Monday 13 September 2010

Made in Peru

O Sendero Luminoso, organização terrorista peruana, iniciou a sua actividade na década de 1980. Na altura eu era adolescente. Lembro-me de algumas notícias esporádicas nos telejornais, nada especial. Mais tarde, durante a presidência de Alberto Fujimori, o grupo voltou a ser notícia e eu já estava mais atenta. No entanto, acho que até agora não tinha verdadeira noção da extensão do conflito e dos seus resultados. Este verão, cruzei-me em várias ocasiões com a história do Sendero Luminoso e de Peru, um país que tenta hoje lidar com o seu sangrento passado recente. Artistas, escritores, académicos dão o seu contributo.

Começo pelo fim. No mês passado li sobre um jovem escritor peruano,
Santiago Roncagliolo. A sua família tinha-se refugiado no México por razões políticas, mas os pais decidiram voltar a Peru em 1979. Diz que a sua primeira memória do país são "os cães de Deng Xiaoping". No dia 25 de Dezembro de 1980 os habitantes da capital Lima acordaram e encontraram o centro da cidade ‘enfeitado’ com cadáveres de cães pendurados nos postos de electricidade. Traziam tabelas que diziam “Deng Siao Ping, hijo de perra” (um cão enforcado simboliza na China um tirano condenado à morte pelo povo). Foi assim que o Sendero Luminoso anunciou o início da guerrilha. Santiago Roncagliolo tinha 5 anos.
Santiago Roncagliolo
No seu livro
A quarta espada: a história de Abimael Guzmán e do Sendero Luminoso (ed:Objetiva, Brasil), Roncagliolo tenta desvendar a personalidade de Abimael Guzmán, o ‘Presidente Gonzalo’, líder do grupo. Sem nunca pegar numa arma, Guzmán conduziu as operações da guerrilha entre o seu grupo e o Estado de Peru, que resultou em quase 70.000 mortes. Na maioria civis. Na maioria camponeses. O Sendero Luminoso foi considerado responsável por mais de metade dessas mortes violentas e cruéis. As restantes foram atribuídas às forças da Estado, autorizadas por um governo democraticamente eleito a usar os mesmos métodos do grupo terrorista. Através de uma investigação que durou três anos, e que incluiu entrevistas com ex-companheiros e alguns familiares de Guzmán, Roncagliolo desenhou o perfil deste terrorista, produzindo um trabalho que alguns comparam ao jornalismo literário de Truman Capote. Li o livro num dia. E no dia seguinte tinha nas mãos Abril Vermelho (ed. Teorema), mais uma obra de Roncagliolo, um thriller policial que coloca o meticuloso Promotor de Justica Félix Chacaltana Saltivana em confronto com o Sendero Luminoso e com a democracia de fachada do estado peruano na época do Presidente Alberto Fujimori. Mas também com ele próprio. Mais um livro que foi impossível largar até o acabar.

Aproximadamente um mês antes de meu ‘encontro’ com Roncagliolo, estava a ler na revista do
Instituto Hemisférico de Performance e Política, e-misférica (Nº 6.2 – Cultura + Direitos + Instituições), o artigo de Gisela Cánepa-Koch “The Public Sphere and Cultural Rights: Culture as Action”. A autora, professora na Pontifícia Universidad Católica del Perú, começava o seu artigo com a polémica à volta da criação do Museu da Memória, uma recomendação da Comissão para a Verdade e Reconciliação peruana, que Alemanha - outro país que quis confrontar o desconforto do seu passado recente - se disponibilizou para financiar. O governo peruano recusou a oferta. Nas palavras do Ministro da Defesa, Antero Flores Aráoz, um país como Peru, onde faltam tantas escolas e hospitais e onde tanta gente passa fome, “no necesita museos”. O escritor peruano Mario Vargas Llosa respondeu com um artigo intitulado “El Perú no necesita museos”. Um texto frontal, equilibrado e comovente, onde se lê: “(…) Eles [os museus] também curam, não os corpos, mas as mentes, da escuridão que é a ignorância, o preconceito, a superstição e todos os defeitos que impedem a comunicação entre os seres humanos, que os tornam amargos e que os levam a matarem-se uns aos outros. Os museus substituem uma visão de vida e das coisas que é pequena, provinciana, mesquinha, unilateral, limitada com uma visão ampla, generosa e plural. Afinam a sensibilidade, estimulam a imaginação, refinam os sentimentos e despertam nas pessoas um espírito crítico e auto-crítico. (...) Os Peruanos precisamos de um Museu da Memória para combater essas atitudes intolerantes, cegas e obtusas que levaram à violência política. Para que o que aconteceu nos anos 80 e 90 não volte a acontecer.”

No seu artigo, Gisela Cánepa-Koch afirma que o debate em si à volta do Museu da Memória é importante e necessário para a construção de uma cultura de cidadania saudável e democrática. Na sua visão, o museu deveria ser um espaço inclusivo, para a expressão das sensibilidades, exigências e formas de acção cultural de vários actores. Ignorar a existência de múltiplas memórias leva-nos também a ignorar as diversas formas de recordar e as formas específicas que cada cultura tem de lidar com a dor. Diz ainda que a linguagem dos museus não é o único mecanismo que possa ser utilizado neste processo e que o próprio museu deveria promover outros meios que lidam com a memória e que possam promover o diálogo, como a literatura, o cinema, as artes visuais, a música, a etnografia. “A reconciliação não tem a ver com o perdão ou a culpa, mas com a possibilidade da vítima se tornar num actor no processo de reconstrução social.”
Uma cena do filme A Teta Assustada
Um dos filmes mencionados no artigo de Cánepa-Koch é A Teta Assustada, de
Claudia Llosa (sobrinha de Mario Vargas Llosa), que foi apresentado em Portugal em Junho passado (ver o trailer). O filme fala de uma doença chamada 'teta assustada', em que a mãe, violada pelos terroristas, transmite ao filho através do leite materno o seu medo e sofrimento. Fausta, a personagem principal, vive permanentemente assustada, desconfiada, e opta pela solidão. Quando a mãe morre, e não tendo dinheiro para tratar do funeral, é obrigada a sair da sua zona de conforto e é ali que finalmente aprende a desafiar o medo. O filme é marcado pela beleza da sonoridade da língua quechua, a língua falada pelos camponeses dos Andes, as principais vítimas da guerrilha peruana.

“Um país que se esquece da sua história está condenado a repeti-la”, lê-se no site da Comissão para a Verdade e Reconciliação. Os peruanos não optam pelo conforto do esquecimento. Os artistas e os intelectuais do país reclamam o seu lugar neste processo penoso. E para citar novamente Mario Vargas Llosa: “Progresso não é apenas muitos colégios, hospitais e auto-estradas. É também, e sobretudo, essa sabedoria que nos torna capazes de distinguirmos o feio do belo, o inteligente do estúpido, o bom do mau e o tolerável do intolerável, a que chamamos cultura”.

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