Monday, 6 May 2024

Importemo-nos, honestamente

Foto: Maria Vlachou

Quando participei na conferência da Balkan Museum Network, no mês passado, tive o prazer de ouvir Łukasz Bratasz, chefe do grupo de Investigação do Património Cultural do Instituto Jerzy Haber (Polónia). A sue “keynote speech” era sobre “Sustainability-conscious management of art collections”. Para alguém como eu, que conhece o básico sobre o controlo das condições ambientais em museus, foi uma palestra surpreendente e refrescante. Talvez também para os que sabem mais do que eu. Porque Łukasz partilhou connosco os resultados de estudos que mostram que os objectos são muito menos vulneráveis às variações ambientais do que se supunha anteriormente e que existem outras formas de gerir colecções de arte, com uma pegada de carbono significativamente mais leve.

No entanto, foi outro ponto das conclusões de Łukasz que me fez intervir. Foi a formulação do ponto 3: “Construir uma imagem de um ‘museu verde’ reduzirá o risco dos activistas climáticos”. Considerei que não se trata apenas de construir uma imagem (o que me soou como “fingir ser verde”) e que não deveríamos referir-nos aos activistas climáticos como um “risco”, até porque não danificaram nenhuma obra de arte, até agora. Ficou claro, na discussão e na própria apresentação, que Łukasz não quis dizer isso, por isso, sugeri que  esse ponto pudesse ser reformulado.

Nesse momento, uma outra colega pediu a palavra e disse que não era verdade que nenhuma obra de arte tivesse sido danificada. Pegou no seu telefone e mostrou-nos imagens de uma pessoa a deitar tinta e depois a cortar a tela do retrato de Lord Balfour no Trinity College, em Cambridge. Pedi desculpa por não me lembrar desse incidente e imediatamente procurei mais informações. Lembrava-me do caso, mas não o tinha associado a activistas climáticos. E não tinha mesmo nada a ver com eles: esse acto tinha sido cometido por manifestantes pró-Palestina (Lord Balfour era Secretário dos Negócios Estrangeiros quando assinou a Declaração Balfour em 1917, que abriu o caminho para a criação do Estado de Israel). Mostrei a informação à nossa colega; ela não achou necessário informar os restantes participantes que ouviram a sua intervenção, por isso muitas pessoas saíram daquela sessão acreditando que os activistas climáticos danificaram pelo menos uma obra de arte. Achei que isso não era responsável nem honesto. Especialmente porque sei que muitos, demasiados, profissionais de museus apenas leem os grandes títulos, como a maioria das outras pessoas, e está convencida de que os activistas climáticos destroem obras de arte.

Conversando um pouco mais com Łukasz sobre este ponto, ele disse-me que outro participante tinha referido que uma moldura histórica tinha sido danificada numa dessas acções e que seria necessário muito dinheiro para a reparar. A minha reacção foi imediata: Porquê reparar? Porquê não olhar para isso como parte da história do objecto e mencionar na tabela de que forma a moldura tinha sido danificada? E, de qualquer forma, o que é mais importante para mim, enquanto cidadã e profissional de museus: que os museus repararem uma moldura (mesmo que histórica) ou que tomem medidas contra as alterações climáticas?

No passado fim-de-semana, vi algumas das gravações da conferência do ICOM “Aos museus, cidadãos!”, que se realizou em Lisboa no início de Abril. No final da manhã do segundo dia, numa breve sessão de perguntas e respostas, tivemos a oportunidade de ouvir um guia turístico a expressar a sua preocupação com o “wokismo” e com os seus ataques em museus; a informar-nos que as “pessoas wokistas” são uma minoria muito pequena, que nem sequer representa os jovens; e a chamar aos activistas climáticos de jovens ignorantes. Sugeriu também pedir à federação de rugby que nos ajudasse a aprender como deter esses agressores. Tivemos também a oportunidade de ouvir uma senhora portuguesa que estuda na Universidade de Birmingham a questionar os presentes sobre como podemos lidar com estes ataques a obras de arte por parte de activistas verdes ou com o vandalismo contra estátuas; afirmou também estar muito chocada com o facto de a estátua do Padre António Vieira (defensor dos índios e crítico da Inquisição) ter sido “riscada”, como ela disse.

Já expressei anteriormente a minha preocupação relativamente à falta de informação e de empatia manifestada por muitos profissionais da cultura nas suas intervenções públicas. No passado, escrevi tanto sobre o vandalismo da estátua do Padre António Vieira (aqui), como sobre a resposta de directores de museus, em todo o mundo e em Portugal, relativamente aos activistas climáticos (aqui). As respostas a estas duas questões do público na conferência do ICOM foram algo mornas, até que a nossa colega Susana Gomes da Silva, do serviço de mediação do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, pediu a palavra. Vale muito a pena ver a sua apresentação (3:33:10 – 3:50:05 na gravação), mas talvez seja ainda mais importante ouvir a sua resposta ao público (que começa em 4:02:10). Aqui está a transcrição:

“Eu queria só acrescentar uma coisa, porque não queria deixar passar as últimas questões em branco. Ao longo da história e das civilizações, sempre houve apagamentos e destruições do património público por ideologias que substituíram outras, não é isso que é novo. E não estou a dizer com isso que concordo com actos de vandalismo para provar o que quer que seja. Mas há aqui questões extremamente importantes. Acho que a indignação que sentimos todos quando uma coisa é violada ou violentada devia ser proporcional à causa que provoca a própria violentação dessa coisa. Porque, na verdade, os meios usados pelos activistas climáticos ou pelos defensores de leituras críticas pós-coloniais são chamadas de atenção, que atacam símbolos que insistimos em que permaneçam naquilo que são as narrativas que os nossos espaços públicos, e muitas vezes museológicos, contam. E, não concordando com o processo, como acabei de dizer, não deixo de, como profissional e como cidadã, ter que dar atenção àquele acto, que é um acto que, na verdade, está a exigir que a minha indignação tenha a mesma amplitude para a causa que está a ter para o efeito. Porque aquilo com o que temos de nos indignar neste momento é com a inacção existente em relação às questões climáticas, por exemplo, e convocar-nos como cidadãos para resolvermos o assunto. Da mesma forma que a nossa indignação deve dirigir-se para os símbolos que persistem em narrativas únicas que, muitas vezes, excluem outros. E é aqui que nos devíamos situar. E quando, há bocadinho, falava na escuta e nos diálogos improváveis, era aqui que eu estava a dizer ‘é este o espaço que nós, como pessoas da cultura, podemos ocupar’. É este de ouvir e de discutir. Obviamente não promovendo nenhum tipo de violação de património.”

Uma lição profunda, para todos nós, em menos de dois minutos.

 

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A minha responsabilidade por este vandalismo

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