Monday, 17 February 2014

Em modo 'multi' antes do debate


Pensamento nº 1: No dia 5 de Maio de 2013 o Arab American National Museum foi o primeiro entre vários museus americanos a desejar aos seus amigos ortodoxos uma Páscoa Feliz no Facebook. Lembro-me de sorrir e de pensar que há 18 anos que vivo em Portugal e nenhum museu alguma vez reconheceu o facto de eu estar neste país também como ortodoxa, celebrando dias especiais juntamente com dezenas de outros gregos e provavelmente milhares de russos, ucranianos, romenos ou sérvios; residentes permanentes em Portugal cuja visita os museus teriam muito gosto em receber, estou certa, mas cuja cultura não está reflectida nas suas políticas de coleccionar, programar ou comunicar. Que género de relação poderia/deveria ser desenvolvida entre as partes?

Pensamento nº 2: No Canadá, os imigrantes que adquirem a nacionalidade canadiana fazem o seu juramento como “novos cidadãos canadianos” numa cerimónia que se realiza em museus: o Canadian Museum of Immigration em Halifax, por exemplo, ou o Canadian Museum of History (antes conhecido como Canadian Museum of Civilization - ver no fim deste post) no Quebec. Não sei de todo qual o conteúdo do juramento, mas quando ouvi falar pela primeira vez nisto, senti-me comovida com a escolha simbólica do lugar, considerando (idealmente) os museus como espaços que possam ser representativos da nossa identidade (aliás, das nossas várias identidades) e da dos outros, permitindo-nos aprendermos uns sobre os outros, estarmos uns com os outros. Imaginei as histórias destas pessoas, as histórias dos novos cidadãos canadianos, a tornarem-se parte da história do Canadá. Poderia ser esta uma forma de criar uma relação?

Imagem retirada do website do Canadian Museum of Immigration
Pensamento nº 3: Há dois anos, numa conferência intitulada “Programar para a Diversidade” que teve lugar no Ecomuseu do Seixal, moderei um painel que incluía um refugiado iraniano. Lembro-me de ele dizer que se sentia em casa quando visitava o Museu Gulbenkian, onde podia ver objectos que vinham da sua terra. Gostei da ideia de ele se sentir em casa, mas fiquei a pensar se a única forma de despertar o interesse das pessoas e de as envolver é mostrando-lhes o que já conhecem. Poderá existir uma relação se uma pessoa procura apenas o que lhe é familiar? Será falta de curiosidade relativamente à sua “casa nova”? Ou, talvez, o facto de não se sentir a casa nova como “casa”? E o que faz com que não a sinta como tal?

Estes pensamentos soltos e muitas mais questões surgem no momento em que estou a preparar-me para moderar um debate sobre a relação das instituições culturais portuguesas com as comunidades de imigrantes e aquelas de refugiados que vivem actualmente no país. Vivendo numa sociedade que se torna cada vez mais diversa, pergunto-me muitas vezes se existe, realmente, uma relação, se existe algum interesse, para começar, em qualquer das partes – instituições culturais e comunidades de imigrantes e refugiados - para se encontrarem, para fazerem parte da vida umas dos outras e, se sim, qual a melhor forma de desenvolver e manter esta relação. Digo isto porque me parece que a maioria das iniciativas (pelo menos entre aquelas que conheço) são projectos pontuais, confinados num determinado período de tempo que chega, mais cedo ou mais tarde, ao fim. Projectos do género “festival”, onde uns vêm para actuar e os outros para ver o exótico e nunca mais se encontram até… à próxima vez. Se houver uma próxima vez. Valerá a pena? Tem algum impacto? Deveríamos procurar algo diferente, algo que possa durar mais tempo? Quem está interessado? E de quem deveria ser a iniciativa?


Museu d' Història de Catalunya, Barlelona. A Catalynua do século XXI, parte da exposição permanente (Foto: Maria Vlachou)
Olhando para o estrangeiro, vemos grandes instituições que operam dentro de sociedades multiculturais (o Victoria & Albert Museum em Londres ou o Kennedy Center em Washington, para dar dois exemplos) a dedicar grandes exposições e programas especiais a comunidades específicas e às suas culturas. O objectivo é apresentar a cultura e as artes de um determinado povo aos que possam estar interessados em conhecer, ajudar a aprender algo sobre ele e, idealmente, a entendê-lo melhor. O objectivo é também fazer determinadas comunidades sentirem-se incluídas, e é verdade que este género de exposições e festivais atrai um grande número de representantes da cultura celebrada. No entanto, permanece a questão: e depois? O que acontece às pessoas que vieram para aprender e divertir-se? O que fica com elas? Há alguma mudança na sua percepção relativamente à cultura com a qual acabaram de se encontrar? E os representantes dessas comunidades regressam mais tarde para algo diferente? Dei o exemplo das grandes instituições no estrangeiro, mas o mesmo se pode aplicar a instituições mais pequenas no nosso país. Estaremos a desenvolver projectos e políticas que possam dar respostas à pergunta “E depois”?

Serão os imigrantes e refugiados um grupo especial, diferente de outros? Talvez não. Podem estar interessados no que as instituições culturais têm para oferecer ou não; podem ter o hábito de visitar / assistir ou não; podem sentir-se representados ou não; podem sentir que aquilo é para eles ou não; podem sentir-se bem-vindos ou não; podem frequentar ou não; podem ter o dinheiro ou não. Tal como todos os outros. No entanto, ao contrário de certos outros grupos (sub-representados), algumas instituições culturais – ou projectos – sentem a necessidade de, de vez em quando, ‘lidar’ com imigrantes e refugiados. Talvez por interesse genuíno, talvez por ser politicamente correcto. A minha preocupação é que, na maioria das vezes, parece ser algo pontual, um “evento especial” ou um “projecto especial”, algo que acaba por destacar as pessoas envolvidas também como um “grupo especial”, em vez de promover o seu reconhecimento como parte integrante da nossa sociedade, com quem se devia desenvolver uma relação de natureza mais permanente. Aquilo que uma vez foi “especial” pode não o ser hoje, as coisas mudam. Estaremos a acompanhar a mudança?

Para mim, idealmente, as instituições culturais são espaços onde um recém-chegado (como eu o fui há 18 anos) possa saber o que existiu antes da sua chegada, o que está a ser produzido neste momento e de que forma ele/ela poderá também deixar a sua marca. São espaços de constante negociação e actualização. Para que não estejamos perante o “especial”, o trabalho deveria ser contínuo para que a inclusão aconteça com naturalidade.

Pode ser assim? É possível? Estará já a acontecer? O que é preciso? Estas são questões para as quais espero poder encontrar algumas respostas ou possíveis direcções no debate de quinta-feira. Vemo-nos por lá?



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Monday, 3 February 2014

As regras do amor

Kent Nagano, Director Musical da Montreal Symphony Orchestra (Foto: Körber Foundation)
Quando o Vice-Presidente da Körber Foundation, Klaus Wehmeier, abriu o 4th Symposium on the Art of Music Education na semana passada em Hamburgo, citou uma pessoa que numa edição anterior deste simpósio tinha dito “Quero partilhar o que amo”. Ao ouvi-lo, pensei que é isto precisamente que traz muitas pessoas, profissionais, de várias áreas culturais e artísticas a este género de encontros: o seu amor por algo e o seu desejo de o partilhar.

Estava ainda a pensar nesta partilha do que amamos, quando Kent Nagano, director musical da Orquestra Sinfónica de Montreal, subiu ao púlpito. Falou-nos do estado em que encontrou a orquestra quando assumiu a sua função: uma dívida de 12 milhões de dólares; um público com uma media de idades 65+; uma ocupação de 35%.  Nagano disse que prometeu à cidade apresentar obras excepcionais com a melhor qualidade que os músicos possam atingir. “Assim”, disse, “temos agora concertos esgotados, a idade media do nosso público são os 35 anos e a sala de concertos tem o aspecto das ruas da cidade de Montreal.”

O maestro não me convenceu; no sentido que eu ouvi muito mais nas suas palavras do que aquilo que ele estava preparado para reconhecer. Não acho que a Orquestra Sinfónica de Montreal tem concertos esgotados por causa do seu excepcional repertório e da sua alta qualidade – ou, pelo menos, sobretudo por causa disso. Estas são as características de muitas outras orquestras que lutam para sobreviver. Penso que o público de Montreal talvez tenha ouvido a ‘promessa’ do dirigente de uma orquestra que estava preparado para assumir um compromisso, para se envolver com eles; uma teoria também apoiada pelo facto de Kent Nagano ter partilhado connosco o seu prazer em ver a sala de concertos ter o aspecto das ruas da cidade, o que revela uma visão maior e a séria vontade de assumir um compromisso. Este facto pode ter tido um papel tão importante na recuperação da orquestra como o excepcional repertório e a qualidade da interpretação. Nagano desejou partilhar o seu amor com a cidade e tem trabalhado para isso.

Foto: Körber Foundation
A questão de “Como partilhamos o nosso amor” estava constantemente na minha cabeça nos dois dias que se seguiram. Quando ouvia, por exemplo, o discurso inspirador da músico e compositora Kathryn Tickell que dizia que ensina crianças e jovens a tocar a gaita de foles de Northumbria não porque quer torná-los virtuosos, mas porque quer dar-lhes a conhecer a sua herança, sendo a música uma afirmação de quem eles são. O discurso da Kathryn marcou realmente os participantes. Apesar de estar a lidar com a tradição, foi precisamente capaz de nos mostrar como a tradição não é algo parado no tempo. “Precisamos de ir mais a fundo, usar o conhecimento e ir para a frente sem medo”, disse. E com “ir para a frente” quis dizer experimentar, re-interpretar, enriquecer, entrar em diálogo com outras formas artísticas, não ’pela inovação’, mas pela necessidade que uma pessoa tem de se expressar e de… partilhar o que ama.


E continuei a pensar sobre o que é que amamos e como partilhamos o nosso amor quando vi a genuína expressão de perplexidade na cara de um dos participantes quando me ouviu dizer que há qualidade também noutros géneros musicais e não apenas na música clássica; quando ouvi algumas pessoas dizer que a educação para a música é da responsabilidade da escola e outras a afirmar que os músicos devem ser obrigados a envolver-se em actividades educativas porque sabem fazê-lo melhor; quando alguns participantes tentaram lembrar que estávamos a afastar-nos do que realmente importa – a música e o nosso público principal -, enquanto outros defendiam maior acesso e disponibilidade para ouvir as pessoas e adaptar.


Foto: Körber Foundation
A maioria destas questões foi, de alguma forma, resumida no último painel de discussão, que envolveu Nick Herrmann (Touch Press), Martinh Hoffmann (general manager da Berlin Philharmonic) e Karsten Witt (general manager da karsten witt music management). Foi muito bonito ouvir Karsten Witt falar do seu amor pela música clássica, da experiência tão especial que é assistir a um concerto, da concentração, dos detalhes, dos sentimentos. “Ouvir música através dos media é uma coisa diferente; deveríamos concentrar-nos no ‘objecto real’”, disse ele.

Será assim? Deveríamos estar preocupados apenas com o ‘objecto real’? E quando o mais próximo que uma pessoa possa chegar do objecto real é um CD ou um DVD ou o You Tube? Não deveríamos estar também preocupados em manter essas portas abertas e usá-las para disponibilizar conteúdos? Terão todas as pessoas que ouvir música clássica com o mesmo grau de concentração para poderem ter uma experiência que tenha significado (para elas, não para os outros…)?

Lembrei-me de um artigo que tinha lido uns dias antes no Guardian sobre o acesso digital a espectáculos. A jornalista, Lyn Gardner, falava do maestro Thomas Beecham, que viveu no início do século XX e que acreditava que a rádio manteria as pessoas longe das salas de concertos, pelo que “censurava as ‘autoridades sem fios’ por estarem a fazer ‘um trabalho diabólico’”. Nos anos 50 o ‘diabo’ era provavelmente a televisão; nos anos 90 os websites; e no início do século XXI o You Tube, as apps, o livestreaming de concertos e espectáculos.

Por isso, apesar de partilhar o amor de Karsten Witt pelo ‘objecto real’, estou também preocupada com o que ‘real’ possa significar para outras pessoas, com o que tem significado para elas, com as formas de proporcionar o acesso e com os seus meios financeiros. Porque sei que a tecnologia fornece-nos vários pontos de entrada, diferentes formas de participação e fruição, e não mantém as pessoas longe do ‘objecto real’. Pelo contrário, quando têm a oportunidade, as pessoas querem saborear o ‘objecto real’.

Mas há aqui mais uma questão: mesmo quando as pessoas vêm usufruir o ‘objecto real’, isto não significa que o vão fazer da forma como uma outra pessoa quer que o façam. Fá-lo-ão à sua maneira. O amor pode ter muitas, várias, regras, mas tem, definitivamente, uma regra principal: não pode ser imposto, pode?


Um agradecimento especial à Körber Foundation, pelo amável convite e pela hospitalidade.

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