Monday 14 June 2010

Arte, política e boicotes

Às notícias sobre o ataque israelita contra os navios que pretendiam levar ajuda humanitária à faixa de Gaza, no passado dia 31 de Maio, seguiram-se sucessivas notícias sobre o cancelamento de vários concertos que iriam ser realizados em Israel por artistas internacionais (ler artigo no New York Times aqui). O grupo americano The Pixies, cujo primeiro concerto em Israel era muito esperado, pediu desculpa aos fãs, mas “eventos que nos são alheios conspiraram contra nós”. Por outro lado, Elvis Costello, que inicialmente pareceu que não ia voltar atrás com a sua decisão de actuar em Israel, justificou, através de um comunicado no seu website, a sua mudança de opinião e o cancelamento do seu concerto como “uma questão de instinto e consciência”.

Ao mesmo tempo, os jornais franceses davam a notícia do cancelamento da projecção do filme de um realizador israelita, uma comédia romântica, na rede de salas de cinema Utopia, uma decisão que mereceu a intervenção do Ministro da Cultura francês e que mais tarde foi revogada (ver artigo no Le Monde aqui).

Através destas leituras, descobri a Palestinian Campaign for the Academic and Cultural Boycott of Israel, que nasceu em 2004 por um grupo de académicos e intelectuais palestinianos que apelam ao boicote considerando que a grande maioria dos intelectuais e académicos israelitas tem contribuído directamente para a ocupação israelita ou, no mínimo, tem-se mostrado cúmplice através do seu silêncio. Por outro lado, li o editorial do Le Monde no dia 9 de Junho, intitulado Ne boycottons pas les artistes israéliens, que caracterizava este género de boicote como uma resposta perigosa e inaceitável, que contribuiria para fragilizar vozes e olhares israelitas que são entre os mais intransigentes no que diz respeito ao governo do seu país.

Em situações como esta, muitas vezes ouvimos dizer que não se deve misturar a arte com a política. Eu diria que o que não se deve fazer é colocar a arte ao serviço de interesses políticos, não se deve instrumentalizá-la. Mas a arte não é criada no vácuo. E por isso, respeito profundamente os artistas que não se mostram alheios ao que se passa à sua volta, que tomam posição. Ao ler as declarações dos Pixies ou de Elvis Costello, senti que faltava algo na sua argumentação, que na verdade era mais instinto do que consciência. No entanto, o cancelamento dos seus concertos, entre vários outros, chama, sem dúvida, a atenção para uma situação trágica, injusta, revoltante. Suponho que os sentimentos do público israelita face a estes desenvolvimentos variem. Aliás, o artigo no New York Times fala de pessoas que vêem neles um claro sinal que o seu país se torne cada vez mais isolado, assim como fala de pessoas que se sentem incompreendidas pelo resto do mundo. De qualquer modo, estes artistas famosos levaram o seu público e não só, mesmo que de forma aparentemente pouco consciente, ao debate e à reflexão. Nesse mesmo artigo, o agente que promoveu a ida dos Pixies a Israel falou ao New York Times de “terrorismo cultural”. Enfim, muitos israelitas têm uma forma muito particular de definir a palavra ‘terrorismo’ (mas não são os únicos).

No entanto, a decisão de um artista estrangeiro de não actuar em Israel e o boicote aos artistas ou intelectuais israelitas não são os dois lados da mesma moeda. A jornalista grega Katerina Voussoura passou uma semana em Israel em finais de Maio e acompanhou a cena cultural contemporânea do país, dando-nos a conhecer vários artistas num artigo publicado no jornal Kathimerini e intitulado Israeli artists challenge identity issues
. Nesse artigo apresenta-nos o trabalho daqueles que vivem a trabalham no terreno, pouco promovidos pelos media, pouco conhecidos, por isso, e pouco ouvidos, e que questionam constantemente a identidade israelita, desenvolvendo os seus processos de paz, numa escala infinitamente mais pequena, mas não por isso menos significativa.

Assim, ficámos a conhecer o Acco Theater Center
, situado na cidade de Acco no norte de Israel. Considerando que o teatro tem um papel fundamental em estimular uma catarse individual e colectiva, há mais de 20 anos que este grupo promove encontros entre artistas judeus e árabes, dá voz às histórias dos residentes locais, desafia a apatia, o medo e o isolamento e convida a comunidade local a abrir os seus corações e as suas mentes e a considerar alternativas. A co-fundadora e directora artística do grupo, Smadar Yaaron, apresentou recentemente a sua última criação, Wishuponastar, onde, através do casamento com a Estrela de David, apresenta e a seguir desconstrói uma série de estereótipos da identidade contemporânea israelo-judáica.



Outros casos apresentados no artigo do jornal grego são o do Arab-Hebrew Theater of Jaffa
, situado na cidade omónima, constituído por dois grupos que produzem peças em conjunto ou separadamente, com artistas Judeus e Árabes, em ambas as línguas; e ainda o Ruth Kanner Theater Group, em Tel Aviv, que através de textos hebráicos – trabalhos literários, produtos de investigação das tradições locais e material documentário -, procura re-examinar as narrativas oficiais e questionar a relatividade da verdade e a sua dependência do olhar do observador.



Idan Raichel é outro artista citado no artigo. O seu projecto musical Idan Raichel Project foi apresentado em 2002 e promove artistas de várias zonas produzindo canções em várias línguas. Este projecto levou pela primeira vez a música das minorias às rádios israelitas. “É importante que as pessoas conheçam as culturas da Síria e do Líbano, que saibam que do outro lado da fronteira existe um vizinho, não um inimigo”, diz Idan Raichel.

Nenhum destes artistas, e outros até mais conhecidos (por exemplo, o projecto East-western Divan Orchestra), tem ilusões quanto ao impacto do seu trabalho. Nem o teatro, nem a música, nem a literatura, nem o cinema, irão trazer a paz no Médio Oriente. De qualquer forma, não é com este objectivo que trabalham. Mas trabalham, existem, pensam, questionam, desafiam, tomam posição. Numa luta constante contra a ignorância. Boicotá-los, devido à sua nacionalidade, seria discriminá-los, eles que trabalham contra a discriminação. Seria censurá-los, eles que trabalham pela liberdade da expressão. Seria fragilizá-los, como se dizia no editorial do Le Monde, eles que são muitas vezes vistos como ‘traidores’.

Duas sugestões de leitura:
- O perfume da nossa terra: vozes da Palestina e de Israel, de Kenize Mourad (ed. ASA). Um trabalho jornalístico que dá voz às pessoas que se encontram nos dois lados do conflito.
- The attack, de Yasmina Khadra. Um romance sobre um médico israelita-árabe que descobre que a sua mulher, que tinha sido morta num ataque, tinha sido ela própria a bombista suicida.

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