Em Julho, escrevi
um artigo para o jornal Público sobre o que se tornou numa
situação extrema de proibição de livros nas bibliotecas escolares e públicas
dos Estados Unidos. Escrevi na altura que os livros contestados tratam
normalmente de questões LGBTQI+, raça e racismo, escravatura, genocídio de
povos indígenas, religião. Existem também inúmeras exigências para que os
livros sobre a puberdade sejam transferidos da secção juvenil para a secção de
adultos... Situações semelhantes estão a ocorrer no Brasil e noutros países,
sendo mais ou menos noticiadas pelos meios de comunicação mainstream.
Um relatório recente sobre a situação nos EUA, publicado pela Knight Foundation, mostrou alguns resultados muito relevantes: 78% das pessoas confiam nas suas escolas públicas para selecionar materiais apropriados; revelou também que “a maioria dos americanos se sente informada sobre os esforços para proibir livros nas escolas, mas apenas 3% dos inquiridos disseram que se envolveram pessoalmente na questão - com 2% a envolverem-se no sentido de defender o acesso aos livros e 1% a procurar restringir o acesso.” (ler mais). O que é que isto nos diz? Muitas pessoas estão informadas sobre o assunto, algumas, poucas, envolvem-se na defesa da liberdade de ler num país democrático, enquanto uma minoria vocal, muitas vezes violenta, tem permissão para decidir o que os outros podem ler e onde. Soa familiar?
Nesse mesmo artigo para o Público, partilhei a minha preocupação relativamente às primeiras tentativas de proibição de livros em Portugal e o comunicado de editoras, livrarias e associações (subscrito, entretanto, por mais de 3000 pessoas) que denunciava “os repetidos ataques de elementos da Habeas Corpus e do partido de extrema-direita Ergue-te a escritoras de livros infantojuvenis e a bibliotecários, à leitura tranquila numa Biblioteca pública e a apresentações de livros e debates.” O comunicado refere-se ainda a estes agressores invadirem e desrespeitarem a privacidade e a vida familiar das escritoras, procurando “criar um clima de medo e insegurança, [intimidando] com berros e insultos, calúnias e mentiras.“ No passado mês de Agosto, o Habeas Corpus apresentou uma lista de “terroristas LGBTQI+”, que é actualizada todos os meses (fui informada ontem que estou incluída na lista de Outubro). Tendo sido acusados de incitar ao ódio e à violência contra as pessoas na lista, fazem agora um disclaimer: “Estas pessoas não são terroristas; estas pessoas não devem ser alvo de qualquer forma de violência. (…) Estas pessoas promovem o homossexualismo e o transexualismo junto das crianças e dos jovens.” Afirmam ainda que este “movimento” é financiado pelo dinheiro dos contribuintes (Gosto particularmente deste argumento... Quem são os contribuintes? E o que querem?)
Até agora, no nosso espectro político, apenas o Bloco
de Esquerda questionou repetidamente o governo e as
autoridades sobre a actuação deste grupo e a tolerância para com ele. Foram
apresentadas várias queixas formais pelas vítimas, mas não tenho conhecimento
de nenhuma acção concreta no seu seguimento. Mais recentemente, o Partido
Socialista também questionou o governo sobre a permissão dada a este
grupo para espalhar o ódio. Mais uma vez, não tenho conhecimento de quaisquer
respostas.
Estamos agora a entrar num novo capítulo desta história.
Uma situação não inédita, nem surpreendente, que já se está a desenvolver
no outro lado do Atlântico e provavelmente também noutros lugares: chama-se
“censura suave”.
Embora existam dados sólidos sobre os pedidos de proibição
de livros, um
artigo recente no NBC News recorda-nos que “O que os relatórios não
quantificam é o dano colateral da proibição de livros, ou a chamada censura
suave, quando um título é eliminado, removido ou condicionado antes de ser
explicitamente proibido, por receio de reações adversas.” George M. Johnson,
cujo primeiro livro, “All Boys Aren’t Blue”, é um dos livros mais proibidos nos
EUA, disse que isto “se aplica fortemente nas escolas e nas bibliotecas”, onde os
livros nem sequer são encomendados. Não podemos identificar e contabilizar livros
que não são encomendados, autores que não são convidados a feiras, escolas ou
bibliotecas para falarem sobre o seu trabalho. Soa familiar? Talvez não, mas é
exactamente o que está a acontecer também em Portugal.
E isto deve preocupar-nos a todos: pais, professores,
profissionais da cultura, escritores, editores, juízes, políticos, a polícia,
todos. Percorrendo o país nestes últimos dias vi muitos municípios assinalarem
com orgulho o 50º aniversário da Revolução dos Cravos. Sentimo-nos realmente
orgulhosos quando um pequeno grupo de agressores barulhentos impõe os seus
pontos de vista a todos os outros? Sentimo-nos orgulhosos quando crianças sentem
medo pela segurança dos seus pais e pela sua própria? Sentimo-nos orgulhosos
por fazer parte da maioria silenciosa? E sentimos orgulho em ensinar o medo e o
silêncio às gerações mais novas para “evitar problemas”? Abril é isso?
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