Imagem retirada da página de Facebook do LUCA - Teatro Luís de Camões |
O Fitzwilliam Museum em Cambridge é um dos mais conhecidos museus universitários. A sua actual exposição Black Atlantic: Power, people, resistance questiona-nos: “Quais as histórias que são lembradas, e porquê?”. O museu afirma que esta exposição explora algumas histórias novas da História, questionando o papel de Cambridge no comércio transatlântico de pessoas escravizadas.
Em 1816, Richard Fitzwilliam doou muito dinheiro, literatura e arte à Universidade de Cambridge, que deu origem ao museu. As doações foram possíveis graças à enorme riqueza de seu avô, Sir Matthew Decker, um comerciante inglês nascido na Holanda que ajudou a estabelecer a South Sea Company em 1711, responsável pelo tráfico de pessoas escravizadas da África. Respondendo a uma necessidade e exigência de uma parte da sociedade – mas também sua, parece-me – o museu coloca o dedo na ferida, questionando-se a si próprio e o seu contributo na perpetuação de uma determinada história.
É comum ouvirmos pessoas
argumentar contra o “apagar da história”. Fico sempre com a sensação de uma
reacção demasiado superficial, de pessoas demasiado confortáveis no seu lugar,
que não se questionam verdadeiramente qual a história que foi apagada. No verão
passado, uma notícia que deu a volta ao mundo foi a da aquisição
do quadro “Bélizaire and the Frey children” pelo Metropolitan Museum of Art.
Bélizaire foi uma criança escravizada e a sua figura tinha sido apagada do
quadro, por razões ainda desconhecidas. Um trabalho de restauro em 2005 voltou
a revelá-lo, sendo que o Met adquiriu o quadro “como parte de seu esforço maior
para reformular a forma como conta a história da arte americana”. Isto também
me faz lembrar a iniciativa do Worcester Art Museum, em 2018, de incluir tabelas
que se referissem à associação de pessoas retratadas em quadros à escravatura, “chamando
a atenção para as ligações entre arte, escravatura e riqueza na América”. É a esses apagamentos e deturpações que alude também a obra
da artista britânica Barbara Walker Vanishing Point 29
(Duyster) (2021).
Mas não é este apagamento da história que incomoda certas pessoas, não é disso
que falam. A nossa sensibilidade é bastante selectiva; a nossa luta pela
História, pela Arte, pela liberdade de expressão também.
Imagem retirada do jornal The Guardian.
Em
Maio passado, a instalação de Dori Nigro e Paulo Pinto Adoçar a Alma para o Inferno III, integrada na Bienal
Fotografia do Porto, questionava-nos: “Quantas pessoas escravizadas
vale um hospital psiquiátrico?”. O Centro Hospitalar Conde de Ferreira, onde a
obra estava instalada, é uma de mais de 100 instituições que foram apoiadas por
Joaquim Ferreira dos Santos, Conde de Ferreira, com
dinheiro resultante
sobretudo do comércio de pessoas escravizadas, entre Angola e Brasil. No
próprio dia da inauguração, o administrador executivo do CHCF
Ângelo Duarte ordenou o encerramento da sala onde se encontrava a obra, alegando o potencial desconforto que tal poderia gerar na
comunidade daquela que é a casa de muitos doentes”. A censura não pareceu
realmente incomodar a sociedade, começando pelo próprio sector da cultura. Li na
altura que a Bienal recebeu emails de apoio da Câmara
Municipal do Porto, da Direção-Geral das Artes, da Universidade do Porto e de
outros parceiros. Li também uma carta aberta,
que me parece que foi iniciativa da UNA – União Negra das Artes. Mas senti que,
em grande parte, como sector cultural, não nos sentimos realmente incomodados,
não manifestámos publicamente a nossa solidariedade para com os nossos colegas,
nem como indivíduos nem como instituições; ficámos demasiado silenciosos.
Achei, por isso, algo irónica
a controvérsia provocada nessa mesma cidade do Porto, e discutida por
diversos colegas em diferentes pontos do país, a propósito da permanência ou
não da estátua de Camilo Castelo Branco e Ana Plácido em frente à antiga Cadeia
da Relação. Não me interessa aqui discutir a desastrosa gestão deste assunto pelo
Presidente da Câmara do Porto. Nem vou repetir o que já partilhei sobre a contestação de estátuas que se encontram no espaço
público. Interessa-me discutir a preocupação com a liberdade
de expressão artística ou com o “apagar a história” ou, ainda, com a opinião dos restantes portuenses. A nossa sensibilidade
provou ser, mais uma vez, muito selectiva e nós, mais uma vez, pouco honestos.
Há
dias, houve mais uma tentativa de censura, no lançamento do livro “No meu
bairro”, de Lúcia Vicente. A linguagem neutra usada no livro incomodou algumas
pessoas, que se acharam no direito de interromper o evento, de calar a autora. Lúcia Vicente disse ao Público que "estavam
sete pessoas na audiência que tinham vindo para destabilizar ou para questionar
directamente o livro, mostrando o seu desagrado. O que me pareceu perfeitamente
aceitável, até entrar a pessoa com o megafone"… Desta vez, vi com alguma
emoção e esperança o vizinho Teatro
do Bairro Alto a manifestar publicamente a sua solidariedade. Dias
mais tarde, o LUCA –
Teatro Luís de Camões posicionou-se também; talvez mais
discretamente, para quem não estava a par do sucedido, mas inequivocamente.
Podemos pensar que estamos longe da situação gravíssima que
se vive nos últimos anos nos EUA, com as repetidas (e bem-conseguidas) tentativas
de censura de livros nas bibliotecas escolares, que mais
recentemente atingem também as bibliotecas públicas. Iniciativas como o Banned
Bookmobile Tour ou Books
Unbanned lutam contram o silenciamento de autores e histórias,
enquanto o Chartered Institute of
Library and Information Professionals no Reino Unido emitiu recentemente novas directrizes
para os seus membros afirmando que “Num mundo polarizado, é importante que o nosso sector seja
claro na sua oposição à censura.”
Dizia
que podemos pensar que estamos longe destas situações gravíssimas. Devo lembrar
que, há pouquíssimos anos, afirmava-se que Portugal estava imune à extrema
direita? É o nosso silêncio e relativização, é a forma como normalizamos certos
actos e discursos, que dá espaço aos inimigos da democracia. A nossa defesa da
liberdade de expressão e do não apagamento da História deve ser informada,
permanente, inequívoca. E deve existir mesmo – e sobretudo - quando nos faz
sair da nossa zona de conforto.
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