Monday 25 November 2013

E tudo o vento levou?


No dia 15 de Novembro teve lugar no Convento de Cristo em Tomar o encontro “Museus e Monumentos: comunicar, inovar, sustentar”, organizado pela Direcção-Geral do Património Cultural. Houve quatro painéis: Mass media: mediação ou medianização?; Estratégias de comunicação; Marketing e branding; Fontes de financiamento, modelos de gestão. Foi um encontro interessante para mim, sobretudo pela integração nos painéis de pessoas que não trabalham em museus e monumentos e que possam trazer ao debate pontos de vista muito relevantes para todos nós. Isto é… se estivermos interessados em ouvir, em ser confrontados com as nossas práticas, em actuar no sentido de mudar para melhor.

São dois os momentos do encontro nos quais gostaria de me concentrar. O primeiro é a comunicação da jornalista Paula Moura Pinheiro, integrada no primeiro painel, “Mass media: mediação ou medianização?”. A Paula referiu-se ao trabalho do jornalista e ao seu papel na comunicação para e com o grande público. Para ela, o jornalista tem o papel do tradutor. É alguém com uma boa cultura geral, mas que tem consciência que não sabe tudo e que, por isso, procura os especialistas e as fontes mais variadas, no sentido de reunir informação. Esta informação é depois trabalhada e ‘traduzida’, para ser levada ao grande público de não-especialistas. “Os meus programas não são para os especialistas”, disse Paula Moura Pinheiro, “e os especialistas não precisam dos meus programas. Os meus programas são para quem não sabe.” Lembrou-me, inevitavelmente, do naturalista britânico Edward Forbes que escreveu em 1853: “Os conservadores de museu podem ser prodígios do conhecimento e, mesmo assim, impróprios para o seu lugar, se não conhecem nada sobre pedagogia, se não estão preparados para ensinar pessoas que não sabem nada.” E lembrou-me ainda de algo que tinha lido há uns anos no livro The Manual of Museum Management de Barry Lord & Gail Dexter Lord: que uma exposição é como um programa de televisão, pode sensibilizar, mas não torna ninguém perito.

Uma outra comunicação no primeiro painel da tarde, “Marketing e branding”, veio testar a compreensão e relevância das palavras de Paula Moura Pinheiro. O publicitário Pedro Bidarra, que esteve durante muitos anos à frente da conhecida agência BBDO, falou-nos do “Muro das Palavras”. Mostrou-nos excertos de textos que encontrou em exposições e que não lhe transmitiram absolutamente nada, porque… não os compreendeu. Os seus exemplos provocaram muitos risos na plateia, mas o Pedro insistiu: “Como querem que eu vá ver as vossas exposições se vocês próprios criam barreiras na comunicação? Não me falta interesse, gostaria mesmo de visitar, mas sinto que a vossa oferta não é para mim, não foi produzida a pensar em mim”.

Os textos do Pedro Bidarra foram muito bem escolhidos; o que não significa que são difíceis de encontrar. O discurso dos nossos museus é, em grande parte, uma conversa entre especialistas. Um enorme esforço é feito para se ganhar no fim o aplauso e aprovação dos nossos pares. Onde é que isto deixa o público, as pessoas, a nossa relação com elas?

Escrevia há duas semanas sobre a forma como os resultados do euro-barómetro foram recebidos por muitas pessoas no nosso sector e perguntava se estes mesmos resultados alguma vez nos vão fazer questionar as nossas práticas ou se vamos continuar a culpar as pessoas por falta de cultura, ignorância, desinteresse.

Penso no encontro em Tomar e no impacto que estas duas comunicações, de Paula Moura Pinheiro e de Pedro Bidarra, terão tido (ou não) na forma como os profissionais de museus presentes, e sobretudo aqueles com responsabilidades de direcção, reflectem sobre as suas práticas diárias. Qual terá sido o significado dos tantos risos na plateia enquanto o Pedro apresentava os seus exemplos? Porque naquela plateia encontravam-se, sem dúvida, pessoas que foram as autoras de textos muito parecidos com os que vimos no ecrã. Como dizia a portuguesa Sandra Fisher Martins, fundadora da campanha Português Claro, na sua TEDx Talk “The right to understand”: “Estes documentos (estava-se a referir a documentos da administração pública) não caem do céu, alguém os escreve”.


Para haver mudança, é preciso haver coragem para enfrentar a crítica; abertura para reconhecer o que não está bem; determinação em prestar um serviço melhor. É também necessário termos sentido de humor, sabermos rir dos nossos próprios erros, desde que o riso sirva para atenuar o – provavelmente inevitável – sabor amargo que deixa a crítica negativa e reforçar a vontade de fazer de outra forma, melhor. Se o riso não passar de um riso, sinto que por trás está um Rhett Butler a pensar: “Francamente, minha querida, eu não ligo a mínima”.

Monday 18 November 2013

Blogger convidado: "Círculos de apoio", por Kateryna Botanova (Ucrânia)

Os meus dois amigos e colegas ucranianos, Ihor Poshyvailo e Kateryna Botanova, são a representação viva daquilo que é a Ucrânia hoje em dia. Um país que deseja fortemente preservar as suas tradições e destacar, assim, a sua distinta identidade cultural; um país determinado em olhar para a frente e para fora, em marcar a sua posição no mundo contemporâneo, livre de ideologias controladoras e de ofertas de “protecção”. Ihor escreveu para este blog no ano passado. Agora, é a vez da Kateryna partilhar connosco as suas ideias, ansiedades e, sobretudo, o enorme e consistente trabalho que ela e o resto da pequena equipa do Center for Contemporary Art tem estado a desenvolver, determinados em lutar contra as suas inseguranças e de ultrapassar os obstáculos para cumprirem a sua missão e assumir em pleno as responsabilidades que traçaram para eles próprios no sector cultural do seu país. mv

SPACES: Architecture of Common, CSM, 2013. Foto: Kosti​antyn Strilets, © CSM
A Ucrânia é um país peculiar onde a palavra “independente” significa algo completamente diferente do que no resto da Europa. Aqui, “cultura independente” e “instituição cultural independente” não estão apenas livres do controlo ideológico e/ou político do governo ou de qualquer outra entidade pública, mas são também definidas como não sendo dependentes de qualquer tipo de apoio financeiro público – porque não há.

Ser uma instituição cultural independente na Ucrânia significa escrever a sua própria missão de servir a comunidade, ser suficientemente corajoso para ver as lacunas na política cultural do Estado e tentar preenchê-las da melhor forma que puder, e ser completamente responsável pelo seu próprio futuro – financeiro e profissional.

No Foundation Center for Contemporary Art (CSM), Kiev, Ucrânia, começamos os nossos encontros mensais de planeamento com uma pergunta – para quem estamos a fazer isto? A nossa declaração de missão define que trabalhamos para criar uma plataforma de possibilidades para os profissionais da cultura – artistas, críticos, arquitectos, escritores, etc. – para promover a comunicação interdisciplinar, a experimentação e a inovação. Mas como é que o fazemos? Como é que sustentamos o seu trabalho quando o acesso à cultura está limitado - e, por isso, a apreciação por ela também – e não há apoios disponíveis, públicos ou privados? Quem pode criar círculos de compreensão e construir apoio para este género de arte?

O CMS é uma instituição independente e sem fins lucrativos criada em 2009, sucessor do Center for Contemporary Art estabelecido por George Soros em 1993, como parte da rede de centros de arte criada por Soros em toda a Europa Central e Oriental. Poucos sobrevivem hoje, sobretudo devido à falta de financiamento. O CSM sobreviveu graças a uma reestruturação significativa – de uma instituição grande, que tinha como objectivo apresentar o trabalho e promover a formação de artistas, para uma pequena e flexível equipa curatorial que procura promover produções experimentais, a crítica e o desenvolvimento de públicos.

Em 2010, um ano após esta transformação, quando tivemos que deixar de repente a nossa sede numa das principais universidades da capital e mudar-nos literalmente “underground”, para a cave de um prédio, Art Ukraine, uma das mais importantes revistas de arte na Ucrânia, incluiu o CSM na lista dos 10 mais importantes instituições artísticas da Ucrânia, destacando “o verdadeiro renascimento do CSM no sentido de se tornar uma das instituições mais activas”. Percebemos que a decisão desconfortável de continuarmos como uma instituição pequena - com base na convicção que é possível e necessário trabalhar nesta área onde nem as corruptas instituições estatais nem o ofensivo capital privado queiram entrar - estava certa.

SEARCH: Other Spaces. Workshop de Anton Lederer, CSM, 2012. Foto: Dmitro Shklyarov, © CSM 
A ideia de continuar a trabalhar – fazendo projectos multidisciplinares em espaços públicos, apresentando iniciativas e programas educativos e de auto-formação, criando novos espaços para o trabalho conjunto de artistas e públicos, fazendo pesquisa em história de arte e políticas culturais - foi importante. O CSM foi e ainda é um exemplo de resiliência e de criação de mudança. Enquanto nós estivermos a trabalhar, as instituições culturais independentes neste país poderão trabalhar também. É difícil, mas é possível.

Quanto mais longe vamos, melhor percebemos que, por enquanto, a maior mudança está na criação de círculos de apoio e compreensão dos públicos: apoio à cultura contemporânea e às ideias que esta articula – criando acesso não apenas aos produtos culturais, mas ao pensamento sobre o mundo em que vivemos e a sua compreensão através da cultura.

Foi em 2010 que nós no CSM tivemos a ideia de lançar uma plataforma para a reflexão crítica e a compreensão dos desenvolvimentos culturais contemporâneos – a revista digital Korydor. Criada inicialmente como uma ferramenta para a comunidade artística poder escrever e debater eventos, questões e problemas, conseguiu dentro de três anos reunir mais de 6000 leitores por mês. Quando tomámos a decisão no verão passado de lançar uma campanha de crowdfunding para a Korydor, tínhamos dúvidas e receio. A quem estamos a dirigir-nos? Os leitores de uma revista intelectual, num país sem tradição de pagar por produtos culturais, precisariam dela o suficiente para a apoiar financeiramente? Se conseguíssemos, o que é que este apoio significaria para a Korydor? Como é que a revista ia mudar? Como é que nós íamos mudar?

Mais de 200 pessoas apoiaram a Korydor, excedendo o objectivo inicial da campanha. Em três meses aumentámos o número de leitores em 20%, conseguindo mais e mais da comunidade artística para dar à comunidade de pessoas que querem que a arte faça parte da sua vida. As contribuições eram frequentemente acompanhadas pelo seguinte comentário: “(mesmo que não estivéssemos a ler a revista antes) estão a fazer algo tão importante, por favor, continuem!”.

A Korydor foi o primeiro meio de comunicação na Ucrânia que foi apoiado via crowdfunding. Seguiram-se outros, como o Public Radio, uma iniciativa independente que atingiu recentemente o seu objectivo de crowdfunding.

Project "Working Room" with Anatoliy Belov, CSM, 2013. Foto: Kostiantyn Strilets, © CSM
O CSM está a dar mais um passo no sentido de alargar o seu círculo de apoio. Daqui a três semanas, em colaboração com o Kyiv-Mohyla Business School, vamos lançar o primeiro programa especial para estudantes de MBA que permitirá a gestores de empresas falar, ver, ouvir e aprender com artistas ucranianos de diferentes géneros e gerações. Tentaremos pensar o nosso futuro juntos e ver como é que podemos todos permanecer independentes no nosso pensamento, expressão e compreensão mútua de quaisquer interesses restritos e necessidades medonhas. 


Kateryna Botanova é crítico de arte, curadora, investigadora em cultura contemporânea e políticas culturais, tradutora. Desde 2009, é a Directora do Foundation Center for Contemporary Art em Kiev, fundadora e editora principal do jornal cultural Korydor. Membro do Conselho Consultivo do festival FLOW (desde 2009), European Cultural Parliament (desde 2007), Vienna Seminar steering group (Erste Foundation, 2012), Public Council of Junist at Andrijivsky project (desde 2012), comissão de peritos do prémio PinchukArtCenter para Jovens Artistas ucranianos. A Kateryna trabalha na área do envolvimento social da arte nos processos transformativos das sociedades. Dá aulas e escreve sobre arte contemporânea, gestão cultural e crítica cultural. É Mestre em Estudos Culturais pela National University of Kyiv-Mohyla Academy. Em 2009 a sua tradução de Culture and Imperialism de Edward Said recebeu o prémio Ukrainian Book of the Year.

Monday 11 November 2013

Auto-barómetro

Todas as imagens retiradas do Facebook da Accion Poetica.
O Eurobarómetro realizou um estudo sobre Acesso e Participação Cultural (relatório completo e sumário). O último estudo tinha sido realizado em 2007, antes da crise atingir a Europa, por isso, este estudo mais recente pode ajudar-nos a compreender os efeitos da crise nos hábitos e práticas culturais das pessoas.

Falando em termos muito-muito gerais, e no que diz respeito a Portugal, os resultados mostram que a participação dos portugueses está abaixo da média europeia em todas as actividades consideradas no estudo, tanto em termos de visitação / assistência como em termos de envolvimento em actividades culturais. As maiores diferenças registam-se na leitura de livros (UE: 68%; PT: 40%), visitas a monumentos e sítios históricos (UE: 52%; PT: 27%) e idas ao cinema (UE: 52%; PT: 29%).



A principal barreira ao acesso referida pelos europeus foi a falta de interesse e a falta de tempo. Para os portugueses, a falta de interesse foi a principal razão de não participação, registando uma percentagem mais alta que a da média europeia em todas as actividades consideradas no estudo. As actividades que menos interessam aos portugueses em relação aos restantes europeus são a leitura de livros (PT: 49%; UE: 25%), a visita a museus e galerias (PT: 51%; UE: 35%) e a visita a monumentos e sítios históricos (PT: 44%; EU: 28%).

A razão porque queria escrever hoje sobre o estudo do Eurobarómetro não é analisar gráficos e resultados. É questionar como é que vamos interpretá-los e o que vamos fazer a partir daqui, sendo profissionais da cultura. Os resultados foram sobretudo recebidos com pessimismo ou algum fatalismo; com afirmações como “Somos um país de incultos” ou “Os portugueses não querem saber, não se interessam, acham que não vale a pena” – com uma certa acusação implícita, pensei, do género “Vale a pena fazer qualquer coisa que seja para esses ignorantes e ingratos?”.


Confesso que fiquei cheia de perguntas, algumas permanentes, frequentemente discutidas neste blog, independentemente da existência de estudos formais. Tentando agrupá-las, penso que se resumem em duas grandes questões:

1ª Questão: Quão larga terá sido a definição de “participação cultural” no estudo? Terão sido apenas considerados a visitação / assistência e o envolvimento com o que podemos chamar “instituições culturais formais”?

Depois de ter acesso ao relatório completo e ao questionário, fiquei contente em ver que a definição não tinha sido estreita (considerou a participação através da Internet e actividades como a dança ou a fotografia ou os trabalhos manuais). No entanto, não tenho a certeza se, da forma como foi feita a pergunta, ajudou os inquiridos a considerar as suas actividades numa perspectiva mais ampla (quantas pessoas, por exemplo, terão pensado que o facto de terem dançado num casamento ou num club constitui uma forma de participação cultural?). Os estudos “Public Participation in the Arts” do National Endowment for the Arts, realizados de quatro em quatro anos nos EUA, disponibilizam-nos este género de detalhes relativamente a “o que exactamente; onde exactamente; como exactamente” – todos os relatórios estão disponíveis online, mas vejam, por exemplo, o último relatório completo de 2008 (alguns destaques aqui), ou os destaques do estudo de 2012, sendo que o relatório completo será disponibilizado em 2014.


No que diz concretamente respeito à participação na Internet, deveríamos destacar o facto dos portugueses usarem este meio numa percentagem acima da média europeia para jogar jogos no computador (+11%), para colocar os seus próprios conteúdos culturais online (+3%), para ouvir música e rádio / fazer o download de música / ler e consultar blogs culturais (+1%).

2ª Questão: Estarão as pessoas pouco interessadas na cultura em geral ou no género de cultura que as “instituições culturais formais” lhes oferecem? Estaremos a programar tomando em consideração as pessoas - os seus interesses, preocupações, conhecimentos prévios, perguntas, necessidades, barreiras práticas e psicológicas que as possam manter afastadas? Iremos alguma vez questionar a forma como fazemos as coisas e a sinceridade da nossas afirmação “Somos para as pessoas”?


Alguns factos pessoais: por vezes, consulto a agenda de exposições em museus e, a julgar pelos títulos, nada soa suficientemente emocionante ou interessante para visitar; um grande número de concertos e intérpretes, de todos os géneros musicais, é promovido como “o melhor do mundo”, mas isto simplesmente não chega para tomar a decisão de comprar um bilhete, uma vez que o mundo está tão cheio de “os melhores” artistas; no que diz respeito a artistas menos conhecidos, a grande maioria das instituições que os apresentam comportam-se como se devêssemos todos conhecê-los já, não acrescentando absolutamente nada ao título e/ou nome.

Portanto, isto pode ser um problema meu como consumidora. Mas pode também ser um problema das instituições culturais que desejam comunicar comigo (pelo menos, dizem que o desejam): o problema de escolher títulos interessantes e inspiradores; o problema de escolher temas (quero dizer, histórias) que possam atrair um público mais diversificado, menos especializado; o problema de tentar atrair mais pessoas usando a informação básica compreendida apenas por poucos; mas também a necessidade (diria, a obrigação) de perceber o que é que as pessoas optam por fazer nos seus tempos livres e porquê. Porque, quando eu, como pessoa / consumidora, não vou aos vossos concertos / exposições / peças de teatro / festivais, não é “simplesmente” porque sou inculta, desinteressada, ignorante ou ingrata (e, francamente, não gosto de vos ouvir dizer isso sobre mim…). Pode ser porque outros tenham sido mais sinceros no seu desejo em comunicar comigo e tenham feito um trabalho melhor em chamar a minha atenção e ganhar o meu interesse e tempo precioso.  

-------------------------------



Em 1996, os mexicanos não liam, em média, mais que um livro por ano. O escritor Armando Alanis Pulido, preocupado com o declínio da literatura e da poesia, e ainda com o preconceito de que a poesia era opaca, difícil de ler e de entender, virou-se para as paredes das cidades, numa tentativa de tornar a poesia parte do dia-a-dia das pessoas. Iniciou um movimento chamado Accion Poetica. Desde aquela altura, a iniciativa espalhou-se em mais 20 países da América Latina e até atravessou o Oceano Atlântico. No outro dia, o jornal Le Monde apresentava este título: As paredes da América Latina falam de amor. A assinatura uma, única: Accion Poetica.

Ainda neste blog











Monday 4 November 2013

Blogger convidado: "Coreografia para uma estratégia de gestão", por Dóra Juhász (Hungria)

Quando fui convidada para ver X&Y pela companhia Pál Frenák em Budapeste no passado mês de Abril, não sabia que a nova gestora artística iria ser minha colega no fellowship do Kennedy Center no verão seguinte. Assim, quando vi Dóra Juhász pela primeira vez em Washington era como se estivesse a encontrar uma velha amiga. Dóra é jovem, cheia de energia, ideias e ambição. Pedi-lhe para escrever para este blog não só porque gostei muito do trabalho da companhia, mas também pela relação especial que esta mantém com públicos surdos. mv

InTimE, Compagnie Pál Frenák
O coreógrafo Pál Frenák tem uma expressão francesa especial para explicar aos seus bailarinos o que quer ver e o que quer alcançar durante o processo de criação: o frágil equilíbrio do “juste”. Quando o movimento, a presença e o conteúdo emocional em palco está “juste”; não mais, nem menos; suficiente e preciso; não criado pela rotina, não tímido ou esquecível, nem demasiado expressivo ou exagerado. “Juste” a intensidade que é precisa naquele momento, resultado de uma pesquisa profunda do corpo e da alma dos bailarinos, depois de semanas de improvisação e experimentação. Quando se atinge esse momento, temos de o reconhecer, de o cativar e manter, porque é precisamente o que precisamos. “Juste”.     

Depois trabalhar numa grande instituição de arte contemporânea durante 6 anos, com esquemas claros e definidos e estruturas já criadas, foi realmente inspirador para mim chegar à companhia de dança contemporânea franco-húngara, a Compagnie Pál Frenák (aqui e aqui), uma companhia independente internacionalmente reconhecida, que existe há 15 anos e que tem uma pequena equipa de gestão. Cheguei num momento em que a política cultural húngara está a mudar, a cena contemporânea de dança e teatro está a perder grande percentagem do seu orçamento anual e do subsídio estatal, enquanto não existe de todo no país uma tradição de financiamento de fontes privadas para a arte contemporânea. Passo a passo, tive que perceber o quanto é crucial encontrar o frágil equilíbrio, neste caso, criar uma estratégia de gestão adequada e apropriada para a minha organização neste momento específico, compreensível para os meus próprios artistas, mas inovadora, corajosa e adaptada às necessidades e ao contexto. Uma estratégia de gestão que fosse… “juste”.

Como é que se pode fazer isto? Como é que todos os nossos conhecimentos de gestão se podem transformar em algo que possa ser novo, provocantemente novo, e, ao mesmo tempo, sustentável, porque respira juntamente com a nossa companhia? Indo mais a fundo, explorando padrões na forma como os artistas trabalham e usá-los como fonte de inspiração para criar uma estratégia, uma campanha ou um projecto.  

SAIR DA ZONA DE CONFORTO, CRIAR DESEQUILÍBRIO

A infância de Pál Frenák foi marcada pelo facto dos seus pais terem uma deficiência auditiva e de fala profunda, o que fez com que a língua gestual fosse o seu primeiro meio de expressão. Isto tornou-o especialmente receptivo à mímica e aos gestos e a todas as outras formas de exprimir conteúdo com a ajuda do corpo humano. Para o Pál Frenák, a melhor técnica é simplesmente o mínimo. Procura, literalmente e fisicamente, desequilibrar os seus bailarinos e motivá-los a sair da sua zona de conforto e esquecer completamente a técnica aprendida.

Língua gestual, deixar a zona de conforto, criar circunstâncias físicas e mentais onde acontecem momentos de (auto)reflexão (claro que trabalhar com pessoas com deficiências auditivas tem sido uma parte importante da missão da companhia desde o princípio)… mas como é que estas componentes e forma de pensar podem influenciar a construção da estratégia dos nossos projectos de envolvimento dos públicos e estratégia educativa a longo prazo?

A equipa em Kunsthalle.
Criámos um pacote educativo para o nosso espectáculo Twins, onde convidámos adolescentes com e sem deficiências auditivas; durante o workshop de preparação nas escolas, trabalhámos intensivamente com eles em pequenos grupos separados – jogando jogos associativos, exercícios de movimento baseados na coreografia e o tema principal da peça – e todos os grupos trabalharam em conjunto com um especialista em drama com deficiência auditiva - que comunicava através da língua gestual -, um tradutor e um dos bailarinos da companhia. Finalmente, todos os grupos encontraram-se no espectáculo e houve também um workshop pós-espectáculo, onde todos participaram, e que combinava língua gestual e expressões verbais-vocais, usando o cenário do espectáculo. Depois disto, os nossos bailarinos visitaram os alunos nas suas escolas para um follow-up.

Organizamos regularmente conversas pós-espectáculo, onde grupos de pessoas com deficiências auditivas também participam, comunicando directamente com o coreógrafo em língua gestual – há um intérprete para o restante público. Porque é que isto é tão importante? Porque, tal como na sala de ensaios, estamos a criar fisicamente um desequilíbrio que provoca o pensamento para a maioria das pessoas na audiência, onde precisam de enfrentar uma situação em que se tornam numa minoria. Esta é a lógica e o quadro para a construção dos nossos projectos de envolvimento e desenvolvimento de públicos a vários níveis, com base no que se passa na sala de ensaios com os artistas, concentrando-nos sempre na procura de uma forte ligação entre a parte artística e a parte estrutural dos nossos projectos.

COMBINAÇÃO DA IDENTIDADE E DO FOCO DA ESTRATÉGIA

Na nossa estratégia de marketing envolvemos os nossos próprios bailarinos e convidamos fotógrafos e realizadores a criar conteúdos promocionais pessoais e únicos com material que encontram nos bastidores – por um lado, é uma boa forma de envolver o nosso público e trazê-lo mais próximo da vida diária da companhia Pál Frenák; por outro lado, está ajustado à equipa: como no processo criativo, o coreógrafo compõe os elementos de uma peça com base na personalidade dos bailarinos, e eles ficam mais ligados emocionalmente, envolvendo-os na estratégia de marketing cria a possibilidade de uma forma muito honesta e única de comunicação do nosso produto artístico também, e é mais que inspirador pensarmos em conjunto o até onde podemos chegar juntos.


O mesmo acontece com a nossa estratégia de fundraising e de assinaturas. A nossa companhia não tem o seu próprio espaço, por isso colaboramos com vários teatros. O que significa que podemos essencialmente oferecer aos nossos patrocinadores uma vista sobre a vida da companhia, em vez de, por exemplo, descontos no parque de estacionamento. Mas, para termos uma estrutura sustentável, quando optamos por uma forma ou evento para envolver os nossos futuros mecenas, precisamos de ver com atenção quem somos como companhia, mantendo-nos verdadeiros, honestos e livres. Se a companhia nunca quis organizar uma festa de ano novo, mas se existe, por outro lado, uma bonita tradição de nos juntarmos no 2 de Janeiro, é importante usarmos este evento para fundraising. Em alguns casos, vamos fazer picnics no parque com coreografias site-specific, em vez de organizarmos jantares formais, porque é isto o que somos; uma colecção de sacos criada por um designer de moda sobre uma peça, em vez de lápis ou ímans com logos como merchandising; porque é esta a nossa maneira.



Estamos, claro, a meio do processo, mas explorarmos juntos a identidade da companhia e encontrarmos ferramentas de gestão para estes elementos é, de alguma forma, uma actividade a longo prazo de construção de equipa, e também um desafio fantástico. Neste caso, a construção de uma estratégia de gestão é, realmente, um processo criativo – paralelo ao artístico. E quando tudo se compõe, quando a estratégia de gestão está sincronizada com a área artística e as duas encontram mutuamente a inspiração, quando está certo… não mais, nem menos do que precisamos… é a isso que chamamos… sabem… “juste”. 


Dóra Juhász é Gestora Artística da Compagnie Pál Frenák em Budapeste, Hungria. Coordena o planeamento estratégico, as relações internacionais, o branding, as digressões, o desenvolvimento de públicos, os patrocínios e o fundraising. Entre 2006 e 2012, foi Responsável de Imprensa e Comunicação para a Casa Trafó de Arte Contemporânea (Budapeste). É membro da Associação Húngara de Críticos de Teatro e dá regularmente palestras e participa em conferências em todo o mundo.