Les Kurbas Theatre, Lviv, Ukraine, 2022. Foto: Adriano Miranda
Assistir a representações de peças antigas nos teatros gregos é uma experiência que me faz sempre pensar. Acho particularmente comovente o fluxo de pessoas que se dirigem ao teatro para assistir pela enésima vez às mesmas histórias que nos falam de amor, ódio, respeito, arrogância, sede pelo poder, guerra, justiça, vingança. Histórias escritas há muitos séculos sobre a natureza humana e tudo o que há de bom e de mau nela. Então, quando olho ao meu redor para as pessoas que enchem o teatro e, sobretudo, quando as vejo ir-se embora depois do espectáculo, muitas vezes me pergunto “E então? E agora?". Até que ponto as pessoas utilizam o “alimento” (food for thought) que lhes foi proporcionado para pensar sobre a vida contemporânea, sobre si mesmas e sobre os outros, o seu lugar no mundo e qual poderia ser a sua contribuição para um mundo melhor? Quando penso na sociedade contemporânea grega (e noutras sociedades), a forma como cuidamos (ou não cuidamos) uns dos outros, lembro-me que o poder não reside apenas na peça, mas também, e talvez até mais, no indivíduo e no que essa pessoa fará (ou não) com o que lhe foi dado.
Valorizo a cultura e as artes; valorizo a
criatividade e a forma como ela questiona as nossas certezas e alimenta a nossa
imaginação; gosto da forma como criamos comunidades baseadas em diferentes tipos
de participação cultural. O meu trabalho diário é contribuir para uma sociedade
onde, através da cultura e das artes, todos possam ter oportunidades de
participar e de crescer, de sonhar e de contribuir para um mundo melhor e mais
humano. Mas também sei que isso é o mais longe que posso ir. O resto cabe a cada
indivíduo. É por isso que, há anos, comecei a questionar as declarações feitas
por diferentes organizações culturais que contribuem para a coesão social, o
bem-estar individual e colectivo, o entendimento intercultural, a tolerância,
etc., etc., quando não vemos nenhum sinal de que algo do género esteja,
realmente, a acontecer numa escala maior – a começar pela forma como as
próprias organizações culturais são geridas por dentro. Algumas organizações
culturais (nem todas, talvez nem mesmo a maioria) disponibilizam as
“ferramentas”. Estou a falar daquelas organizações que estão conscientes da
diversidade humana e no serviço que prestam às comunidades, com base nos
princípios de acesso, inclusão e equidade. No entanto, elas fazem parte de uma
rede cultural, educacional e social mais ampla, cujo “sucesso” reside na
colaboração e nas interligações, e não apenas na Cultura.
A forma como a cultura e as artes têm sido
frequentemente retratadas como “remédios” que resolverão todos os males na
sociedade (injustiças, desigualdades, guerras e outros conflitos sociais)
deixa-me normalmente desconfortável, por duas razões principais: porque parece
ignorar a rede cultural, educativa e social mais ampla, que deve assumir-se
como tal e tornar-se funcional, servindo uma visão comum para uma sociedade
futura; e também porque atribui à cultura e às artes um propósito que não é o
deles, em primeiro lugar.
No início de Novembro, participei numa
conferência em Portugal onde a nossa colega Mariana Mata Passos, da associação
cultural Pó de Vir a Ser, falou sobre um programa-piloto de “prescrição
cultural” na região do Alentejo Central. Na sua breve apresentação, a cultura e
as artes foram mencionadas associadas à “saúde mental”, ao “isolamento”, aos
“centros de saúde”, aos “médicos”, às “prescrições médicas”. Dado que o tempo
para debate foi bastante escasso, alguns de nós saímos da sala sentindo-nos
confusos e perturbados. Dias depois, deparei-me com um artigo num jornal grego
intitulado “No teatro e no museu com receita médica”. O título soou o alarme para mim. O próprio artigo descrevia algo
semelhante à experiência portuguesa: um programa-piloto de prescrição cultural
e a ambição de que, até 2025, todos os psiquiatras privados possam prescrever
arte-terapias, com o objectivo de incluir a prescrição cultural no Sistema
Nacional de Saúde. O que pode ser prescrito são actividades artísticas com
duração de três meses ou a participação em espectáculos, filmes ou concertos
pelo menos três vezes por mês, que os beneficiários poderão depois discutir,
expressando os seus pensamentos e sentimentos. Tudo isso fez-me comentar no Facebook, com alguma
ironia: “Se o paciente não melhorar, a culpa será do espectáculo ou será
aumentada a dose?”. Colegas mais próximas destas iniciativas ou envolvidas em actividades
similares ofereceram-se para falar sobre o assunto. Queria mesmo poder falar
mais e melhor. Mas antes, fiz um pouco de trabalho-de-casa.
As minhas principais preocupações, como indicado
no meu comentário no Facebook, têm a ver com os critérios usados pelos médicos
para prescrever uma actividade ou um espectáculo específico e, principalmente,
como os resultados podem ser interpretados em relação à qualidade ou
“capacidade de cura” das actividades prescritas e, indo um pouco mais longe, o
impacto que isto poderá ter (é suposto ter?) na avaliação e talvez também no
financiamento da cultura e das artes.
Teatro de Dodoni, Ioannina, Grécia, 2023. Foto: Maria Vlachou
O artigo no jornal grego mencionava que
“parâmetros como o grau de melhoria observado nos pacientes, que tipo de intervenção
(ou seja, assistir a uma apresentação de teatro ou participar num grupo de
terapia de prática teatral) se revelou mais eficaz, quantos pacientes
abandonaram, por que razões e quais as suas características serão avaliadas com
critérios científicos.” Considerando as minhas principais preocupações, tudo
ainda me parecia demasiado absurdo, mas, afinal, este era apenas um breve
artigo de jornal. Ao ler o documento que apresenta o projecto-piloto português, escrito por Mariana Mata Passos e Patrícia Deus Claudino da
associação cultural Pó de Vir a Ser, não encontrei referências específicas à
avaliação – nem tanto em relação à evolução dos pacientes, mas, principalmente,
quanto ao que um desenvolvimento positivo ou negativo para cada um deles nos
diria sobre o próprio “remédio”. Esta é a parte que me parece mais problemática
relativamente ao “uso” da cultura e das artes neste contexto.
Neste documento lê-se (p.11) que “A
investigação científica internacional sobre Prescrição Cultural ilustra a melhoria
na saúde mental e bem estar em diferentes parâmetros: aumento do nível de
energia; maior vitalidade, alegria e prazer na vida; melhoria no
estabelecimento de relações interpessoais e competências; melhor auto-estima; aumento
na motivação; melhor capacidade de compreensão das suas necessidades; melhor
capacidade de auto-cuidado; maior proximidade ao mercado de trabalho.” Para
além destes benefícios, outro documento, Libraries on Prescription, escrito pelas
colegas gregas Lida Tsene e Dina Ntziora, também refere que (pp.4-5):
- Os programas de referência social e cultural podem ajudar os indivíduos a construir ligações sociais e redes de apoio, que são cruciais para o bem-estar mental.
- De acordo com “Art, Culture and the Brain” (2022), a participação em actividades culturais está associada ao bem-estar, a um sentido de coesão e mobilização, enquanto a saúde mental das pessoas que vivem em áreas em desenvolvimento pode melhorar através da exposição a actividades criativas e artísticas.
- Além disso, de acordo com Katherine Cotter, investigadora da Universidade da Pensilvânia, “museus e espaços de arte têm o potencial de afectar positivamente as pessoas, reduzindo o stress, criando experiências emocionais positivas e ajudando-as a se sentirem menos sozinhas e mais ligadas.”
Isto não é exactamente uma surpresa para os
profissionais da cultura e muitos de nós temos este tipo de evidência
empírica/pessoal. Também é útil ter dados científicos que apoiem esta evidência.
Mas será que podemos, realmente, dizer que se trata de uma espécie de
“receita”, de uma “regra”? Algo além e independente da vontade, capacidade,
agência e contexto de cada indivíduo? Num artigo intitulado “Could visiting a museum be the secret to a
healthy life?” (Visitar um museu poderia ser o segredo para uma vida saudável?),
Emma Dupuy refere que Mikaela Law, investigadora em psicologia da Universidade
de Auckland, na Nova Zelândia, e os seus colegas fizeram a revisão da
literatura científica acerca de estudos sobre a resposta fisiológica às artes
visuais e o seu efeito no stress auto-relatado. “Alguns dos estudos mencionados
no seu trabalho mostram que o contacto com obras de arte pode diminuir a
pressão arterial, a frequência cardíaca e o cortisol secretado na saliva. Tais
mudanças reflectem uma redução no estado de cautela do corpo, também chamado
stress. Essa mudança parece ser percepcionada pelo indivíduo, reflectida na
redução do stress sentido após a exposição. Outros estudos, por outro lado, não
observaram efeitos.” Isso também não é uma surpresa, pois não?
Alexandra Wilson, num artigo para o jornal The Critic sobre a mudança forçada da English National Opera de Londres para
Manchester, criticou os comunicados de imprensa da
organização, que se centravam repetidamente e intensamente na contribuição que
esta mudança terá para o bem-estar e a saúde pública dos habitantes locais. Em
primeiro lugar, comentou a ironia de tal afirmação, considerando os danos que
já foram causados ao estado mental de músicos altamente qualificados, que temem
pela sua subsistência, como resultado desta mudança. “É claro que a música
clássica traz, sem dúvida, muitos benefícios para a saúde e a felicidade das
pessoas. Ao nível mais básico, assistir a uma bela apresentação levantará provavelmente
o ânimo da maioria do público”, mas Wilson chama a isso de “um sub-produto
feliz”. Ela cita também a académica Eliane Glaser, que no seu livro Elitism:
A Progressive Defence escreve que “Ao transformar a cultura, a educação e o
jornalismo em arenas de relações públicas para combater a desigualdade, a
política desistiu de tentar melhorar a sociedade de qualquer forma organizada.”
E esta é também a questão que eu quero levantar.
Como já afirmei, não duvido dos benefícios
físicos, emocionais e intelectuais que a cultura e as artes podem trazer para as
pessoas e também para as diversas comunidades que estas formam. Os
participantes nas Libraries on Prescription relataram que
o programa lhes ofereceu a oportunidade de encontrar uma forma criativa de se
expressarem, de socializarem e de promoverem o seu bem-estar e saúde mental;
enriquecer criativamente o seu dia; sentir-se parte de uma equipa e ter
oportunidade de trabalhar em grupo; aumentar a sua confiança e contribuir para a
sua auto-melhoria (pp.14-15). Como profissional da cultura, porém, o meu foco
principal não é usar a cultura e as artes para abordar (e provar ser capaz de
resolver) questões como “a recuperação e o bem-estar dos pacientes com doenças
crónicas (hipertensão, diabetes), condições neurológicas, distúrbios cognitivos
ou problemas de saúde mental” (conforme mencionado no artigo de Emma Dupuy sobre a prescrição
de museus no Canadá). O meu foco principal não é lidar com as causas dos
problemas de saúde mental, referidas pelas nossas colegas portuguesas como “determinantes sociais da saúde” (p.15: rendimento disponível
e proteção social; educação; desemprego e precariedade laboral; condições de
vida no trabalho; insegurança alimentar; habitação, comodidades básicas e meio
ambiente; desenvolvimento na primeira infância; inclusão social e não
discriminação; conflito estrutural; acesso a serviços de saúde acessíveis e de
qualidade decente); ou falhas no sistema de saúde, como “a sobreprescrição
farmacológica, a ausência de recursos humanos nos centros de saúde que permitam
dar uma resposta complementar terapêutica, ao nível da intervenção psicológica,
a hiperutilização dos serviços” (p.9).
Como profissional da cultura, estou muito feliz
com todos os sub-produtos. Mas também estou muito consciente do meu lugar e da
minha contribuição para a rede cultural, educacional e social mais ampla dentro
da sociedade, da qual faço parte. E espero que cada profissional (médicos,
enfermeiros, terapeutas, assistentes sociais, professores, juízes, polícias,
etc.) faça a sua parte para cumprir os objectivos desta rede.
Uma vez que os governos e os profissionais de diferentes sectores parecem reconhecer o contributo da cultura, acredito que precisamos de ser claros sobre a natureza desse contributo e o papel específico dos profissionais da cultura. Assim, as perguntas que estão na minha mente neste momento são as seguintes:
- Deveriam os profissionais da cultura investir tempo, esforço e dinheiro para liderar programas-piloto que confirmarão as evidências científicas sobre “sub-produtos felizes”?
- Não estamos preocupados com o facto de, ao focarmos os sub-produtos, sermos solicitados a fornecer provas da nossa eficácia no tratamento de questões e objectivos que são tudo menos culturais e artísticos?
- Considerando o aparente consenso sobre a contribuição da cultura, não deveríamos estar a lutar contra o desinvestimento nas artes e nas humanidades, e o seu desaparecimento sistémico dos currículos escolares e universitários?
- Se a cultura e as artes nos dão ferramentas para nos tornarmos mais criativos e imaginativos, para alimentarmos o nosso espírito crítico, para imaginarmos um mundo melhor e o nosso lugar nele, não deveríamos concentrar-nos no acesso e na inclusão, a fim de garantir oportunidades de presença e participação a pessoas muito diversas?
- Não deveríamos estar a trabalhar para tornar as organizações culturais mais relevantes e acolhedoras para diferentes pessoas, com ou sem problemas de saúde e outras questões?
- Não deveríamos concentrar-nos mais na capacitação dos profissionais da cultura, a fim de compreendermos melhor conceitos como acesso, inclusão, equidade, democracia cultural e como estes conceitos podem afectar a forma como fazemos o nosso trabalho?
- Não deveríamos esforçar-nos para garantir que os profissionais da cultura (incluindo artistas e mediadores) tenham condições adequadas para realizar o seu trabalho?
- Não deveríamos preocupar-nos com a saúde mental dos próprios profissionais da cultura?
- Não deveríamos todos nós (cidadãos, profissionais de diferentes sectores e políticos) estar mais conscientes da necessidade de construir uma visão para o futuro e de compreender melhor o papel e a contribuição de cada sector na rede cultural, educacional e social mais ampla da qual fazemos parte?
Acredito que poder imaginar e construir um
mundo melhor deveria ser tarefa partilhada de todos os sectores que formam a
rede. Alcançar os nossos objetivos comuns será o resultado de colaboração,
reconhecendo a natureza específica da contribuição de cada um e da sua expertise.
A prescrição cultural, as suas razões e objectivos, suscitam-me sérias
preocupações. Agora que consegui expressá-las de forma mais organizada, estou
ansiosa para as discutir com as colegas envolvidas.
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