Monday, 19 March 2012

Líderes precisam-se

It's too easy to blame the organization and the system and the bottom line for decisions that a person would never be willing to take responsibility for. Whenever you can, work with people who take it personally.” Seth Godin no seu blog

Wangari Maathai (Foto retirada do site The Green Belt Movement)

Foi com muita curiosidade que comecei a ler no outro dia o artigo Good bosses are the same today as they were in 1992, porque penso muitas vezes naquilo que faz de uma pessoa um bom líder (independentemente da escala). O autor do artigo, Robert Sutton, afirma que muitas coisas podem estar a mudar, podem ter que ser reinventadas, mas não a definição de um grande líder (ou chefe ou gestor ou director). E passo a citar: “(…) Nós, humanos, ansiamos por seguir outros que são competentes o suficiente para trazer recursos, ensinar-nos novas competências e gerar atenção e prestígio perante pessoas influentes (…) Queremos também líderes justos, que nos protejam, que nos façam sentir acarinhados e respeitados, que injectem humanidade (…) Conforme mostra a investigação de mais de cinquenta anos, tratar as pessoas com respeito, encorajá-las a participar e a fazer sugestões, ouvi-las é tão importante como sempre foi. O mesmo é verdade quanto ao estabelecer um caminho claro, tomar decisões e assumir a responsabilidade (…)”.

Encontro nestas palavras muitas das coisas sobre as quais tenho reflectido ao ler as biografias de pessoas que considero que foram bons líderes, ao pensar em pessoas que foram meus superiores, ao avaliar-me a mim própria como chefe de equipas ou ao analisar, ultimamente, os casos de organizações que têm enfrentado grandes desafios e as atitudes e opções tomadas pelas pessoas que as dirigem. Um líder reúne qualidades que lhe permitem traçar e seguir um caminho, mas ao mesmo tempo inspirar, juntar e guiar muitas outras pessoas, que são essenciais para a concretização da sua visão e o cumprimento da missão. E algo em que penso muitas vezes é que, ao longo deste percurso – muitas vezes difícil, complicado, desanimador, esgotante e até solitário - uma das coisas que distinguem um líder é o facto de saber dizer “não”, quando seria muito mais fácil e cómodo dizer “sim”.

Isto leva-me ao caso do Penumbra Theatre, que recentemente uma amiga trouxe à minha atenção. Aberto desde 1976 na cidade de St. Paul (Minnesota, EUA), assume como missão promover o respeito e a tolerância através do diálogo sobre questões de raça e racismo. O teatro é conhecido por assumir riscos, esticar os limites e introduzir novas vozes no teatro americano. No entanto, o Penumbra Theatre passou por um momento particularmente difícil no início dos anos 2000. Um subsídio estatal considerável, que lhes deu segurança para poderem investir na construção de um novo teatro, acabou por ser vetado, deixando-os seriamente endividados. As consequências foram as esperadas: funcionários desmotivados e frustrados, membros do board que deixaram de confiar na missão do teatro, doadores (ou seja, mecenas, patrocinadores e membros) que começaram a questionar a gestão financeira da estrutura e o encerramento a tornar-se quase realidade. Foi criada uma comissão de reestruturação e, com o objectivo de começar por reconstruir a confiança dos doadores, contratou uma gestora experiente e persistente, Chris Widdess, que, por sua vez, destacou três áreas-chave: reassumir o compromisso relativamente à missão do teatro, àquilo que o torna único e essencial; construir relações a longo prazo, interna e externamente; e criar um plano a longo prazo. Vale mesmo a pena ler aqui tudo sobre este estudo de caso, no entanto, aquilo que, de modo particular, chamou a minha atenção foi a afirmação de Widdess que dizer "não" foi fundamental no processo de reestruturação. Acredito que assim tenha sido, e que tenha acontecido porque tanto Widdess como Lou Bellamy, fundador e director artístico do Penumbra Theater, têm uma ideia clara sobre a missão do teatro e o futuro que querem traçar para ele. Foi essa missão, essa visão, que quiseram partilhar tanto com os doadores como com os espectadores. E fizeram o que foi necessário para a defender, incluindo dizer “não”. Quatro anos depois, em 2007, o Penumbra Theatre tinha recuperado.

Foi também no 'saber-dizer-não' que pensei quando vi o programa do Câmara Clara sobre o “Como funcionam os dinheiros para a cultura”, com António Gomes de Pinho e Pedro Gadanho. O programa preparou uma reportagem sobre o modelo de financiamento americano na qual o jornalista responsável afirmava que todos os anos a Metropolitan Opera apresenta as mesmas obras populares, porque é isso que os mecenas querem (terá sido esta uma afirmação baseada em informações dadas por fontes seguras?). No mesmo programa, foi feita referência ao apoio público como garantia essencial para a autonomia na programação. Pedro Gadanho – curador no MOMA – foi rápido em esclarecer que não sente nenhuma pressão no exercício das suas funções por parte dos mecenas e que actua com perfeita autonomia. No entanto, eu diria que esta questão não está propriamente relacionada com o dilema “apoio público ou apoio privado?”. Tanto pode haver governantes como mecenas que se possam sentir no direito de ditar escolhas em troca do seu apoio. E há. A partir daí, tudo depende do interlocutor deles: do seu sentido de missão e responsabilidade; da sua determinação em defendê-las e em agir em conformidade com as mesmas; da sua isenção; da sua capacidade de dizer “não”. Tudo depende do facto de haver do outro lado um líder ou não.

Visão, sentido de missão, perseverança, rigor, sentido de responsabilidade; uma atitude que inspira e motiva outros, tornando-os aliados, companheiros; uma vida dedicada a uma causa; fazer a diferença. Quando o que vemos à nossa volta são sobretudo aquelas pessoas que só sabem dizer "sim" -  aquelas que estão mais que dispostas a passar por cima de questões como a missão e a responsabilidade, que facilmente culpam o sistema e o status quo para justificarem o seu único desejo, que é manterem os seus lugares e os seus pequenos ou grandes poderes - penso novamente numa senhora cuja autobiografia li em Agosto passado. Wangari Maathai foi fundadora do The Green Belt Movement no Quénia. Lutou pelo ambiente e lutou pela democracia no seu país. Sabia dizer “não”. E sabia também dizer “Darei o meu melhor”. Morreu em Setembro de 2011.



Ainda neste blog
Construindo a confiança

Monday, 5 March 2012

La crise oblige? (iii) Desafios na gestão

Foto © ORF (tirada de http://www.kleinezeitung.at/)
Que grande lição de gestão foi a carta aberta do director musical do Liceu de Barcelona, Michael Boder, em resposta ao anúncio feito pela administração daquele teatro que, devido a dificuldades financeiras, o mesmo ia encerrar por dois períodos de um mês, entre Março e Julho (ler notícia aqui). E não foi apenas uma lição de gestão. Boder demonstrou ainda um grande sentido de missão e de responsabilidade, qualidades essenciais para quem dirige uma instituição e decide o seu rumo.

“Porque é que existimos?”, perguntava o director musical ao gestor geral do Liceu, facultando-lhe imediatamente as respostas: existimos para tocar, tocar mais e não menos; porque, em momentos como este, a música traz uma mensagem muito importante; porque a música mexe connosco; porque em tempos de crise uma instituição cultural pode e deve transmitir uma mensagem social; porque estamos ao serviço da coesão social; porque a cultura traz conforto e dá ideias (ler a carta aberta aqui).

Mas Boder levantava ainda outras questões na sua carta aberta, relativas à necessidade de reavaliar a dimensão dos serviços administrativos, o acordo colectivo e o número de horas de trabalho da orquestra e do coro, que considera insuficiente. Não hesitou em colocar em cima da mesa os custos fixos da instituição em prol da continuidade da programação. Porque sabe, tal como a administração do Liceu devia saber, que sem programação a instituição desaparece do 'mapa', ou seja, sai da cabeça e dos corações das pessoas; perde a sua credibilidade e o prestígio que levou anos a construir; está condenada ao marasmo interno e à desmotivação; e prejudica irremediavelmente a sua imagem, ao transmitir à sociedade, em especial numa altura de crise e de grandes sacrifícios, que a prioridade são os salários e regalias dos funcionários, mesmo que estes tenham sido ‘condenados’ à inércia, e não a oferta cultural, que é a razão principal porque existem (a administração revogou, entretanto, a sua decisão de encerrar o teatro – ler notícia aqui).

Nos últimos dois anos, a situação financeira de muitas orquestras tem sido notícia. Um dos casos mais mediáticos foi o da Orquestra de Filadélfia, uma orquestra de grande renome a nível mundial, que declarou falência há aproximadamente um ano. No entanto, gostaria de me concentrar aqui em particular no caso da Orquestra Sinfónica de Detroit. Detroit é uma cidade que se tornou próspera graças à indústria automóvel, indústria esta que apoiou, entre outras coisas, muitas entidades culturais, incluindo a orquestra. Nos últimos anos, uma série de factores económicos e sociais mudaram radicalmente o ambiente em que a orquestra opera: o declínio da indústria automóvel, o colapso da bolsa, a diminuição da população (quase 50% numa década) e ainda, o envelhecimento do público da orquestra, a diminuição na venda de bilhetes, a dívida contraída para a extensão do auditório. A administração avançou com um anúncio de cortes, incluindo um corte de 23% no salário dos músicos (aceite ao fim de uma greve de meses, que silenciou a orquestra durante a maior parte de uma temporada). No entanto, os cortes não conseguem ser só por si garantia de sustentabilidade. As mudanças socio-demográficas são um desafio muito maior para esta orquestra (e para as instituições culturais em geral) e a sua sustentabilidade depende muito da forma como vai reagir e adaptar-se. Actuando agora numa cidade em 80% afro-americana (na orquestra tocam apenas 4 músicos negros), onde o rendimento médio das famílias tem diminuído drasticamente, em cujas escolas não tem havido educação musical há muitos anos, torna-se urgente procurar envolver públicos novos, diversificados, representativos da população que vive agora em Detroit e em cidades limítrofes. Uma das iniciativas da orquestra é tocar em centros comunitários, igrejas e sinagogas, pontos de encontro com os seus novos públicos-alvo (ver toda a notícia aqui).

Os problemas que as instituições culturais enfrentam hoje em vários pontos do mundo não são apenas financeiros. São de natureza variada e estão interligados. Dizem respeito à gestão, à programação, ao serviço educativo, à comunicação. O mundo em que estamos a actuar é diferente, está em constante mudança e desenvolvimento.

Procurando, desta vez, abordar algumas questões que dizem respeito à gestão, voltaria a citar Michael Kaiser, que diz que, em primeiro lugar, temos um problema de receita (e não de custos, apesar de se começar sempre por aí). E a palavra ‘receita’ refere-se concretamente a: o financiamento estatal ou municipal; o dinheiro proveniente de mecenato e patrocínio (empresas, fundações, contributos – grandes e pequenos - de indivíduos); a receita de alugueres e outros serviços; a receita de bilheteira (quando se aplica). Em Portugal e noutros países, após décadas de dependência (quase absoluta) do muito ou pouco que o Estado estava disposto ou capaz de dar, é urgente começarmos a diversificar as fontes de receita. E apesar da opção óbvia serem as empresas e as fundações, não podemos iludir-nos. Esta não é uma relação que dura para sempre. Essas entidades investem dinheiro porque querem ver o seu nome associado a um determinado projecto; porque isso faz sentido no âmbito do seu plano estratégico. No entanto, os planos estratégicos mudam, são orientados por objectivos concretos e prioridades, que não permanecem inalteráveis. Assim, a terceira fonte de receita torna-se decisiva para um futuro sustentável: as pessoas, os indivíduos, que connosco se relacionam e que nos querem apoiar através de doações, comprando bilhetes ou assinaturas, tornando-se membros (ou pequenos mecenas, tendo a Casa Conveniente e a Cornucópia dado os primeiros passos em Portugal no sentido de criar este género de relação com os seus públicos). Esta relação, se for valorizada e acarinhada, pode, sim, durar para sempre. Até depois da morte… Uma das histórias mais comoventes que ouvi recentemente é a de um senhor que deixou todo o dinheiro que tinha a uma orquestra - tendo descontado apenas o necessário para o seu funeral -, porque durante anos não podia sair de casa devido a problemas de saúde e um dos seus grandes (e poucos) prazeres na vida era ouvir na rádio as transmissões ao vivo da orquestra (por razões legais, devido à vontade expressa do doador, não se pode apresentar dados concretos sobre esta doação).

No entanto, temos problemas de custos também. Quando somos obrigados a fazê-lo (por exemplo, devido a uma crise), somos sempre capazes de identificar aquelas situações onde os nossos recursos financeiros não são geridos da forma mais eficiente e procuramos optimizá-los. Isto passa também por uma gestão eficiente dos recursos humanos. Em geral, não estamos preparados para, ou dispostos a, considerar o desperdício que ocorre não só quando as equipas são inflacionadas, mas, sobretudo, quando os recursos humanos existentes não são devidamente aproveitados. Michael Boder não hesitou em admitir que o número de horas de trabalho da orquestra e do coro era insuficiente. No caso de muitas orquestras a nível mundial (ver links no fim deste post), os músicos e restantes funcionários envolveram-se no processo de ‘reposicionamento’, não consideraram os seus ordenados e regalias ‘sagrados’, não os colocaram à frente da necessidade de continuar a actuar, para não perderem o seu lugar na vida dos seus públicos. Ao mesmo tempo, penso que os funcionários estarão mais dispostos a entrar neste género de negociação e a aceitar sacrifícios se sentirem que existe uma vontade honesta e genuína, uma determinação por parte das administrações a encontrar soluções que permitirão às organizações não só sobreviver por apenas uns tempos, mas criar condições para um futuro saudável e sustentável para todos.

Tempos como estes, casos como estes, exigem ainda mais que a gestão das instituições culturais seja feita por pessoas, gestores, devidamente preparados (do ponto de vista académico e/ou de experiência e formação profissional), profissionais que possam conduzir o barco com competência, conhecimento, rigor e com a devida sensibilidade pelas especificidades deste sector. Porque é possível ter instituições culturais financeiramente saudáveis, elas existem (ler artigo de Michael Kaiser aqui). Talvez quando conseguirmos ultrapassar o discurso da ‘mercantilização da cultura’ (no qual normalmente um gestor cultural é equiparado ao gestor de um supermercado e o seu trabalho especializado é visto como uma série de entraves ao acesso à cultura), possamos ter mais abertura para procurar perceber como e porque é que outros conseguem.

Dizemos que os tempos não são fáceis. Alguma vez o foram? Os tempos agora são ‘simplesmente’ mais difíceis. Deixarmos o nosso lugar de conforto, ultrapassarmos o discurso estéril dos manifestos que só reclamam mas nada propõem, olharmos para a realidade à nossa volta e fazer-lhe frente (de forma responsável, realista, conhecedora, profissional) é uma necessidade permanente. Mais urgente, talvez, em alguns momentos do que noutros. Mas permanente. Como disse Russell Willis Taylor, CEO de National Arts Strategies, num discurso que vale a pena ouvir até ao fim, “Não há crises, apenas decisões difíceis”.



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