Monday 21 March 2011

É possível medir o impacto?

Pororoca, da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues,
apresentado na Culturgest em Abril 2010. (Foto: Sammi Landween)
Quando falamos no valor intrínseco da cultura em geral e das artes em particular, consideramos que não há forma de o avaliar. Defendemo-lo por intuição, por experiência própria, recorrendo a provas empíricas, mas não nos parece possível investigá-lo cientificamente. Este tema interessa-me em particular e assim fiquei muito curiosa quando encontrei uma referência a um estudo que se intitulava Assessing the intrinsic impacts of a live performance. O que encontrei na Internet foi este sumário dos resultados do estudo, que comecei a ler com enorme interesse.

O estudo foi desenvolvido pela WolfBrown, uma empresa americana que se dedica ao estudo das artes e da cultura. Em particular, Alan Brown tem desenvolvido vários trabalhos relacionados com o impacto intrínseco e o envolvimento da comunidade. Juntamente com a co-autora do estudo, Jennifer Novak, Brown explica que através desta investigação procuraram definir e medir a forma como um espectáculo ao vivo transforma os espectadores. Mais concretamente, basearam-se em três hipóteses: 1) Que os impactos intrínsecos pelo facto de assistir a um espectáculo ao vivo podem ser medidos; 2) que diferentes tipos de espectáculos criam diferentes grupos de impactos intrínsecos; e 3) que a abertura de uma pessoa para viver a experiência de um espectáculo ao vivo influencia a natureza e extensão dos impactos. Entre Janeiro e Maio de 2006 entrevistaram espectadores de um total de 19 espectáculos de vários géneros de música, dança e teatro. Foram aplicados dois questionários, um antes do espectáculo, para avaliar a preparação mental e emocional para o mesmo, e outro depois, preenchido em casa e enviado pelos inquiridos, que pretendia investigar uma série de reacções àquele espectáculo específico.

Através do primeiro questionário, os investigadores pretendiam avaliar: o índice de contexto (o nível de experiência e conhecimentos prévios dos inquiridos relativamente ao espectáculo e aos intérpretes); o índice de relevância (o nível de conforto da pessoa, ou seja, se se encontrava numa situação familiar, do ponto de vista social e cultural); o índice de antecipação (o estado psicológico dos inquiridos imediatamente antes do espectáculo, as suas expectativas). Através do segundo questionário, Brown e Novak procuraram, então, identificar e medir os impactos dos espectáculos nos inquiridos. Os índices definidos foram: cativação, estímulo intelectual, ressonância emocional, valor espiritual, crescimento estético e ligação social.

Neva, pela companhia chilena Teatro en el Blanco, apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian em Junho 2010, no âmbito do programa Próximo Futuro.
(Foto: Taina Azeredo)
Tudo isto soava fascinante. Mas não conseguia imaginar o tipo de perguntas que teriam sido feitas a fim de avaliar e chegar a conclusões relativamente a estes factores. Por isso, escrevi a Alan Brown, que teve a amabilidade de me enviar rapidamente o relatório completo, incluindo os questionários e os quadros com os resultados.

A primeira parte do estudo procurava identificar a abertura / preparação das pessoas para viverem a experiência do espectáculo. As perguntas neste questionário, que procuram explorar os três índices acima referidos, parecem bastante óbvias e directas: conhecimento prévio do trabalho dos intérpretes e familiaridade com o respectivo género de arte; frequência com que assiste a espectáculos deste e doutros géneros; fontes de informação sobre o espectáculo; pormenores sobre a organização da ida ao espectáculo; constituição do grupo; principais razões para assistir; estado de espírito, entusiasmo e expectativa de vir a gostar da experiência. Muito sucintamente, os resultados desta primeira parte indicam que as pessoas com maior índice de contexto podem beneficiar mais dos espectáculos; a maioria das pessoas compra bilhetes para espectáculos que se inserem na sua zona cultural de conforto; a expectativa de uma experiência agradável é o melhor indicador de que a mesma irá trazer satisfação.

No que diz respeito à segunda parte, o tipo de perguntas para cada índice de impacto era:

Cativação: até que ponto os inquiridos se sentiram absorvidos, perderam a noção do tempo e se esqueceram de tudo o resto?

Estímulo intelectual: sentiram-se provocados, desafiados, intelectualmente envolvidos, reflectiram sobre as suas próprias opiniões e ideias, há coisas que gostariam de perguntar aos artistas, falaram sobre o significado do espectáculo com as pessoas que os acompanhavam?

Ressonância emocional: a reacção emocional foi forte, quais as emoções mais intensas, sentiram-se ligados aos intérpretes, o espectáculo foi de alguma forma ‘terapêutico’?

Valor espiritual: sentiram-se inspirados, com mais poder, passaram para um estado de consciência diferente?

Crescimento estético: sentiram-se expostos a um estilo ou tipo de arte com o qual não estavam familiarizados, mudaram de ideias relativamente ao mesmo, sentem-se mais preparados para o apreciar, acompanharão mais no futuro?

Ligação social: sentiram-se ligados ao resto dos espectadores, tiveram um sentimento de pertença, o espectáculo serviu para celebrar o seu património cultural, foram expostos a uma nova cultura, adquiriram uma perspectiva nova sobre as relações humanas e os assuntos sócias?

Muito sucintamente, mais uma vez, e destacando apenas alguns resultados que chamaram a minha atenção, o estudo revelou que o índice cativação está relacionado com altos níveis de satisfação e influencia outros impactos; a maioria dos inquiridos teria perguntas a colocar aos artistas e conversou sobre o significado do espectáculo com os seus acompanhantes; existe uma forte ligação entre o índice emocional e a memória da experiência; sentir-se inspirado não é necessariamente um impacto procurado pelos espectadores; a maioria dos inquiridos sente-se melhor preparada para apreciar o género de arte a que foi exposta; a ligação social acontece quando as pessoas são expostas a novas culturas e também quando assistem a espectáculos ligados ao seu património cultural.

No sumário dos resultados acima referido podem-se encontrar muitos mais pormenores sobre o estudo e também sobre os níveis de satisfação das pessoas. Este inquérito não pretende avaliar a qualidade dos espectáculos, apesar de alguns dos impactos poderem estar relacionados a ela. Tenho dúvidas quanto ao entendimento que os inquiridos poderão ter tido de algumas perguntas no segundo questionário, ainda por cima sendo ele um questionário auto-administrado, ou seja, as pessoas preencheram-no sozinhas em casa sem poderem colocar questões em caso de dúvida. No entanto, posso dizer que a leitura do relatório satisfez a minha curiosidade. Parece mesmo que sim, que é possível avaliar e chegar a conclusões relativamente ao impacto de um espectáculo ao vivo. A minha curiosidade agora estende-se aos impactos que persistem, meses ou anos depois; àquilo que fica; e ao como e porque é que fica. Registos na nossa memória e na nossa alma que não se dissipam.

Sonia, pelo New Riga Theatre, apresentado no Teatro Maria Matos em Junho 2009, no âmbito do programa Dias das histórias (im)prováveis. (Foto: Ginta Maldera)

2 comments:

RSA said...

Penso que também seria interessante tentar compreender de que modo o estudo se poderia aplicar à experiência museológica, em exposição temporárias de arte contemporânea (com e sem visita mediada).
Sinto que a análise dos impactos dos eventos performativos nos seus públicos está muito mais desenvolvida - e divulgada - do que a avaliação qualitativa dos públicos das galerias, será?

Vou ver se convenço algum estagiário a mudar o tema da tese...

Maria Vlachou said...

Os estudos de públicos nos museus têm já uma longa tradição. E há muitas-muitas referências sobre o impacto de exposições e da experiência de visitar um museu em geral. Penso até que esta área está muito mais avançada nos museus do que nas artes performativas. Se estiver interessado/a, envie-me um email (o link está na homepage do blog) e eu mando algumas referências.