. Assisti, entre outras coisas, ao lançamento de “Voltas e Reviravoltas - A Cidadania”, de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, com ilustrações de Mantraste. Este é o segundo de 12 livros da colecção infantojuvenil “Missão: Democracia”, uma iniciativa da Assembleia da República, com curadoria da Dora Batalim SottoMayor.

Nesse evento, Isabel Alçada disse que, para os jovens hoje, a democracia é tão natural como abrir a torneira e sair água. Apontei esta afirmação no meu caderno. Criou um desconforto em mim naquele momento e, posteriormente, voltei a ela em diversas ocasiões. Porque, do ponto de vista empírico, não vejo nada disso à minha volta. Porque o oposto da repressão política não é necessariamente uma democracia de qualidade, uma democracia saudável, uma democracia tão natural como a água que sai da torneira.

Monday 16 October 2023

A política e a música clássica

O logo da campanha pelo "Sim" no Voice Referendum.

Ler que a Playlist da Oakland Symphony vai receber e celebrar a Angela Davies deu-me alguma esperança esta manhã, no meio das terríveis notícias que temos vindo a acompanhar na última semana. "Ativista. Educadora. Consciência de uma geração. Ela vai partilhar a música que inspirou a sua coragem e o seu compromisso”, lê-se no website da orquestra. “Coragem” e “compromisso” tornaram-se atributos essenciais para as organizações culturais dos EUA, tendo em conta os desafios enfrentados pela democracia naquele país. Há poucos dias, senti-me verdadeiramente deprimida ao ler sobre a recusa de uma estação de rádio da Carolina do Norte a transmitir óperas da Metropolitan Opera que considerava “inapropriadas”. A recusa, li num artigo, “ocorre num momento em que a Metropolitan Opera está ansiosa por mostrar o seu compromisso com óperas e obras escritas recentemente, fora do cânone tradicional da música escrita por homens brancos. Três das óperas que a WCPE considera rejeitar na temporada 2023-24 foram escritas por compositores negros ou mexicanos. Em Abril passado, a WCPE também se recusou a transmitir outra ópera produzida pelo Met, escrita por um compositor negro que incluía temas LGBTQ”. Considerando os esforços da Met para ir além do “cânone” e tornar-se mais relevante para mais cidadãos nos EUA, a gerente da estação de rádio expressou profundas preocupações morais, tais como “E se uma criança ouvir isto? Quando eu estiver diante de Jesus Cristo no Dia do Juízo, o que direi?”. No dia 5 de Outubro, chegou a notícia de que a estação de rádio tinha revertido a sua decisão devido a críticas generalizadas.

Sunday 1 October 2023

A censura nem sempre nos incomoda, não é verdade?

Imagem retirada da página de Facebook do LUCA - Teatro Luís de Camões

O Fitzwilliam Museum em Cambridge é um dos mais conhecidos museus universitários. A sua actual exposição Black Atlantic: Power, people, resistance questiona-nos: “Quais as histórias que são lembradas, e porquê?”. O museu afirma que esta exposição explora algumas histórias novas da História, questionando o papel de Cambridge no comércio transatlântico de pessoas escravizadas.

Em 1816, Richard Fitzwilliam doou muito dinheiro, literatura e arte à Universidade de Cambridge, que deu origem ao museu. As doações foram possíveis graças à enorme riqueza de seu avô, Sir Matthew Decker, um comerciante inglês nascido na Holanda que ajudou a estabelecer a South Sea Company em 1711, responsável pelo tráfico de pessoas escravizadas da África. Respondendo a uma necessidade e exigência de uma parte da sociedade – mas também sua, parece-me – o museu coloca o dedo na ferida, questionando-se a si próprio e o seu contributo na perpetuação de uma determinada história.