Imagem retirada do jornal Público. Foto: Nuno Ferreira Santos |
Foi um bom exercício para todos nós a conversa com a
Vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto (CVP), ontem no Teatro Maria Matos (MM).
Como tem sido um bom exercício toda a conversa gerada após o anúncio da sua
decisão de arrendar o MM e de o tornar num espaço para o grande público, que
possa ser rentável.
O encontro começou com uma intervenção de CVP. Falou da sua
responsabilidade, como Vereadora da Cultura, de olhar para a cidade no seu
todo, de compreender o ecossistema cultural e de procurar identificar lacunas. Disse
que a Câmara assumiu duas prioridades: a preservação da memória (refere-se ao Teatro
do Bairro Alto e ao Teatro Luís de Camões) e a diversidade cultural. Até aqui
tudo bem. As fragilidades na argumentação começam a surgir no momento em que
começam a ser colocadas perguntas sobre estas afirmações.
Vezes sem conta ontem, quando os cidadãos tomaram a palavra
para expressar a sua apreciação por e ligação ao projecto e ao espaço MM
(indissociáveis, como é natural, para quem o frequenta), CVP respondeu: “Mas o
projecto acabou com a saída do Mark Deputter e dos outros programadores. São as
pessoas que fazem os lugares e nunca iria ser o mesmo. Tivemos que repensar.” CVP
mostrou-se compreensiva em relação ao que chamou “o vosso luto”, mas afirmou
que as coisas mudam, que a mudança cria resistência, mas que tem que ser
encarada e ela, como responsável pela cultura, tem que procurar as melhores soluções
e garantir a diversidade cultural. Disse que nós pensamos só em nós, ela pensa
na cidade. Quando questionada sobre o investimento que a Câmara fez no sentido
de criar uma identidade para aquele espaço, CVP respondeu que o MM teve várias
identidades: no tempo do Miguel Abreu, do Diogo Infante, e agora do Mark
Deputter.
Não sei como o público reagiu à saída do Miguel Abreu no
início dos anos 2000 nem sei qual era a identidade que o MM projectava na
altura. Sei que o anúncio da saída do Diogo Infante não causou reacções negativas
– as pessoas seguiram-no calmamente para o Teatro Nacional D. Maria II, a
identidade era a do director artístico. O que se vê agora no caso do MM é
bastante diferente, no entanto, e merecia ser avaliado de outra forma por quem
é responsável pela Cultura na cidade, pelo seu ecossistema e pela diversidade
cultural.
O público do MM não lamentou a saída do Mark Deputter
quando esta foi anunciada em Agosto de 2017. Não houve nem há luto em relação a
esta saída, em momento nenhum se implorou para que ele ficasse, não se pediu
mais do mesmo. Pessoalmente, pensei “que bom para ele e que bom para o MM”. Que
bom para nós, em última análise. Por um lado, curiosos em ver o que ele irá
fazer na Culturgest (ao contrário do que CVP afirma repetidamente, ele já disse,
numa entrevista em Setembro, que vai fazer algo diferente do que fez no MM,
como seria de esperar). Por outro, expectantes em relação à forma como um novo
director artístico no MM iria responder ao desafio do posicionamento único que este
teatro assume na cidade.
E o ponto crucial para mim está aqui: no posicionamento
único do MM na cidade de Lisboa, que define a sua identidade neste momento e que
o diferencia de todos os outros espaços. CVP considera que há algo a ganhar com
a decisão tomada, que vamos todos ficar melhor servidos. Isto porque pensa em
termos “técnicos”, diz que vai haver melhores condições para o “experimental e emergente”
e para a “programação infanto-juvenil”. Mas nós, cidadãos, não vamos atrás de
géneros. Se isto fosse o que mais pesasse nas nossas escolhas, oferta não falta
em Lisboa. Como cidadã, aceitei um convite de um teatro municipal que assume um
posicionamento político. Isto, no meu ver, é único. Isto é algo que não
encontro noutros espaços culturais em Lisboa – não o encontro assumido,
trabalhado de forma coerente e permanente e com a minha participação.
Portanto, não é de todo evidente, nem natural, assumir que
a saída de um director artístico de um teatro municipal põe fim à sua vocação. É
da responsabilidade da tutela garantir essa vocação, garantir a diversidade
cultural, identificar as lacunas, que agora ela própria cria. Não estou a falar
de géneros, já o disse. Estou a falar do convite distinto que este teatro
lançou aos cidadãos, convite que foi aceite por alguns (não poucos) e que
resultou na criação de uma comunidade: a comunidade do Maria Matos. Diria mais:
é irresponsável destruir um projecto em que tanto se investiu com a desculpa de
que o director artístico saiu. Tenho toda a consideração e respeito pelo Mark
Deputter, pela Liliana Coutinho, pelo Pedro Santos. Mas não acho que sejam as
únicas pessoas competentes, sensíveis, conhecedoras para servir a missão do MM.
Nem a cidade, o seu ecossistema, se limita às questões por eles levantadas. A tutela
tem a obrigação de saber distinguir a missão do conteúdo e de preservar a vocação
de um espaço cultural que, claramente, dizem-no os cidadãos, faz falta. Talvez
mais até do que preservar o espaço deixado vazio pelo Teatro da Cornucópia
(isto, se tivesse que escolher).
Vários cidadãos ontem reafirmaram a sua
apreciação pelo projecto MM (mesmo sem o Mark Deputter). A sua apreciação não
pelo “experimental”, não pelo “emergente”, não pelo “contemporâneo” – ninguém usou
estes termos -, mas por um projecto composto, coerente, que os convida a
reflectir em conjunto e que lhes dá algo que nenhum outro espaço cultural lhes proporciona
neste momento. Sinto que não foram realmente
ouvidos, sinto que foram encarados com alguma condescendência, por serem “sentimentais”
(um pouco paternalista, para o meu gosto). Outros cidadãos, em Outubro passado,
aceitaram o convite para vir conversar no MM com a artista Grada Kilomba e muitos
entraram neste teatro municipal pela primeira vez. CVP não esteve nesse encontro.
Aqueles cidadãos deixaram mais que claro que existem, que são habitantes pensantes
e interessados desta cidade, mas que são invisíveis. Outros sentimentais?
Afinal, quem é que a Vereadora da Cultura aceita ouvir?
Falou-se de muitas outras coisas ontem. Fiquei um pouco
desapontada ao ver que CVP não vinha preparada para discutir números (números
de espectadores, valores de investimento, arrendamento etc.), questões que era
mais que expectável que fossem colocadas. Mostrou ainda algum desconhecimento
em relação ao tipo de programação que se faz no MM, o que é preocupante,
considerando a decisão que tomou. No entanto, a questão que mais me interessa a
mim é esta:
Se uma das responsabilidades da Vereadora da Cultura é
estudar o ecossistema, identificar lacunas, procurar preservar a diversidade
cultural, pergunto-me: quais os cidadãos que a Vereadora da Cultura ouviu para
chegar à conclusão que o que faz falta na cidade é um espaço com programação
para “o grande público”, que possa ser rentável? Quem expressou este sentimento
de falta? E porque é que esta necessidade, se foi realmente expressa, é mais
importante nos planos da Câmara Municipal de Lisboa para a Cultura na cidade do
que aquela expressa por quem frequenta o MM?
Libertemos o Mark Deputter. Não o responsabilizemos por
coisas pelas quais não é responsável. Deixemo-lo fazer o que sabe bem fazer e
surpreender-nos (esperemos, este não é um “amor incondicional”). Sejamos
exigentes com a Câmara Municipal de Lisboa. A política cultural na cidade é da
sua responsabilidade. Ouvir, sentir (sim, também sentir), valorizar o diálogo
com os cidadãos também o é. O projecto MM não acaba porque Mark Deputter saiu. Mas,
será a Câmara Municipal de Lisboa capaz de gerir o desafio de lhe dar
continuidade? Um desafio muito maior, muito mais exigente, do que arrendar o
espaço a privados, mas que lhe compete, claramente, assumir.
Mais neste blog:
Ainda sobre o Maria Matos: o etos de um teatro
O que o Maria Matos significa para mim (ou porque é que assinei o abaixo assinado)
A pessoa que precisamos de ouvir
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