Monday, 3 February 2014

As regras do amor

Kent Nagano, Director Musical da Montreal Symphony Orchestra (Foto: Körber Foundation)
Quando o Vice-Presidente da Körber Foundation, Klaus Wehmeier, abriu o 4th Symposium on the Art of Music Education na semana passada em Hamburgo, citou uma pessoa que numa edição anterior deste simpósio tinha dito “Quero partilhar o que amo”. Ao ouvi-lo, pensei que é isto precisamente que traz muitas pessoas, profissionais, de várias áreas culturais e artísticas a este género de encontros: o seu amor por algo e o seu desejo de o partilhar.

Estava ainda a pensar nesta partilha do que amamos, quando Kent Nagano, director musical da Orquestra Sinfónica de Montreal, subiu ao púlpito. Falou-nos do estado em que encontrou a orquestra quando assumiu a sua função: uma dívida de 12 milhões de dólares; um público com uma media de idades 65+; uma ocupação de 35%.  Nagano disse que prometeu à cidade apresentar obras excepcionais com a melhor qualidade que os músicos possam atingir. “Assim”, disse, “temos agora concertos esgotados, a idade media do nosso público são os 35 anos e a sala de concertos tem o aspecto das ruas da cidade de Montreal.”

O maestro não me convenceu; no sentido que eu ouvi muito mais nas suas palavras do que aquilo que ele estava preparado para reconhecer. Não acho que a Orquestra Sinfónica de Montreal tem concertos esgotados por causa do seu excepcional repertório e da sua alta qualidade – ou, pelo menos, sobretudo por causa disso. Estas são as características de muitas outras orquestras que lutam para sobreviver. Penso que o público de Montreal talvez tenha ouvido a ‘promessa’ do dirigente de uma orquestra que estava preparado para assumir um compromisso, para se envolver com eles; uma teoria também apoiada pelo facto de Kent Nagano ter partilhado connosco o seu prazer em ver a sala de concertos ter o aspecto das ruas da cidade, o que revela uma visão maior e a séria vontade de assumir um compromisso. Este facto pode ter tido um papel tão importante na recuperação da orquestra como o excepcional repertório e a qualidade da interpretação. Nagano desejou partilhar o seu amor com a cidade e tem trabalhado para isso.

Foto: Körber Foundation
A questão de “Como partilhamos o nosso amor” estava constantemente na minha cabeça nos dois dias que se seguiram. Quando ouvia, por exemplo, o discurso inspirador da músico e compositora Kathryn Tickell que dizia que ensina crianças e jovens a tocar a gaita de foles de Northumbria não porque quer torná-los virtuosos, mas porque quer dar-lhes a conhecer a sua herança, sendo a música uma afirmação de quem eles são. O discurso da Kathryn marcou realmente os participantes. Apesar de estar a lidar com a tradição, foi precisamente capaz de nos mostrar como a tradição não é algo parado no tempo. “Precisamos de ir mais a fundo, usar o conhecimento e ir para a frente sem medo”, disse. E com “ir para a frente” quis dizer experimentar, re-interpretar, enriquecer, entrar em diálogo com outras formas artísticas, não ’pela inovação’, mas pela necessidade que uma pessoa tem de se expressar e de… partilhar o que ama.


E continuei a pensar sobre o que é que amamos e como partilhamos o nosso amor quando vi a genuína expressão de perplexidade na cara de um dos participantes quando me ouviu dizer que há qualidade também noutros géneros musicais e não apenas na música clássica; quando ouvi algumas pessoas dizer que a educação para a música é da responsabilidade da escola e outras a afirmar que os músicos devem ser obrigados a envolver-se em actividades educativas porque sabem fazê-lo melhor; quando alguns participantes tentaram lembrar que estávamos a afastar-nos do que realmente importa – a música e o nosso público principal -, enquanto outros defendiam maior acesso e disponibilidade para ouvir as pessoas e adaptar.


Foto: Körber Foundation
A maioria destas questões foi, de alguma forma, resumida no último painel de discussão, que envolveu Nick Herrmann (Touch Press), Martinh Hoffmann (general manager da Berlin Philharmonic) e Karsten Witt (general manager da karsten witt music management). Foi muito bonito ouvir Karsten Witt falar do seu amor pela música clássica, da experiência tão especial que é assistir a um concerto, da concentração, dos detalhes, dos sentimentos. “Ouvir música através dos media é uma coisa diferente; deveríamos concentrar-nos no ‘objecto real’”, disse ele.

Será assim? Deveríamos estar preocupados apenas com o ‘objecto real’? E quando o mais próximo que uma pessoa possa chegar do objecto real é um CD ou um DVD ou o You Tube? Não deveríamos estar também preocupados em manter essas portas abertas e usá-las para disponibilizar conteúdos? Terão todas as pessoas que ouvir música clássica com o mesmo grau de concentração para poderem ter uma experiência que tenha significado (para elas, não para os outros…)?

Lembrei-me de um artigo que tinha lido uns dias antes no Guardian sobre o acesso digital a espectáculos. A jornalista, Lyn Gardner, falava do maestro Thomas Beecham, que viveu no início do século XX e que acreditava que a rádio manteria as pessoas longe das salas de concertos, pelo que “censurava as ‘autoridades sem fios’ por estarem a fazer ‘um trabalho diabólico’”. Nos anos 50 o ‘diabo’ era provavelmente a televisão; nos anos 90 os websites; e no início do século XXI o You Tube, as apps, o livestreaming de concertos e espectáculos.

Por isso, apesar de partilhar o amor de Karsten Witt pelo ‘objecto real’, estou também preocupada com o que ‘real’ possa significar para outras pessoas, com o que tem significado para elas, com as formas de proporcionar o acesso e com os seus meios financeiros. Porque sei que a tecnologia fornece-nos vários pontos de entrada, diferentes formas de participação e fruição, e não mantém as pessoas longe do ‘objecto real’. Pelo contrário, quando têm a oportunidade, as pessoas querem saborear o ‘objecto real’.

Mas há aqui mais uma questão: mesmo quando as pessoas vêm usufruir o ‘objecto real’, isto não significa que o vão fazer da forma como uma outra pessoa quer que o façam. Fá-lo-ão à sua maneira. O amor pode ter muitas, várias, regras, mas tem, definitivamente, uma regra principal: não pode ser imposto, pode?


Um agradecimento especial à Körber Foundation, pelo amável convite e pela hospitalidade.

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