Saturday 3 December 2022

É mesmo tão difícil de compreender?

Foto: Justo Stop Oil via The New York Times

“Museus apertam vigilância preocupados com ações de ‘terrorismo’ ambientalista contra arte”. Não sei se foi a palavra “terrorismo” no título que me chocou mais ou as próprias respostas dadas ao jornalista por diferentes directores de museus portugueses. Respostas que revelam total distanciamento da questão da emergência climática e do papel e impacto que os museus têm sobre ela. Fiquei estupefacta quando o director de um museu nacional afirmou que tinha “alguma dificuldade em perceber o que os museus e as obras de arte têm a ver com este tipo de protesto ambientalista” e que “Está relacionado com a questão do petróleo e da poluição, mas as obras de arte não têm culpa nenhuma. São ações mediáticas, mas é difícil de perceber porque têm as obras de arte de pagar por isto.” Um outro director de um museu nacional disse que considera estas ações preocupantes porque os museus “guardam, restauram e exibem coleções únicas no mundo, [que] estes casos são ‘preocupantes’ para estes espaços culturais, porque "colocam em risco um património que é de todos" e que "deve ser protegido para as atuais e futuras gerações" (essas palavras não serviriam perfeitamente para discutir o nosso património natural e a nossa obrigação para com as gerações futuras?).

Pode-se pensar que talvez o jornalista não tenha feito perguntas que iam além dos actos dos activistas, por isso os directores de museus também não falaram sobre o impacto que os museus estão tendo nas mudanças climáticas e o que os seus museus estão, de facto, a fazer a esse respeito. Acho, no entanto, que se esse fosse o caso – isto é, se eles tivessem conhecimento e informações para partilhar – te-lo-iam feito, mesmo sem serem questionados directamente; teriam tomado uma posição.

Dias após a publicação dessas entrevistas, que não causaram qualquer reacção especial no país e no mundos dos museus, o ICOM Alemanha publicou um comunicado, assinado por mais de 90 directores de museus a nível internacional, que essencialmente diz o seguinte: “Os activistas responsáveis ​​por eles subestimam severamente a fragilidade desses objectos insubstituíveis, que devem ser preservados como parte de nosso património cultural mundial. Como os directores de museus estão frustrados com a preservação dessas obras, ficamos profundamente abalados com o seu risco de extinção”.

Jasmine Liu, da Hyperallergic, respondeu com um artigo muito apropriadamente intitulado “À medida que o mundo arde, líderes de museus 'profundamente abalados' com protestos climáticos”. Escreveu: “O mundo está a aproximar-se de uma catástrofe climática, com gases de aquecimento a atingir recordes e com os especialistas a alertar sobre mudanças ‘irreversíveis’ no nosso meio ambiente. Perante este cenário, proeminentes líderes de instituições de arte divulgaram uma declaração indicando que estão “profundamente abalados” – não pelo alarmante aquecimento do planeta, necessariamente, mas pelos recentes protestos climáticos que colocam em perigo a arte”. Ela tem, razão. Os directores de museus estarão, assim, tão alienados?

Alguns dias depois, Hakim Bishara, ainda mais irónico, perguntava “Directores de museus, precisam de um abraço?”,  identificando uma causa essencial para estas declarações embaraçosas: uma inconfundível falha de liderança. “O maior problema aqui”, escreveu, “é que esses directores de museus têm um entendimento extremamente limitado das suas funções. Nas suas próprias palavras, a responsabilidade primária do museu reside em “coleccionar, estudar, partilhar e preservar” o património cultural. Não, precisamos que vocês façam mais do que isso. Precisamos que os directores de museus se tornem verdadeiros líderes culturais, que saibam como identificar e abordar os problemas mais prementes da sociedade e envolver-se activamente na sua resolução. Peço-vos que parem de pensar como cuidadores e comecem a actuar como agentes de mudança. Comecem a representar a vossa comunidade, não apenas o vosso conselho de administração.”

Numa declaração publicada a 18 de Novembro, o ICOM – Conselho Internacional dos Museus parecia ter conseguido equilibrado um pouco melhor as coisas. Quis “reconhecer e partilhar as preocupações expressas pelos museus em relação à segurança das colecções e as preocupações dos activistas climáticos, pois enfrentamos uma catástrofe ambiental que ameaça a vida na Terra”. Disse também que “os museus são actores-chave na condução da acção climática e devem ser vistos como aliados no movimento climático”. É verdade, mas é preciso mais do que palavras. Os museus não podem e não devem ser vistos como “aliados” enquanto não tomarem nenhuma atitude e aparentarem não ter a menor noção ou verdadeira preocupação com a emergência que estamos já a viver. Dias depois, o Ministro da Cultura italiano, Gennaro Sangiuliano, afirmava descaradamente: “Tendo em conta o enorme património a proteger, a intervenção [de reforço da segurança e protecção das obras] representará um custo considerável para os cofres do ministério e de toda a nação. Infelizmente, só posso prever um aumento no custo do ingresso". Quão desavergonhado um político pode ser?

A NEMO - Network of European Museum Organizations – no meu ver, uma das organizações mais relevantes na sector – realizou recentemente umwebinar, onde apresentou os resultados do seu inquérito sobre os museus na crise climática e as suas recomendações. Vejamos:

  • 8 em cada 10 museus afirmaram reflectir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nos seus planos estratégicos (sendo o ODS13 “Tomar medidas urgentes para combater as mudanças climáticas e os seus impactos”). NEMO comentou sobre isso, afirmando que a narrativa tem sido muitas vezes que o património cultural e as instituições de património cultural são algo a ser protegido, mas muitas vezes não consideram como as instituições culturais podem contribuir na criação de soluções e no apoio à transição sustentável;
  • 1 em cada 4 museus trabalha com critérios internos ou com uma rede de avaliação externa para medir os seus esforços sustentáveis;
  • 1 em cada 10 museus está consciente das políticas climáticas locais/regionais ou nacionais que falam deles ou que os abordam;
  • Menos de 1 em cada 10 museus concluiu uma análise sobre os desafios associados às mudanças climáticas na sua região;
  • 2 em cada 3 museus não têm conhecimento suficiente sobre os ODS e acção climática na sua organização;
  • 1 em cada 10 museus faz parte de uma rede cultural que se concentra nas mudanças climáticas.

Quando várias pessoas de meia-idade dizem aos jovens activistas que existem “melhores maneiras de protestar” e recomendam mais informação e educação (os cientistas têm, na verdade, tocado a campainha sobre a mudança climática desde o início dos anos 90, quando as pessoas de meia-idade hoje tinham os seus 20 anos…), o que têm a dizer sobre todo um sector cultural que expressa ignorância e quase total falta de acção? Não deveríamos sentir-nos envergonhados e profundamente responsáveis, em vez de chamar aos activistas de “terroristas”?

Não é que não haja conhecimento e iniciativas concretas no sector dos museus, se queremos combater a nossa ignorância e contribuir para o combate às alterações climáticas. No webinar da NEMO, Henry McGhie da Curating Tomorrow (um serviço de consultoria para museus e o sector do património interessado em criar um futuro melhor, com várias publicações gratuitas sobre a emergência climática e, mais importante, o empoderamento climático) apresentou brevemente um plano para acção climática nos e com os museus, que pode dar uma orientação básica sobre o que devemos discutir e como agir. “Nos” e “com os” é muito importante aqui, pois não se trata apenas do que os museus podem fazer pelos outros, mas também do que eles devem fazer internamente; dois aspectos igualmente importantes do trabalho que precisamos de fazer.



Há mais, muito mais:



Neste momento, parece haver grandes filas em Lisboa para a exposição “Evilution” do artista Bordallo II, que questiona os “males” (evils) da nossa “evolução” e os seus efeitos, especialmente em termos de produção de lixo. O local não é central e não há bons transportes públicos, mas as pessoas procuram informação, procuram formas de se envolver e de agir. Não querem sentir-se impotentes. Como é que os museus respondem às suas preocupações e necessidades? Não podemos estar a expressar dificuldade em entender o que tudo isso tem a ver com os museus ou com as obras de arte ou com cada um de nós pessoalmente (como indivíduo e como profissional dos museus e da cultura). É cada vez mais dramático que este sector confirme, repetidamente, a sua alienação da sociedade, a sua irrelevância. Precisamos de fazer melhor. E estamos atrasados.


Nota: O post foi actualizado a 8 de Dezembro, para incluir as declarações do Ministro da Cultura italiano.

Mais neste blog:

O que podemos esperar de quem dirige um museu?

 
Mais leituras:

New London Architecture, The art of zero waste: can temporary exhibitions be sustainable?

Touring Exhibitions Organisation, Sustainable Travelling Exhibitions: Can travelling exhibitions be part of a sustainable museum policy? 

The Theatre Green Book 

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