Wednesday, 22 June 2016

Reflexões governamentais sobre o acesso à cultura


"MAPA - O jogo da cartografia", um espectáculo da associação A PELE (imagem retirada do website do Teatro Nacional D. Maria II)

O Culture White Paper (publicado pelo Departamento de Cultura, Media e Desporto em Março 2016) define a forma como o governo britânico vai apoiar o sector cultural nos próximos anos. É o primeiro documento deste tipo em 50 anos e o segundo alguma vez publicado no Reino Unido.

O documento abre citando o primeiro-ministro britânico, David Cameron, que afirma: "Se acreditam no financiamento público da arte e da cultura, como eu apaixonadamente acredito, então devem também acreditar na igualdade de acesso, atraindo todos e acolhendo todos."
Não sei quão grande a paixão do primeiro-ministro realmente é. Considerando os graves cortes implementados no sector cultural britânico nos últimos anos e o tumulto que causaram entre os profissionais da área, esta poderia ser apenas a coisa certa a dizer num White Paper para a Cultura, embora a prática até agora tem mostrado o contrário (ver leituras sugeridas abaixo). Ainda assim, esta declaração e a referência concreta ao "acesso" parecem definir o tom de todo o documento. É importante mencionar aqui que esta abordagem não é propriamente nova para o Reino Unido. Lemos no documento que começou imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, quando John Maynard Keynes, o primeiro presidente do Arts Council, partilhou a sua esperança de que um dia "o teatro, a sala de concertos e a galeria de arte será um elemento vivo na educação de todos" (p.5). Quando o primeiro White Paper para as artes foi publicado em 1965, também constava a obrigação do governo de sustentar e fortalecer tudo o que melhor se faz nas artes, afirmando que "o melhor deve ser mais amplamente disponível" (p.5).

Assim, cinquenta anos mais tarde, este novo White Paper apresenta os planos do governo britânico para o sector cultural, fazendo repetidas referências ao acesso, à diversidade, à educação artística, ao bem-estar e ao investimento. Na verdade, refere-se ao sector cultural no plural - "sectores" - para sublinhar a sua diversidade. E identifica quatro grandes prioridades:

1. Todos devem aproveitar as oportunidades oferecidas pela cultura, independentemente de onde eles começam na vida.

2. As riquezas da nossa cultura devem beneficiar as comunidades em todo o país.

3. O poder da cultura pode aumentar a nossa posição internacional.

4. Investimento cultural, resiliência e reforma.

Os primeiros dois pontos são de particular relevância para mim, uma vez que o Governo britânico considera que o seu papel é "permitir o florescimento de grande cultura e criatividade - e garantir que todos possam ter acesso a elas" (p 13).

No que respeita ao primeiro ponto, há no início uma declaração de Nicky Morgan, Secretária de Estado da Educação, que diz que "o acesso à educação para a cultura é uma questão de justiça social" (p. 19). Neste capítulo, o governo britânico reconhece que a cultura deve ser uma parte essencial da educação de todas as crianças, tanto dentro como fora da escola; que deveria haver um acesso melhor ao desenvolvimento de competências e vias mais claras para o talento, onde quer que ele surja; e que a cultura financiada com dinheiros públicos deve reflectir a diversidade do país. As medidas concretas a fim de cumprir essas metas envolvem a criação de novas oportunidades culturais para os jovens provenientes de meios desfavorecidos, a estreita colaboração com as escolas, a identificação das barreiras que impedem as pessoas de grupos sub-representados tornar-se profissionais das artes, oportunidades para que essas pessoas desenvolvam as suas capacidades com a colaboração de organizações culturais, etc. (p. 23, 25, 27).

Quanto ao segundo ponto e a obrigação de beneficiar as comunidades em todo o país, o governo britânico reconhece que os "sectores culturais têm um contributo essencial para a regeneração, saúde e bem-estar das regiões, cidades, vilas e aldeias. O Secretário de Estado das Comunidades e do Governo Local, Greg Clark, afirma que "Estamos no meio de uma revolução de devolução. Queremos que as nossas instituições culturais nacionais e locais trabalhem em conjunto para apoiar as localidades para aproveitarem o poder da cultura em impulsionar o crescimento económico, a educação e o bem-estar" (p. 29). As prioridades neste sentido envolvem a promoção do papel da cultura na construção de comunidades mais fortes e saudáveis; a promoção de parcerias locais e nacionais, esperando que as instituições nacionais apoiem a visão local; o apoio às comunidades locais para aproveitarem ao máximo edifícios históricos que estimam; o reconhecimento que a dimensão digital está a tornar-se num “lugar" em si, expandindo as formas como as pessoas fazem e experienciam a cultura. As medidas concretas, a fim de cumprir essas metas, envolvem apoiar o papel e os propósitos da Capital da Cultura do Reino Unido; apoiar e aconselhar as comunidades locais para desenvolverem a sua visão e procurar parceiros; desenvolver e melhorar o acesso digital a colecções públicas e registos do ambiente histórico (p. 33, 35, 37, 39).

É verdade que o White Paper pode não ser nada mais do que uma compilação de declarações politicamente correctas. No entanto, define uma base clara para aqueles que desejam trabalhar nele, planear a sua acção com objectivos concretos e a “prestação de contas” ao governo britânico. Ao envolver políticos de outras áreas - como a Educação, as Comunidades e o Governo Local, o Turismo e o Património, o Ministro das Finanças – torna-se claro o óbvio, ou seja, a necessidade de envolver e garantir a colaboração de outros sectores, para que a Cultura possa florescer e cumprir a sua finalidade. Este é um esforço colectivo e coordenado.

Com a palavra "acesso" a ecoar agradavelmente na minha cabeça com a leitura do White Paper, decidi olhar melhor para o programa do Governo Português para a Cultura. Poderia comentar sobre uma série de coisas: o facto da parte sobre a Cultura encontrar-se no capítulo "Prioridade à inovação" (juntamente com a transição energética ou a inovação e internacionalização das empresas...?); ou o facto de uma grande parte das medidas anunciadas estarem relacionadas com a (sempre tão inevitável) reestruturação do sector; ou o facto de medidas e decisões que pertencem a um governo estarem misturadas com acções concretas que devem ser decididas e empreendidas pelas próprias organizações culturais (ainda não estamos muito familiarizados com o conceito de "arm’s length"). Vou concentrar-me, porém, nas questões relacionadas com o acesso.

Há uma primeira referência logo no início, no próprio título: "Investir na cultura, democratizar o acesso" (p.197). A segunda referência vem na introdução: "o recurso alargado às novas tecnologias de informação que potenciam um acesso alargado ao património e à criação” (p. 198). O conceito de “acesso” é, depois, um pouco mais desenvolvido na segunda das seis grandes prioridades ou objectivos do governo, o intitulado "Educar para uma cultura mais participada" (pp.200-201).

Assim que se começa a ler, torna-se claro que o conceito de "acesso" é bastante limitado e muito associada aos meios de comunicação social e aos conteúdos digitais (digitalização e disponibilização pública dos acervos das diversas áreas patrimoniais; a criação de uma rede digital que disponibilize toda a informação sobre a sector cultural e criativo; promover e apoiar a produção de portais e conteúdos digitais que potenciem o acesso dos cidadãs ao património e à criação contemporânea). Há mais duas medidas / referências nesta parte: uma em relação à criação do Cartão + Cultura (perpetuando o mito que o "dinheiro" é a principal barreira ao acesso à cultura - não aprendemos nada com a iniciativa brasileira "Vale Cultura"? - ver posts abaixo); e outra que sugere "Incentivar a acessibilidade dos públicos com necessidades especiais às actividades culturais e ao consumo dos órgãos de comunicação social" [sic].

Não é feita no documento nenhuma outra referência clara ao acesso, não é demonstrada nenhuma ligação clara entre as medidas e acções propostas e os benefícios directos em termos de acesso para as pessoas, os cidadãos (e não apenas para o sector ou os seus profissionais, como se fossem um fim em si próprios). Também não há nenhuma ligação óbvia a outros capítulos do documento, como "Prioridade às pessoas" ou "Mais coesão, menos desigualdades".

Podemos, realmente, discutir a cultura e o acesso se o nosso Governo limita a reflexão ao acesso digital a conteúdos e à criação de um “subsídio” para a cultura? Será que os nossos consecutivos governos estarão alguma vez dispostos a enfrentar o que é para mim a real questão, ou seja, a falta de relevância e de acesso intelectual ao que está a ser feito e comunicado por grande parte das organizações culturais? Alguma vez os nossos governos irão planear a longo prazo e a pensar em todo o país e na sua diversidade, em vez de estarem repetidamente a desperdiçar recursos na reestruturação do sector? Será que alguma vez irão visionar e investir esforços numa cultura mais democrática, em vez de estarem constantemente a planear formas de "democratizar" o acesso ao que eles e grande parte do sector (do sector institucionalizado) definem como "cultura válida", como "cultura à qual vale a pena ter acesso"? Falemos do acesso, sim, com certeza. Começa-se por questionar: Qual cultura? De quem? Para quem?


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