Exposição Retornar - Traços de Memória, Lisboa |
Há umas semanas, li o texto de Lily Hyde Living Memory II, que questiona a construção de narrativas a partir de
acontecimentos históricos recentes. Neste caso, o conflito armado no leste da
Ucrânia e, especificamente, na cidade de Slavyansk. Um pouco mais de um ano
antes, Hyde tinha falado com a directora do Museu de Slavyansk, Lilya Zander,
que já estava a coleccionar Troféus de uma guerra incompreensível. Naquela altura, a directora do museu tinha dito que "O nosso
trabalho é contar a história da nossa região", acrescentando que "O
museu não está a tentar mostrar que está 'a favor' e 'contra'. Estamos a tentar
mostrar os factos.”
Que "factos" seriam esses? Quando Hyde visitou a
exposição sem título no Museu de Slavyansk, o que encontrou foi o seguinte:
"O museu deu a volta ao problema da narrativa não proporcionando
praticamente narrativa nenhuma, e ao problema das tabelas, fornecendo tabelas
consistentemente inconsistentes. Esta é uma exposição sobre uma guerra que
nunca menciona a palavra "guerra"; uma exposição sobre uma 'Operação
Anti-Terrorista" que chama mais frequentemente o objecto da operação
'combatentes' ou 'separatistas' do que ‘terroristas’, uma exposição sobre uma
ocupação e libertação que apresenta as armas mais mortíferas do lado dos ‘libertadores’
e que chama aos mortos simplesmente ‘vítimas de conflito armado’.”
Isto nunca pode ser fácil. Muito menos quando se tenta
abordar acontecimentos muito recentes. Ainda menos quando não se reconhece a nossa
falta de neutralidade em expor e interpretar esses eventos. E, novamente, há a
questão do que é 'recente'...
Serão 40 anos ‘recente’? Serão distantes o suficiente? É
nisso que estava a pensar quando fui visitar a exposição Retornar - Traços de Memória em Lisboa, que teve como objectivo assinalar os 40 anos do momento que ficou
conhecido por retorno de nacionais à antiga metrópole na sequência dos
processos de descolonização das colónias portuguesas em África. O que é que eu
já sabia sobre isso? A 'versão oficial', suponho; que afirmava que os portugueses
não foram colonizadores cruéis e racistas, como outros europeus, mas pessoas
tranquilas, que deixaram s seu país em busca de uma vida melhor, preparados
para trabalhar ao lado dos autóctones negros. Anos depois de chegar a Portugal,
ouvi a história dos retornados, cidadãos portugueses, alguns dos quais nunca
tinham conhecido a metrópole, que fugiram do conflito e se encontraram num país
que não os considerou como pertencentes a ele, que não lhes deu as boas-vindas.
Uma grega pensa inevitavelmente nos refugiados gregos da Ásia Menor em 1922, à
procura de refúgio nas ilhas mais próximas do mar Egeu, e mais tarde na capital
Atenas, vistos por muitos dos habitantes locais com suspeita e fúria, chamados
de "sementes de turcos" - uma versão da história não contada na
escola na altura que eu era aluna e que só recentemente começou a ser discutida,
quase um século depois dos eventos ocorrerem. Será um século ‘recente’? Será
distante o suficiente?
Voltando para a exposição "Retornar", o texto
introdutório fez-me realmente pensar que tinha razão em manter as minhas
expectativas altas. "A exposição Retorno não pretende consagrar o nome que
foi dado na história a estes deslocamentos, mas convidar a um movimento que permita
criar pensamento, reflexão e disponibilidade para olhar as tensões,
contradições e perplexidades que os acompanharam." E mais abaixo: "Tendo
por objectivo constituir-se como um momento de reflexividade e pensamento
crítico, não fornece uma interpretação, mas interrogações simultâneas quer
sobre a condição pós-colonial quer sobre a condição humana de apropriação,
exploração, deslocamento e perda.”
Imagem retirada de www.conexaolusofona.org |
E é aqui que tudo começou a ficar algo aquém das minhas
expectativas. É certo que a exposição não proporcionou uma interpretação, mas sinto
que isso não aconteceu porque os curadores não tiveram a coragem de analisar os
factos apresentados para o visitante, para realmente apresentar os
"interrogatórios simultâneos" que a exposição nos tinha prometido. Assim,
ou uma pessoa é investigadora e capaz de ler facilmente entre as linhas ou é
informada que "Estes documentos [do Instituto de Apoio ao Retorno de
Nacionais] evidenciam o carácter babélico da operação de acolhimento e integração
e a complexa relação entre o Estado e os indivíduos e as instituições" e
não tem meios para interpretar o que "babélico" ou "complexo"
pode significar neste contexto.
Uma secção inicial chamada "Migrações coloniais para Angola e Moçambique" não procurou analisar as motivações, as hierarquias e ligações sociais, as tensões explícitas ou cobertas, mas fez uma simples apresentação de objectos sucintamente identificados. Para a maioria de nós, os objectos só por si não revelam as histórias por trás.
A parte que realmente me transmitiu algo foram os
testemunhos, ouvir diferentes histórias na primeira pessoa. Aqui, a exposição correspondeu
ao prometido: "Testemunho
convida os participantes a compeender como a experiência histórica é vivida
como uma experiência pessoal, emocional e sensorial." A única coisa que
não foi bem pensda, na minha opinião, foi o formato: estamos rodeados de belas
fotografias das pessoas que deram o seu testemunho, mas a sessão é bastante
longa e teria sido mais confortável seguir se pudéssemos assistir a um vídeo e
não apenas ouvir as histórias. Além disso, o volume estava baixo, considerando
também o ruído proveniente da exposição. Tive que ficar a maior parte do tempo de
pé ao lado de uma coluna para poder ouvir um pouco melhor. Não consegui ficar
para ouvir tudo.
Imagem retirada do jornal iOnline. |
Ao sair, perguntei à pessoa que estava na recepção como é
que os visitantes reagiam à exposição. Ela disse que algumas pessoas sentiam a
necessidade de conversar com ela, contar-lhe a sua história, muitas vezes
acrescentando: "É muito jovem, não sabe". Algumas pessoas choravam.
Será que a exposição "criou [para eles] um espaço para o pensamento, reflexão
e disponibilidade para examinar as tensões, contradições e perplexidades que os
acompanhavam"? Ou foi uma espécie de "memorial", que permitiu
que as pessoas se lembrassem e fizessem um luto, mas nada mais? Devo mencionar
aqui que havia um programa paralelo muito interessante de performances, palestras
e visitas guiadas, que eu não consegui acompanhar, e que deve ter acrescentado
muito à exposição.
Depois de deixar a exposição, fui a uma livraria e comprei
dois livros que estavam há muito na minha lista: "O Retorno" de Dulce
Maria Cardoso e "Caderno de Memorias Coloniais" de Isabela Figueiredo.
Ambos as escritoras estiveram envolvidas na programação paralela. Pensei que,
se algumas citações de seus livros tivessem sido incluídas nos painéis de
exposição, esta poderia, realmente, ter tido a capacidade de ser o que
inicialmente se propôs a ser. Foi muito cedo para tocar nesse assunto? Será que
os curadores pensaram que não estávamos prontos para sermos envolvidos num verdadeiro
debate? Os livros de Dulce Maria Cardoso e Isabela Figueiredo têm vendido milhares
de cópias, portanto, há pessoas abertas a outras narrativas, na privacidade da
leitura de um livro. Mas não numa exposição? Não sei, eu teria realmente
gostado de ver os curadores dar um passo à frente, tal como as escritoras. Também na Grécia... primeiro foram os escritores.
Sugestão de leitura:
David Rieff, The cult of memory: when history does more harm than good, The Guardian, 2016/02/03
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