Monday, 11 June 2012

Então, qual é o plano?

À Mónica Calle e à Alexandra Gaspar, e também ao Luís Tinoco; que poderão não partilhar estes pontos de vista, mas que, mesmo assim, os inspiram.


Todos os encontros, seminários e conferências a que assisti nos últimos meses tinham as palavras ‘crise’ e ‘desafios’ algures incluídas: no tema, num painel, em algumas comunicações. Poderia ser um sinal positivo. Poderia significar que estamos conscientes da situação crítica com a qual estamos a ser confrontados e queremos lidar com ela, enfrentá-la. Queremos reagir e tomar o futuro nas nossas mãos.

Mas pode também significar… nada. Simplesmente nada. Em todas essas ocasiões foram raras as vezes em que ouvi ideias e propostas concretas. Ouvi críticas (normalmente a decisões do governo); ouvi exigências (normalmente dirigidas ao governo); ouvi as mesmas coisas que temos andado a dizer há anos (normalmente sobre as responsabilidades e obrigações do governo, sobre o quanto somos importantes, quão subfinanciados e negligenciados e subvalorizados pelo governo e pela sociedade, quando ambos deveriam saber melhor…).

O maior desafio não será, afinal, pôr um fim a tudo isto? Às repetições, à nossa miopia, à nossa autocomiseração, à nossa inércia? Porque estamos enganados se pensamos que estamos a agir quando exigimos apenas aos outros, quando nos concentramos apenas nas responsabilidades dos outros, quando procuramos apenas não deixar que as coisas piorem (isto é, que piorem ainda mais, porque, na verdade, nunca estiveram muito bem). Quais as nossas responsabilidades? Qual o nosso papel em tudo isto? Quais as nossas ideias, as nossas prioridades? Em suma, qual o nosso plano?

É nossa responsabilidade, faz parte do nosso papel, controlarmos e criticarmos o governo. Exigir que cumpra as suas obrigações perante os cidadãos (apesar de às vezes parecer que nos esquecemos deles e exigimos apenas por nós e pelas ‘nossas’ instituições). Mas também é fácil, se pretendemos fazer apenas isso. E não leva a lado nenhum. Os governos, os políticos, os ministros poderão não ter necessariamente um plano… Mas nós temos que ter. Não só deveríamos assumir isto como parte do nosso trabalho, como deveria ser esperado de nós.

Em primeiro lugar - de tudo o que vi e ouvi e li nos últimos tempos -, diria que uma das coisas mais preocupantes em que devemos pensar é que estamos ainda muito afastados da sociedade. Confortáveis e altivos e seguros de nós próprios no nosso papel de guardiões, temos ainda dificuldade em entender que as pessoas para as quais é suposto trabalharmos - estou-me a referir aos cidadãos, muitos dos quais, convém que não nos esqueçamos, votaram no partido  que formou o actual governo e que anunciou durante a campanha o fim do Ministério da Cultura -,  essas pessoas, portanto, procuram o diálogo e não sermões; desejam ser nossos parceiros e não receber ordens; querem sentir-se em casa e não em transgressão; querem entender e não lidar com um clube de elites. Ignorar tudo isto significa assinar a nossa sentença de irrelevância.

Um segundo ponto que queria referir é que existe uma necessidade urgente de considerar e começar a trabalhar em fontes alternativas de financiamento. Estarmos dependentes apenas de uma fonte não provou ser boa ideia. Insistirmos que essa fonte continue a fluir sem ao mesmo tempo procurarmos alternativas demonstra, no mínimo, alguma teimosia, pouco produtiva. Ultrapassar a nossa alergia em falar da geração de dinheiro é algo essencial neste processo. As instituições culturais não têm fins lucrativos, mas isto não significa que não devem ter lucro. É esse lucro que poderiam reinvestir na sua actividade e conseguir progredir, fazer mais.

O primeiro e o segundo ponto, intimamente relacionados (isto é, os alicerces da sustentabilidade financeira das instituições culturais têm a sua base também na relação com a sociedade), levam a um terceiro: a necessidade de estes processos serem conduzidos por profissionais adequadamente preparados. Confiaríamos alguma vez a nossa defesa em tribunal a um advogado não-profissional? A nossa saúde a um médico não-profissional? A construção da nossa casa a um engenheiro não-profissional? Com todo o respeito pelos amadores e entusiastas, que são absolutamente fundamentais na nossa área, como é que o sector cultural continua a não procurar os profissionais mais apropriados para cada função? Como é que vamos poder construir confiança e fé nas nossas transacções com outros sectores, essenciais para a nossa sustentabilidade, se não formos adequadamente preparados?

E um último ponto, indispensável: falar a verdade ao poder. O facto de muitos líderes (a maioria?) preferirem ser rodeados de ‘yes-men’ não é um fenómeno exclusivamente português. Há algumas semanas, por ocasião da destituição da Presidente do Arts Council England, Liz Forgan, pelo Secretário de Estado da Cultura, Jeremy Hunt, Dany Louise escrevia no seu blog: “O princípio básico é que se queremos uma boa – ou até excelente – governança, não nos rodeamos de ‘yes-men’ e ‘yes-women’, mas de profissionais capazes e inteligentes e de um ambiente que valoriza e activa estas capacidades. Encorajamo-los a dizer-nos quando estamos equivocados ou quando estamos a tomar uma decisão errada e esperamos que nos apresentem alternativas viáveis. Fazemo-lo porque este é um factor crítico para nos tornarmos em verdadeiramente bons líderes, líderes que tomam as melhores decisões.” (vale a pena ler o texto na íntegra aqui).

“Crise” em grego significa, em primeiro lugar, um ponto decisivo, um ponto crucial, um ponto de viragem. A crise apresenta-nos com desafios e também oportunidades de mudança. Este é o momento de avaliarmos a situação, definir objectivos, estabelecer prioridades. Muito frequentemente, a distância entre as declarações de intenções e o pôr estas intenções em prática é demasiado grande e raramente percorrida. Este sector precisa de identificar aqueles capazes de cobrir esta distância, de levar as coisas para a frente. Este sector precisa também de identificar aqueles que entendem o significado da palavra accountability*. Os bons líderes deverão procurar os melhores consultores. E aos melhores consultores deverá ser dado espaço para darem a sua opinião. Livremente, objectivamente, responsavelmente.


*Accountability significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir. Não se trata, portanto, apenas de prestar contas em termos quantitativos, mas de auto-avaliar a obra feita, de dar a conhecer o que se conseguiu e de justificar aquilo em que se falhou. (Fonte: Wikipedia)

Ainda neste blog
Ministério da Cultura: Conseguimos manter o debate vivo por uma segunda semana?

A John Hopkins International Fellows in Philanthropy Conference terá lugar nos dias 4 e 5 de Julho em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian. O tema da conferência é As artes e a crise económica – Uma oportunidade para o terceiro sector? O programa pode ser consultado aqui.

4 comments:

André Fonseca said...

A área cultural parece ter uma tendência a sempre colocar no governo as responsabilidades por todos os problemas da área. É como se o desenvolvimento de políticas culturais fosse uma tarefa exclusiva do poder público. Instituições, grupos e artistas parecem não perceber que também têm um papel a desempenhar neste processo. Sim, é necessário cobrar do governo a parte que lhe cabe. Mas é preciso mais auto-avaliação, olhar para o trabalho que estamos fazendo e que novos caminhos podemos seguir diante dos novos desafios que se colocam à frente.
E acho que você fala de uma questão importante quando menciona a autocomiseração da área cultural. Estamos sempre chorando, pedindo mais recursos e estrutura, dizendo que as pessoas não entendem o nosso trabalho, e o que é pior de tudo, muitas vezes os profissionais da cultura acham que fazem um trabalho superior a todos os outros, simplesmente por trabalharem com cultura. Assim como muitos artistas parecem acreditar que se estão produzindo arte, já é suficiente. E de preferência que essa arte seja financiada integralmente pelo governo. Você usa a palavra "miopia". Não sei se é mesmo um caso de miopia ou se simplemente é mais fácil colocar a responsabilidade no outro. Afinal, pensar dá trabalho.

Maria Vlachou said...

André, parece que, afinal, não é um oceano que nos separa... Sim, pensar dá trabalho. Fazer dá ainda mais trabalho. Diria que até estamos a trabalhar, mas talvez sem um rumo pensado e concreto, sem convicção, sem determinação e com medo da crítica. Trabalhamos para o momento, reagimos e não agimos. E tudo isto não demonstra pensamento estratégico.

Nuno Beja said...

O meu muito obrigado Maria Vlachou pelo pensamento arejado e lúcido sobre a cultura em Portugal. Sigo o seu blog desde o início e tanto, tanto que tenho aprendido consigo!
Sobre esta sua reflexão, nem de propósito e ainda antes de ler a mesma, li no jornal on-line "Sul Informação" uma noticia sobre uma carta em jeito de ultimato, que várias companhias de teatro nacionais escreveram ao responsável pela área cultural do governo. Está lá tudo o que refere: os queixumes, a culpa atribuida, etc, etc. Mas o que mais me interessa, porque vivo em Faro e acompanho o trabalho desta companhia, é o que refere o responsável pela ACTA - Companhia de Teatro do Algarve - sobre o decréscimo brutal de espetadores e consequente quebra de receita de bilheteira. Transcrevo apenas uma parte: «Ninguém faz nada e o Estado não se tem mostrado interessado em resolver a situação», acusou Luís Vicente. Além da tomada de posição conjunta, os seis signatários do movimento têm já audiências agendadas «com o diretor geral das artes e com o secretário de Estado da Cultura», para falar sobre esta matéria, revelou o diretor da ACTA.
A situação destas companhias é muito delicada, o que as levou a alertar para o facto de estarem à beira da extinção. Aos cortes generalizados nos apoios há que juntar uma redução no número de espetadores, que, no caso da ACTA, diminuiu para quase metade, no último ano.
«Houve um rombo enormíssimo ao nível da bilheteira. Antes tínhamos uma média de espetadores por espetáculo na ordem dos três dígitos. Este ano, a média está em 61,5 espetadores por espetáculo», revelou."
Veio-me logo à mente tudo o que tenho aprendido consigo: e os responsáveis já pararam para pensar porque será que perderam espetadores? Quem é que frequenta as peças levadas à cena? Não será que que o trabalho que fazem é para vocês mesmos, fechados numa redoma dramática, quase autista? Que programação é que estão a fazer? Com que objetivos? Para quem?
Enfim, é sempre mais fácil queixarmo-nos da falta de dinheiro e a culpa é sempre do governo...
Desculpe o alongado do comentário, mas tinha que dizer isto e agradecer-lhe por ser quem é.
Nuno Beja
Faro

Maria Vlachou said...

Caro Nuno, obrigada pelo seu comentário e pelas suas palavras. Diria que o exemplo que nos dá é característico da nossa forma de reagir às dificuldades que enfrentamos. É por isso que é urgente tomarmos consciência das nossas responsabilidades e adaptarmo-nos às novas realidades (relacionadas ou não com a crise). Obrigada mais uma vez.