Saturday, 14 July 2018

"Somente brancos": entraria?



Há dois incidentes recentes que me fizeram pensar. São lições aprendidas e têm influenciado a minha maneira de avaliar situações e de tomar decisões profissionais e pessoais.

No passado mês de Abril, assisti ao encontro plenário do IETM no Porto. Houve várias questões relacionadas com o acesso de pessoas com mobilidade condicionada (utilizadores de cadeiras de rodas, grávidas, pessoas obesas), que criaram desconforto e alguma tensão, como salas de conferência e casas de banho acessíveis apenas por escadas. Quando uma colega com deficiência me disse que a festa de encerramento seria num local inacessível, eu naturalmente respondi que, se ela não pudesse ir, eu também não iria. No entanto, isto era suficiente?

Os nossos colegas britânicos, tanto os delegados individuais com e sem deficiência, como os institucionais, não guardaram isso para eles próprios. Usaram as redes sociais para informar toda a gente que o local da festa de encerramento não seria acessível, pediram acção e solidariedade e convidaram-nos a participar numa festa de encerramento alternativa, num local acessível (leiam a declaração que o IETM fez posteriormente, que pode também constituir uma lição a nível institucional).






Alguém escreveu na altura: “Não iremos se os nossos colegas com deficiência não puderem ir. Assim como não iríamos se os nossos colegas negros não pudessem ir”. Essa foi, talvez, a declaração mais marcante para mim, entre muitas outras.

Como demonstram recentes incidentes em Portugal, estamos longe de resolver o problema do racismo, é claro. No entanto, muito mais pessoas hoje se sentiriam incomodadas e também envergonhadas ao entrar num lugar com sinalética de “Somente brancos”. Se é assim no caso das pessoas negras, porque é que ainda aceitamos entrar em tantos lugares com sinais invisíveis de “Somente pessoas sem deficiência”? Porque é que - antes de organizarmos uma exposição, performance, peça de teatro, concerto, conferência ou outro tipo de evento - não nos certificamos de que todos os nossos colegas, bem como familiares, amigos e também pessoas que não conhecemos, terão a oportunidade de participar, se assim o desejarem?

Isso limitaria as nossas escolhas? Sem dúvida, limitaria mesmo. Mas é, provavelmente, o mínimo que podemos fazer para quebrar um cíclo vicioso que nos envolve a todos: cidadãos sem deficiência e necessidades especiais, cidadãos com deficiência e necessidades especiais, associações, entidades culturais públicas e privadas, arquitectos, municípios e entidades do Estado. Todos nós que, por uma razão ou outra (com uma desculpa ou outra), não respeitamos a lei ou aceitamos que a lei não seja implementada. O acesso é apenas um problema das pessoas com deficiência? Não é de todos? Porque é que compactuamos silenciosamente com a discriminação? E porque é que, quando agimos contra ela, também o fazemos tão silenciosamente?

Num recente debate organizado pela Acesso Cultura sobre a não implementação de boas práticas em espaços culturais em Portugal, tornou-se óbvio que não se trata apenas da lei e que não se trata apenas de uma lei, a Lei de Acessibilidade de 2006. Trata-se da nossa Constituição, de leis diferentes; e trata-se da nossa cultura, da nossa forma de estar. Diferentes situações foram identificadas nesse debate que se realizou em seis cidades portuguesas (leia o resumo) e que podem também ser vistas em associação com os resultados apresentados pela Acesso Cultura no relatório das jornadas que promoveu em todo o país, em 2017, com profissionais da cultura (leia o relatório). Acredito que, ao consultar esses documentos, cada um de nós identificaria facilmente as suas próprias responsabilidades na discriminação contínua contra pessoas com deficiência e necessidades especiais.


Fotografia retirada da página de Facebook de Mariana Seara.

Houve um segundo incidente recentemente que me fez pensar. No passado dia 19 de Junho, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra organizou um colóquio sobre Deficiência e Autodeterminação: o Desafio da Vida Independente (leia sobre vida independente). Havia dois convidados especiais: Adolf Ratzka, Director do Institute of Independent Living, e Kapka Panayotova, Presidente do European Network of Independent Living, ambos activistas de longa data na luta pela vida independente. De acordo com uma pessoa que participou nesse encontro, outros dois convidados, com responsabilidades políticas em Portugal, dirigiram-se brevemente à audiência na cerimónia de abertura e depois disseram que não poderiam ficar. De acordo com esse único testemunho que li sobre esse incidente, Kapka Panayotova dirigiu-se à saída, segurou as duas folhas da porta e disse que eles não poderiam sair; que aquilo era muito importante e que teriam que ouvir; que seriam arrogantes se saíssem.

Uma segunda lição sobre acção, responsabilidade, solidariedade e rigor. Não importa, realmente, quem foram esses dois convidados. Todos sabemos que isto é muito comum em Portugal. Que políticos e outras pessoas com responsabilidades assistem às cerimónias de abertura (porque é isso que lhes pedimos, porque é isso que queremos, porque mostramos que valorizamos essas breves presenças e palavras banais de circustância), mas raramente ficam para ouvir e debater. As discussões reais acontecem na sua ausência, quando são essas as pessoas que têm o poder para fazer as coisas acontecer (certas coisas, com certeza) e que devem procurar estar informadas e fazer parte da discussão entre profissionais.

Se continuarmos com esta prática segmentada, e certamente confortável, de debater e agir, os desenvolvimentos e melhorias necessários levarão muito mais tempo para acontecer. Algumas coisas já demoraram tempo demais, não fazem sentido em 2018, não devem ser consideradas aceitáveis ​​ou desculpáveis. Rigor, acção informada, solidariedade e forte sentido de responsabilidade, grande ou pequena; a responsabilidade que cada um de nós tem de não apoiar, activa ou passivamente, qualquer tipo de discriminação.

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