Monday 6 October 2014

Preservar para quê?

Imperial War Museum

No meu segundo ano em Londres, em 1994, da janela da minha cozinha via a cúpula do Imperial War Museum (IWM). Era uma vista bonita de um museu bonito. Para a surpresa de muitas pessoas, este é o meu museu favorito em Londres.

No caminho para o primeiro Congresso de Museologia Militar, estava a pensar que nunca considerei o Imperial War Museum, que ia fazer uma apresentação nesse dia, um museu militar. Para mim, o IWM é um museu de pessoas (não deveriam todos sê-lo?). Um museu de militares e de civis, de homens e de mulheres, de adultos e de crianças, de seres humanos e de animais (estou a lembrar-me de algumas das exposições que lá vi). É muito mais do que datas, batalhas, tácticas, tipos de armas e tratados. É um museu que conta as histórias de pessoas que foram afectadas pela guerra.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

A apresentação do IWM estava incluída num painel que iria debater os Museus Militares e o Centenário da Grande Guerra. A primeira oradora foi Maria Fernanda Rollo, professora universitária e coordenadora do projecto Portugal 1914. Trata-se de um portal na Internet com conteúdos muito ricos, recolhidos com a colaboração de várias instituições e profissionais de vários meios, assim como com a colaboração do público em geral. O objectivo é a promoção de uma cidadania activa e empenhada na promoção da defesa, preservação e salvaguarda de um património colectivo, assim como sensibilizar a população em geral para a importância da memória e da sua preservação. “Este é um museu virtual, que conta histórias, onde aprendemos com as afectividades. É um museu vivo”, disse Maria Fernanda Rollo.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

Sorri quando ouvi esta afirmação. Porque, implicitamente, Maria Fernanda Rollo estava a revelar a sua percepção dos museus: espaços mortos, espaços onde não se contam histórias, espaços onde a afectividade não tem lugar. Esta é uma percepção amplamente partilhada por várias pessoas na nossa sociedade a vários níveis (lembram-se porque é que a Paula Rego quis que o museu que alberga as suas obras em Cascais se chamasse “Casa das Histórias” e não “museu”?). Mas sorri também ao ouvir a minha amiga Gina Koutsika fazer a sua animada e estimulante apresentação sobre as iniciativas do IWM para a comemoração do centenário. A Gina mostrou-nos como um museu pode (e deve) ser vivo, cheio de histórias e de sentimentos, próximo das comunidades que pretende servir. Este não é um museu no mundo virtual, é real, existe.


Postal promocional das novas galerias da Grande Guerra no Imperial War Museum

Quando o debate começou, lembrei-me de uma outra visita, há quase 10 anos, ao In Flanders Fields Museum (Ypres, Bélgica). Mais um museu notável, na cidade que esteve no caminho do exército alemão e que ficou completamente destruída durante a guerra. Um museu cheio de histórias humanas, onde o visitante pode assumir a identidade de um dos habitantes da cidade e seguir a sua história pessoal durante a guerra. O que mais me marcou naquela visita, e que não voltei a encontrar em nenhum outro museu, foi a forma simples como se mostrou que um objecto pode ser muitas histórias. Através da exposição de um monte de lenços brancos, o museu falava-nos dos múltiplos usos daquele objecto: podia ser um sinal de rendição; ou uma forma de alguém se proteger dos gases letais tapando o seu nariz; ou algo para tapar os olhos de quem enfrentava o esquadrão da morte.


In Flanders Fields Museum

Lembrei-me ainda do Musée de la Grande Guerre du Pays de Meaux (França) e do seu maravilhoso projecto “Léon Vivien”. Os bons museus encontram formas imaginativas de usar as suas colecções, dando-lhes vida e criando ligações com as pessoas. Léon Vivien é um personagem fictício, um soldado, cuja história é contada numa página especial no Facebook através de vários objectos, seguida e comentada por milhares de pessoas. Os bons museus sabem sê-lo tanto no mundo real como no mundo virtual.



A questão da memória surgiu no debate quando o Tenente-General Mário de Oliveira Cardoso, outro dos oradores neste painel, citou o filósofo, ensaísta e escritor George Santayana: “Quem não se lembra do passado está condenado a repeti-lo”. Lembrar o passado, preservar o conhecimento histórico. Sim, é este o objectivo de várias instituições, incluindo o dos museus. Mas porquê? Com que propósito? Estará a ser alcançado? Estarão essas histórias a ser preservadas e lembradas simplesmente para se criar um repositório ou porque podem criar ligações ao presente, a vidas humanas actuais, não apenas as nossas mas as dos outros também? Poderão as histórias preservadas e lembradas ajudar-me a criar uma ligação ao Outro, fazer a sua história minha?

Na Europa, não faltam museus militares, de história, da primeira e segunda guerra, do holocausto. Todos têm como objectivo preservar o passado histórico e mostrar a importância da memória. “Nunca mais” é o lema que encontramos em muitos deles. Estarão estes museus conscientes que recentemente, no seguimento das atrocidades cometidas em Gaza, voltou a ser ouvido em algumas cidades europeias o grito “Morte aos Judeus”? Terão reagido? Terão aproveitado a oportunidade para dar bom uso às suas colecções e mostrar para que serve preservar o passado histórico e ter memória? Não é precisamente num momento como este que um museu deveria intervir publicamente e contribuir para esclarecer e formar a opinião pública? Caso, contrário, preservar para quê?


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