Deixe aqueles que sentem pesada
A mão cuprosa do medo
Viver sob o jugo da escravidão;
Coragem e virtude é o que
A liberdade quer.
“Quarta Ode, A Samos” por Andreas Kalvos
Li o livro de Lonnie Bunch “A Fool’s Errand” como se fosse um romance fascinante. Com a mesma urgência, com o mesmo prazer e emoção. Tive a honra de conhecer Lonnie Bunch em Lisboa, há pouco mais de dois anos. Para além da sua inteligência, outra coisa que me marcou foi a sua humildade. Encontrei a combinação destas duas qualidades no livro também. E senti admiração pela sua generosidade em partilhar connosco esta aventura de criar um museu, começando com uma equipa de dois e sem colecção: os sonhos e as ambições, os valores e os princípios, os erros de julgamento, os fracassos, os sucessos planeados e não planeados. E também a visão subjacente de “tornar a América melhor”. Como disse Lonnie Bunch, não se tratava apenas de “que tipo de museu eu queria, mas também em que tipo de América eu acreditava” (p.183). Tudo isto junto dá-nos um dos manuais mais essenciais sobre liderança na área dos museus ou da cultura.
Havia, naturalmente, expectativas “oficiais” do
Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana (NMAAHC). Lonnie Bunch
defendia um “lugar de significado e memória”, que “iluminaria histórias e
narrativas que humanizassem a história e tornassem visíveis aquelas
tradicionalmente omitidas da memória histórica da América” (p.26), e também que
“usaria a história e a cultura como forma de iluminar e contextualizar
importantes preocupações contemporâneas” (p.51). Não sonhava com um museu para
os americanos negros, mas, sim, com um museu onde “todos os americanos,
independentemente de raça, devem compreender como são profundamente moldados e
melhorados por esta história” (p.28). Quando a cerimónia de inauguração teve
lugar a 22 de Fevereiro de 2012, o Presidente Barack Obama expressou o desejo
de que as suas filhas pudessem “apreciar este museu não apenas como um registo
de uma tragédia, mas também como uma celebração da vida” (p.145); e no dia da inauguração,
a 24 de Setembro de 2016, o Presidente George Bush lembrou a todos que “a
escravatura foi o pecado original da América e que uma grande nação abraça o
seu passado em vez de se esconder dos seus momentos de dor ou maldade” (p.2).
Estas são afirmações inspiradoras, mas Lonnie
Bunch também entendeu que para as apresentações (ou o livro, digo eu) serem
bem-sucedidas, “tinham de dar voz ao anónimo, tornar visíveis aqueles que
muitas vezes não são vistos, mas também fornecer novas visões sobre pessoas e
eventos conhecidos” (p.160). Diferentes histórias são partilhadas AO LONGO do
livro:
A história da funcionária
de limpeza que se cruzou com Lonnie Bunch no elevador do museu e que lhe disse
que “andar pelo museu recorda-a da força do ‘seu povo’ e dá-lhe esperança para
o futuro” (p.x);
A história de
uma taxista afro-americana que transportava dois supremacistas brancos que
iniciaram um discurso racista quando passavam pelo museu. “A motorista parou
imediatamente e mandou os dois homens saírem do carro, com um aviso para não
‘mancharem’ um museu que importa” (p.xi).
A história do engraxador num aeroporto que não quis aceitar dinheiro de Lonnie e que lhe disse para ficar com os oito dólares para o museu. “Não sei bem o que há num museu, mas pode ser o único lugar onde os meus netos aprenderão o que a vida fez comigo e o que eu fiz com a minha própria vida.” (p.45)
A história de um homem afro-americano mais velho que, numa entrevista para o Programa Griot, contou ao seu neto que o dia mais triste da sua vida foi quando a sua entrada num cinema em Washington DC foi negada por causa da cor da sua pele. “Os historiadores escreveram muito sobre a segregação”, comenta Lonnie Bunch, “mas poucas palavras captaram o impacto pessoal e a ressonância contemporânea do racismo como a sua entrevista.” (p.55)
A história do homem que guardou os seus documentos de liberdade numa carteira de lata feita à mão, de forma a protegê-los (“proteger a sua liberdade”) e a carteira de lata acabou no acervo do museu (p.97).
A história da pessoa que não chorou quando Trayvon Martin, Eric Garner ou Philando Castile foram mortos, mas não conseguiu conter as lágrimas perante o caixão de Emmett Till. “Aos pés daquele caixão, naquele espaço sagrado, encontrei forças para chorar. É um poder do qual nunca mais abdicarei.” (p.246)
Segundo o presidente Donald Trump, este museu,
e a Smithsonian em geral, "foram influenciados por uma ideologia
divisionista e centrada na raça". No seu decreto intitulado “Restaurar a verdade e a sanidade da história americana”, emitido a 27 de Março, o presidente dos EUA afirma que "os
americanos testemunharam um esforço concertado e generalizado para reescrever a
história da nossa nação, substituindo factos objectivos por uma narrativa
distorcida, impulsionada pela ideologia em vez da verdade". Instrui o
vice-presidente a garantir que futuras dotações para a Smithsonian Institution
“proíbam os gastos com exposições ou programas que degradem os valores
americanos partilhados, dividam os americanos com base na raça ou promovam
programas ou ideologias inconsistentes com a lei e a política federal”.
Esta tentativa de controlar a narrativa, bem como o trabalho desenvolvido pelos museus e monumentos, começou mais cedo. A ordem executiva emitida a 20 de Janeiro e intitulada “Acabar com os programas governamentais de DEI radicais e desperdiçadores e com as preferências” apelidou os programas de diversidade, inclusão e equidade de “ilegais e imorais” e ordenou o seu encerramento. Fiquei surpreendida na altura ao ver grandes museus a obedecer imediatamente. A National Gallery em Washington DC fechou o seu gabinete de pertença e inclusão, a Smithsonian fechou o seu gabinete de diversidade closed its diversity office, o Art Museum of the Americas cancelou duas exposições com artistas negros e LGBTQ+. Fiquei a pensar porque é que não foi feita nenhuma pergunta, se tinham mesmo de obedecer imediatamente e, também, se estariam à procura de outras palavras, além daquelas “proibidas” para continuarem com o seu trabalho. Talvez uma das acções mais chocantes tenha sido a do Stonewall Monument apagar as referências a pessoas trans do seu website. Este é um monumento que comemora uma revolta em 1969 à porta do Stonewall Inn, em Nova Iorque, liderada por mulheres trans negras, que deu início ao movimento contemporâneo pelos direitos dos homossexuais. Como dizem os manifestantes, é possível soletrar Stonewall (ou História, já agora) sem T?
Manifestantes no Stonewall Monument.
Imagem: France 24 ©Kena Betancur / AFP
As tentativas dos políticos de controlar a
narrativa não são novidade — e Lonnie Bunch já passou por isso antes. No seu
livro, conta-nos que, pouco depois da abertura do NMAAHC em 2016, alguns
membros do Congresso ameaçaram censurá-lo formalmente por causa do que
consideraram ser uma decisão política de omitir o conservador juiz associado
Clarence Thomas da exposição do museu. Na altura, questionou: “Se o Congresso
pode anular a investigação e a integridade curatorial e determinar quem ou o quê
deve estar num museu, é apenas um pequeno passo para regular o conteúdo e
decidir o que deve ser removido das paredes e salas” (p.155).
O ataque orquestrado a museus e bibliotecas
tomou uma forma muito concreta com a ordem executiva sobre “Continuar a redução da burocracia federal”, emitida a 14 de Março e instruindo o desmantelamento do Institute
of Museum and Library Services, a única agência a apoiar muitas pequenas
instituições locais. Num artigo na Newsweek, John Chrastka
(director executivo de EveryLibrary), Marilyn Jackson (presidente e CEO da
American Alliance of Museums) e Celina Stewart (directora executiva da League
of Women Voters of the United States) denunciam a “tentativa de controlar a
narrativa e moldar o pensamento público (...) a tentativa de controlar a nossa
história e, com ela, o futuro da democracia americana”. É exactamente isso que
está a acontecer e há muito que está a ser preparado, nos EUA e noutros países.
O ataque às humanidades e ao pensamento
crítico, o desenvolvimento de uma cultura de individualismo, a erosão do
sentido de comunidade, a falta de solidariedade, a criação de medo e raiva
contra “o outro”, levaram muitas sociedades, em diferentes países, a esse
ponto. Mais uma vez, as tácticas fascistas parecem muito atractivas, as pessoas
ricas e “poderosas” são vistas como a solução contra as falhas do sistema. A
tirania e o autoritarismo não são vistos como um grande problema; o medo, o
silêncio e a obediência criam o terreno para que floresçam.
Timothy Snyder publicou “On Tyranny: Twenty Lessons from the
Twentieth Century” em 2016 e o actor John Lithgow deu-lhes voz. Algumas destas lições ressoaram em mim e foram uma resposta às
minhas preocupações em relação a tudo o que está a acontecer à nossa volta
neste momento, por exemplo: não obedecer antecipadamente; defender “as nossas”
instituições; não desviar o olhar e não se habituar a símbolos de ódio; lembrar-se
da ética profissional; tomar posição; acreditar na verdade; praticar a política
corporal; aprender com colegas de outros países; ser um patriota e tão corajoso
quanto puder.
Ao contrário de outros museus, o Japanese American National Museum anunciou
recentemente que continuará a abraçar a diversidade, a equidade e a inclusão. “A nossa comunidade assenta na diversidade, a equidade é-nos
garantida pela Constituição e a inclusão é aquilo em que acreditamos”, afirmou
o museu em comunicado. Um doador anónimo contribuiu com o suficiente para
cobrir os custos de um dos seus programas. O museu também recebeu um fluxo de
donativos individuais ao longo de dois dias, depois de se saber que tinha
perdido o financiamento do National Endowment for the Humanities.
Lonnie Bunch dirigiu-se à equipa da Smithsonian depois do presidente dos EUA ter anunciado as suas intenções de
“restaurar a verdade e a sanidade da história americana”. Reafirmou o
compromisso inabalável da instituição com o estudo e a investigação e a missão
de levar a história, a ciência, a educação, a investigação e as artes a todos
os americanos, tendo em mente o público, contando as histórias multifacetadas
da extraordinária herança deste país.
Estas são as palavras certas, é isto que todos
devemos esperar das nossas instituições culturais. No entanto, não será
suficiente se as pessoas, todos nós - como indivíduos, como colegas e através
das nossas organizações da sociedade civil - não nos levantarmos, não
procurarmos formas de mostrar a nossa solidariedade, se sacrificarmos a verdade
em troca de conforto emocional e intelectual e de uma relativa segurança. Como
escreveu Timothy Snyder, precisamos de defender as nossas instituições, pois
elas "não se protegem a si próprias. Caem uma após outra, a não ser que
cada uma seja defendida desde o início".
Mais referências a Lonnie Bunch neste blog:
No comments:
Post a Comment