Foto: Adriano Vizoni/Folhapress (retirada da Folha de S. Paulo) |
“Presença
Negra” é uma acção promovida em São Paulo por artistas, escritores e activistas
negros que visitam em grupo inaugurações de exposições em galerias de arte.
Chegam um a um, tornam-se numerosos e atraem os olhares desconfortáveis dos
restantes visitantes. Porque a presença de negros (como artistas e como
público) não é habitual nesses contextos. Nem todos concordam com estas acções
(como se pode ver nos comentários na Folha de S. Paulo),
mas a mim, este acto de reivindicação por parte de cidadãos chamou-me a
atenção.
E veio
lembrar-me um outro. Numa conferência no ano passado ouvi Sylvain Denoncin, da
empresa francesa EO Guidage, contar a história do museu Louvre – Lens. O museu
foi projectado pelo atelier de arquitectura japonês SANAA. Os habitantes da
cidade ameaçaram levar o projecto a tribunal se o novo museu não fosse
acessível. Aí, foi chamada a EO Guidage, para intervir e remediar algo que
deveria ter sido pensado desde o primeiro momento. Numa troca de opiniões com
um colega no Facebook, partilhámos a mesma inquietação: quantas gerações até os
cidadãos deste país se tornarem mais exigentes, mais reivindicativos em relação
ao acesso à oferta cultural em instituições culturais públicas?
Estes são
dois casos que levantam novamente à questão do que se entende por “acesso à
cultura”; do que os profissionais do sector querem dizer quando afirmam que
“estamos de portas abertas” ou que “estamos aqui para todos”; da diferença que
existe entre os conceitos da “democratização da cultura” e da “cultura
democrática”.
John
Holden tem sido mais que uma vez citado neste blog, mais concretamente a sua
identificação dos guardiões da cultura no ensaio “Culture and Class” – os
“cultural snobs” e os neo-mandarins (ver referências no final do texto).
Primeiro
ponto: sofremos ainda muito da mentalidade do “cultural snob”, que considera
que a oferta cultural – certa oferta cultural – é apenas para os entendidos. Em
relação aos outros – os não entendidos, os não cultos – a opção (cada vez menos
assumida publicamente, mas presente na forma como se programa e se comunica) é
a da exclusão, não havendo nada a fazer, uma vez que nem o meio familiar destas
pessoas nem a escola tiveram a capacidade de as educar, de as preparar para tal
experiência.
Segundo
ponto: os neo-mandarins vieram alterar o contexto criado e defendido pelos
“cultural snobs”, vieram promover o acesso, a democratização da cultura. Apesar
de se tratar de uma postura diferente, mais aberta e inclusiva, na prática
revela também um outro tipo de guardião. Os neo-mandarins defendem o acesso,
mas querem ser eles a definir a que é que vale a pena ter acesso e como.
Ultimamente, em mais que uma reunião, quando levantada a questão da “inclusão”,
quando levantada a necessidade dos espaços culturais serem mais representativos
das sociedades em que estão inseridos e mais acolhedores para as diversas pessoas que as compõem, a resposta variou
pouco: passa normalmente pelas acções do serviço educativo, visitas guiadas ou
idas a espectáculos aos quais as pessoas assistem fazendo parte de grupos
específicos (pessoas com deficiência, séniores, imigrantes, crianças e adultos
institucionalizados, pessoas vindas de meios “desfavorecidos”, etc.).
Terceiro
ponto: o aparecimento dos neo-cosmopolitas no sector cultural, dispostos a
abdicar do seu papel de guardião, de abrir verdadeiramente as portas para uma
maior colaboração e envolvimento das pessoas “de fora”, no sentido de tornar a
oferta cultural mais representativa e relevante, vem alterar também esta mesma relação
com as pessoas e a forma como vêem e se apropriam das instituições culturais. O
objectivo dos neo-cosmopolitas é caminhar para uma cultura mais democrática.
Para haver
mudança, é necessário o contributo de vários agentes. Irei concentrar-me em
dois deles: as associações que representam os grupos de pessoas anteriormente
referidos; e os profissionais do sector cultural.
Sem
dúvida, é preciso haver cidadãos mais participativos, conhecedores dos seus
direitos, mais reivindicativos, que queiram ter uma palavra sobre as
instituições culturais e o acesso à oferta cultural. O papel das associações
que representam certos grupos de cidadãos é aqui fundamental, por se tratar de
organizações formadas com uma voz, às vezes, mais forte e respeitada. Estas
associações devem promover e defender os direitos dos seus associados, devem
intervir sempre que necessário, devem ponderar muito bem que soluções propõem e
que soluções aceitam. Há poucos meses, um actor que ia representar num teatro
municipal reagiu negativamente à presença dos intérpretes de língua gestual à
frente do palco. O teatro procurou alternativas e sondou a Federação das
Associações de Surdos em relação à hipótese de transmissão ao vivo da peça numa
outra sala, a partir da qual os espectadores surdos poderiam seguir o
espectáculo. A Federação considerou a solução aceitável. Não o era. Nenhuma
solução que discrimine os cidadãos e o seu direito de acesso à cultura é
aceitável e as associações devem ser as primeiras a defendê-lo.
No
entanto, é preciso haver também um movimento por dentro, no próprio sector. Um
movimento que permita contrariar as atitudes “snob”; um movimento que permita
aos neo-mandarins evoluírem e tornarem-se neo-cosmopolitas. Acredito que não
teremos cidadãos mais reivindicativos enquanto tivermos profissionais da
cultura “snob”, conformados, preparados apenas para repetir receitas do
passado, sem as questionar, sem pensar no passo seguinte, na promoção da
inclusão a médio e longo prazo.
Os
cidadãos precisam de sentir e de ver na prática que existe uma outra
mentalidade da parte dos profissionais do sector, uma mentalidade que procura
fomentar a relação com as pessoas, diversas pessoas e não apenas os entendidos,
e criar espaço para que esta relação exista e cresça, seja real e duradoura.
Seremos mais inclusivos quando os cidadãos, na sua diversidade, sentirem que a
programação das instituições culturais públicas é relevante para eles; quando
se sentirem representados e se a representação pressupor um maior envolvimento;
quando a comunicação for desenvolvida com a preocupação de chegar mesmo a elas,
de entrar em diálogo numa língua partilhada por todos; quando a nossa acção
deixar de promover o acesso à oferta cultural através da manutenção de grupos
segregados, mas dando passos todos os dias para que as pessoas possam
co-existir no mesmo espaço, usufruir da mesma oferta. Se os profissionais da
cultura não conseguirem convencer as pessoas das suas intenções honestas em
fomentar esta relação e em trabalhar para uma cultura democrática, a oferta
(não a cultura) continuará irrelevante, e consequentemente inexistente, para
elas.
Mais leituras:
Entrevista com Martha Lavey, directora artística do Steppenwolf Theater
Entrevista com Eva Bornstein, directora do Lehman Center
Mais neste
blog:
Ensaios de John Holden: