National Portrait Gallery, Washington DC (Foto: Ben Hines) |
Num curso de formação para profissionais da cultura no mês
passado, mostrei a foto de uma menina negra de dois anos admirando o retrato de
Michelle Obama na National Portrait Gallery em Washington. Ela parecia fascinada
e parece que disse à sua mãe que a mulher no quadro era uma rainha e que ela queria
também ser rainha. O meu argumento era que os negros, ou outras chamadas "minorias", raramente vêem pessoas parecidas com elas como parte das narrativas mainstream apresentadas em museus;
raramente se deparam com as histórias de pessoas que se parecem com eles e que
conseguiram algo nas suas vidas; pessoas que poderiam admirar.
Uma colega rapidamente refutou o meu argumento e afirmou que
não acreditava que isso fosse uma questão. Eu continuei. Contei-lhes sobre um
artigo que tinha lido uns dias antes e que se chamava “Este país ainda há-de ser para ciganos”. Conheci Piménio Ferreira, que uma vez ouviu
a sua professora da primária dizer-lhe que não sabia porque ele estava na
escola, pois iria ser vendedor nas feiras (contradizendo o pronunciamento da sua
professora, ele é hoje investigador em Biofísica e Engenharia Biomédica). Conheci
também Cátia Montes, que está agora a terminar os seus estudos em Educação
Social. Ela teve de deixar a escola aos 14 anos, viveu uma vida nómada
perseguida pela polícia e perdeu dois empregos porque os clientes não queriam
ser servidos por uma cigana.
Quão forte e teimoso alguém tem de ser para contrariar a
vida estereotipada que lhe foi traçada - por pessoas dentro e fora da sua
comunidade - e ser outra coisa, o que quiser ser? E que oportunidades é que se
tem para sonhar?
August Agbola O'Brown (1895-1976), Soldado na revolta de Varsóvia, Museum of Warsaw (Foto: Maria Vlachou) |
Michelle Obama sabe da importância da representação. Sabe
exactamente o que tudo isto envolve e tem aproveitado todas as oportunidades
para dar a conhecer a outros. “(Raparigas e raparigas de cor) verão uma imagem
de alguém que se parece com elas nas paredes desta grande instituição americana...
E eu sei o tipo de impacto que isto terá nas suas vidas, porque eu fui uma
dessas raparigas", disse ela na apresentação oficial de seu retrato na
National Portrait Gallery. E não se pode esquecer também o seu discurso
na inauguração do novo Whitney Museum em 2015, quando disse: “Sabem, são tantas
as crianças neste país que olham para lugares como os museus, as salas de
concerto e outros centros culturais e pensam para elas mesmas, bem, isso não é
um lugar para mim, para alguém que se parece comigo, para alguém que vem do meu
bairro. Na verdade, garanto-vos que neste momento, há crianças que moram a
menos de uma milha daqui, que nunca num milhão de anos sonhariam que seriam
bem-vindas neste museu e, tendo eu crescido no lado sul de Chicago, eu era uma
dessas crianças.”
Muitos de nós podem sentir-se perplexos com a ideia de que esta
pode ainda ser uma questão hoje. Desejando um mundo mais justo, tendemos a
esquecer que não se trata apenas de desejar. Na prática, ainda há muito por fazer
e a primeira coisa pode ser ouvir com mais atenção. Há testemunhos suficientes,
se estivermos dispostos a ouvir, se tivermos alguma curiosidade em saber e se não
tivermos tanto medo de descobrir que o mundo pode ser um pouco diferente do que
pensávamos.
Num artigo de opinião em Fevereiro passado, o editor
Guilherme Valente acusou o movimento anti-racista de inventar racismos e de
racializar coisas que não têm nada a ver com a cor da pele, promovendo, de facto,
o conflito inter-racial. Para Valente, as políticas de identidade são uma
novidade importada em Portugal, substituindo e subestimando as causas sociais e
especialmente as necessidades e expectativas da população, que deseja ser uma
“PESSOA” acima de tudo.
Valente também nos lembrou, e com razão, que devemos
primeiro respeitar os direitos humanos individuais e não impor identidades de
grupo às pessoas, o que muitas vezes prejudica esses direitos. Ele não parece
entender, no entanto, que cada pessoa deseja ser respeitada pelo que é, sem
concessões às "normas" convencionais. É essa necessidade de defender
o direito de ser que traz as pessoas hoje (como sempre) em grupos. Sim, “[a
população] negra ou branca, heterossexual ou trans ou homossexual deseja ser
uma PESSOA”, como escreveu Valente, mas não serão uma pessoa se tiverem de ignorar ou ocultar
quem são e como vivem as suas vidas. Não serão uma pessoa se não tiverem
oportunidades iguais por causa de quem são. Talvez para muitos entre nós isto seja
algo realmente difícil de entender ou acreditar.
Sade Brown, Fundadora de Sour Lemons (Foto: website de Sour Lemons) |
O título do discurso de abertura de Sade Brown na reunião plenária do IETM em Hull em Março era precisamente “What did you have to leave at the door in order to show up today?” (O que teve de deixar de fora para aparecer hoje?). Sade é a fundadora de Sour Lemons, uma empresa que procura aumentar a diversidade e a mobilidade social nas indústrias criativas. Contou-nos sobre a sua adolescência, as faltas à escola, as más companhias, as drogas e o álcool. Contou-nos também sobre as oportunidades que teve para trabalhar no sector cultural, onde muitas vezes se sentia (ou faziam-na sentir-se) tão inadequada, que deixava um pouco de si mesma de fora todos os dias. “Quanto mais lá trabalhava, mais deixava algo de mim do lado de fora. Porque percebi rapidamente como era o sucesso e não se parecia comigo, não soava como eu. Então, fiz a escolha - inconscientemente na época, mas fiz a escolha - de assimilar.”
Hoje, Sade treina jovens com um histórico semelhante ao dela
para adquirir habilidades de liderança e encontrar trabalho nas indústrias
criativas. Sabe muito bem que isto tem a ver com oportunidades que muitas
pessoas, por causa de sua origem, não conseguem. Uma rapariga de 23 anos disse-lhe
uma vez que, antes de a conhecer, não sabia que uma mulher de cor poderia ser
uma mentora, ocupar uma posição de poder. Essa rapariga sabe agora que ela também pode
ser uma mentora; e é. É o “efeito cascata” da diversidade, da inclusão e da capacitação
e todos eles podem agora ser modelos para outros (assista ao vídeo do discurso).
A lente através da qual vemos o mundo é a lente que faz mais
sentido para nós, disse Sade. E se estamos rodeados de pessoas que se parecem
connosco e que têm experiências de vida semelhantes, a nossa lente não vai ficar
muito mais larga. Para muitos de nós, não se trata de adicionar açúcar e
saborear uma limonada doce. Trata-se de perceber e reconhecer que os limões são
azedos.
A ler ainda:
Rui Pena Pires, "É possível combater o racismo com a classificação racial dos cidadãos?", Público, 29.4.2019
Ian Hacking, "Making up people", publicado em London Review of Books, Vol. 28 No.16, 17.8.2006
Rui Pena Pires, "É possível combater o racismo com a classificação racial dos cidadãos?", Público, 29.4.2019
Ian Hacking, "Making up people", publicado em London Review of Books, Vol. 28 No.16, 17.8.2006
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