Gostei muito de ouvir a Elisa Santos
falar das Ocupações Temporárias. Projectos como este, que juntam pessoas à volta
de uma ideia, que procuram novos caminhos, que fazem as coisas acontecer
“apesar de”, chamam a minha atenção, transmitem-me entusiasmo, lembram-me que
muito, tanto, é possível quando as pessoas querem. Mas há um limite e a Elisa
faz questão de nos lembrar disso. Há um limite que a vontade de fazer não deve
mesmo ultrapassar; porque temos uma responsabilidade e porque devemos respeito
às obras, aos artistas e ao público. mv
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No Facebook do Jaimito, Av. 24 de Julho, Maputo, 2011. Cidadão a deixar comentário na instalação do artista Azagaia. (Foto: Ocupações Temporárias) |
É uma falácia, a que muito se tem recorrido
nestes tempos de magreza de recursos, assumir que é possível fazer sem meios,
travestindo o argumento com epítetos de inovação e empreendedorismo. Toda a
exaltação, mais ou menos ingénua, mais ou menos politicamente concertada, de
que esta “magia” é que nos salvará, é um contributo sério para a desinformação,
para a descapitalização e para implementação de uma estratégia de mediocridade,
seja em que área for. Esta é a minha firme convicção. E é assim firme para
qualquer área, mas ainda mais em particular para a área artística e cultural.
Em 2010 desafiei um grupo de seis artistas
moçambicanos a realizar uma exposição em moldes diferentes daqueles a que
estavam habituados, e como forma de resposta a uma questão premente na cidade
de Maputo que eles próprios enunciavam: a asfixia da criação gerada pela falta de
espaços de apresentação (os existentes têm uma programação fechada e
repetitiva) e de público (igualmente fechado e repetitivo). Esta asfixia não se
situava ao nível da quantidade de obras produzidas, mas de estímulos de
criação, já que os espaços de crítica, as oportunidades de discussão, de troca
e de contacto com novas linguagens, técnicas e questões pareciam passar ao
largo do circuito de apresentação da capital de Moçambique.
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Reunião com artistas, edição 2010. (Foto: Ocupações Temporárias) |
Realizar uma exposição, ou melhor, seis
exposições, em dois meses, com uma coordenação/produção absolutamente
desconhecida dos agentes locais e dos possíveis financiadores, com um grupo de
artistas com outras atividades que lhes asseguram a subsistência e sem uma
instituição chapéu, pode ser considerado como uma realização sem meios? Pode
parecer, mas não é. A primeira “versão” das Ocupações Temporárias – assim se
chama o projeto - foi discutida em encontros numa esplanada, produzida em mesas
de café e usando a internet wireless pública; foi alinhada a sua data de
inauguração com a Jo’burg Art Fair na esperança (ingénua talvez) que os
curadores, programadores, compradores, colecionadores que se deslocavam para o
certame se pudessem interessar por Maputo, logo ali ao lado; apoiou-se no
Facebook e no blog como meios preferenciais de difusão de informação e de
comunicação. Estes eram os meios disponíveis. Os artistas intervenientes
colocaram os seus meios ao dispor do projeto. As primeiras ocupações tiveram um
apoio financeiro de 3.000USD. No relatório que apresentámos no final da intervenção
contabilizámos alguns dos trabalhos pro bono realizados (produção,
design e tradução, por exemplo), mas nunca conseguimos contabilizar todos os
meios que foram postos ao serviço das Ocupações
Em 2011 quisemos arriscar de novo. Achámos até
que seria mais fácil angariar recursos financeiros porque tínhamos um dossier
que provava a seriedade e transparência na gestão do projeto, o envolvimento
dos participantes e a sustentabilidade da ideia, que não se apoiava em nenhuma
estrutura fixa, pesada e cara e que, acima de tudo, havia necessidade, ou seja,
que não se tratava de um compromisso de calendário mas de uma ação que se
justificava no contexto artístico e cultural da cidade. Todos os argumentos
foram reconhecidos, fomos elogiados e apontados como um caso interessante –
tanto na essência do projeto como na sua gestão - porém os recursos financeiros
estavam já comprometidos. Contudo, não era possível o apoio porque os fundos,
em particular os apoios da cooperação internacional, vocacionam-se para o reforço
institucional e da sociedade civil, onde não nos enquadrávamos por falta de
entidade jurídica, ou seja, o projeto não assentava numa organização formal,
não respondia aos calendários de atribuição de financiamentos, não garantia a
sua existência no próximo ano. Ainda assim persistimos e o tema escolhido para
as Ocupações Temporárias 20.11 foi a Precariedade. A inauguração foi a
11 de Setembro e tivemos o apoio do Goethe Institut em Maputo e da Embaixada da
Suíça num total de 2.000€.
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Vista da instalação do artista Paulo Kapela nas ruas de Maputo, 2012. (Foto: Ocupações Temporárias) |
As condições em que realizámos esta versão das
ocupações foram ainda mais difíceis do que as do ano anterior, contudo
mobilizaram-se os artistas de 2010 e os de 2011, de novo os amigos, os
conhecidos, os desconhecidos que nos tinham visto no ano anterior e de novo
muito investimento (também financeiro) dos intervenientes. O resultado foi
muito positivo, mas, como disse um programador internacional, estava no limiar
do realizável, do aceitável. Porque há um limite para a dignidade (das obras,
dos artistas, do público) que se afere pelas condições de apresentação, de
produção e de usufruto de uma mostra.
Em 2012 as Ocupações Temporárias, tendo como
tema base os Estrangeiros, tiveram, finalmente, aquilo a que se usa chamar “meios”
através do financiamento exclusivo da Fundação Calouste Gulbenkian que entendeu
apoiar a realização da exposição em Maputo, e propor e promover a sua
realização em mais dois países (Cabo Verde e Angola) e ainda programar para
2013, em Lisboa, na sua sede, uma exposição documental de todo o processo. Sem
estes recursos, sem este apoio, sem este investimento, as Ocupações de Maputo
não se teriam realizado, nem nos moldes em que vieram a acontecer, nem tão
pouco nos moldes dos anos anteriores. Não era possível insistir num discurso de
investimento sempre dos mesmos para provar a capacidade de fazer, quando essa
capacidade, sendo reconhecida teoricamente não tinha retorno por parte das
instituições que têm por vocação o apoio a estas iniciativas. Sem estes meios
as Ocupações teriam terminado em 2011.
Em todas as edições realizadas se cumpriram os
pressupostos de partida: atrair a atenção de públicos diferentes que se
confrontaram com as obras no espaço público; confrontar os artistas com novos
espaços. Apesar de não ser possível contabilizar o número de visitantes, é
inegável que as obras foram vistas por milhares de pessoas. Um outro público
mais específico, o dos agentes culturais, dos artistas e os alunos da área das
artes, foi também espectador destas ocupações e geraram-se conversas,
discussões e posições face à iniciativa. Prova disso é o interesse em saber das
datas e temas da edição seguinte, das formas de candidatura e os convites para
falar ou escrever sobre a iniciativa.
Apesar de as Ocupações Temporárias terem sido
vistas, desde a primeira edição, à distância, por programadores, por críticos,
por curadores, por galeristas e por outros artistas, faltou-nos alcançar
notoriedade internacional, chamar a atenção de novos mercados, nomeadamente o
sul africano, dar visibilidade nacional à produção de arte contemporânea; eram
desafios muito grandes que não se poderiam vencer quando a grande maioria dos
materiais de comunicação não se encontravam traduzidos, não se produziram
catálogos de todas as edições, com um bom suporte teórico nem boas imagens das
obras, não se criou um site ou uma boa base arquivo e de acesso à
informação e à documentação das diferentes exposições.
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Instalação do artista Bento Oliveira na Gare do Porto Grande, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, 2012. (Foto: Ocupações Temporárias) |
A grande importância do apoio recebido para 2012
e 2013 reside exatamente na disponibilização de recursos (financeiros e não só)
que viabilizaram a realização das exposições e de ações com vista à
internacionalização dos artistas, à visibilidade de uma nova produção
decorrente da emergência de uma comunidade artística com novas práticas, diferentes
discursos e outras propostas de intervenção.
Como afirmei no início, o elogio da privação de
recursos, como potencial incentivador da criação e da produção, é enganador,
podendo assumir contornos perigosos do ponto de vista da qualidade e da independência
do que é produzido. As Ocupações Temporárias seriam diferentes com mais meios,
com outros meios, mas nunca existiriam, como nada existe, sem meios.
Elisa Santos foi produtora cultural independente até 2002, ano em
que assumiu a direção de produção do Teatro do Campo Alegre no Porto. Trabalhou
em projetos de cooperação e desenvolvimento em Angola e Moçambique entre 2003 e
2012. É consultora em projetos nas áreas do voluntariado e da cooperação
mantendo atividade de produtora na área cultural.