Wednesday, 3 January 2024

Cultura prescrita

Les Kurbas Theatre, Lviv, Ukraine, 2022. Foto: Adriano Miranda

Assistir a representações de peças antigas nos teatros gregos é uma experiência que me faz sempre pensar. Acho particularmente comovente o fluxo de pessoas que se dirigem ao teatro para assistir pela enésima vez às mesmas histórias que nos falam de amor, ódio, respeito, arrogância, sede pelo poder, guerra, justiça, vingança. Histórias escritas há muitos séculos sobre a natureza humana e tudo o que há de bom e de mau nela. Então, quando olho ao meu redor para as pessoas que enchem o teatro e, sobretudo, quando as vejo ir-se embora depois do espectáculo, muitas vezes me pergunto “E então? E agora?". Até que ponto as pessoas utilizam o “alimento” (food for thought) que lhes foi proporcionado para pensar sobre a vida contemporânea, sobre si mesmas e sobre os outros, o seu lugar no mundo e qual poderia ser a sua contribuição para um mundo melhor? Quando penso na sociedade contemporânea grega (e noutras sociedades), a forma como cuidamos (ou não cuidamos) uns dos outros, lembro-me que o poder não reside apenas na peça, mas também, e talvez até mais, no indivíduo e no que essa pessoa fará (ou não) com o que lhe foi dado.

Valorizo a cultura e as artes; valorizo a criatividade e a forma como ela questiona as nossas certezas e alimenta a nossa imaginação; gosto da forma como criamos comunidades baseadas em diferentes tipos de participação cultural. O meu trabalho diário é contribuir para uma sociedade onde, através da cultura e das artes, todos possam ter oportunidades de participar e de crescer, de sonhar e de contribuir para um mundo melhor e mais humano. Mas também sei que isso é o mais longe que posso ir. O resto cabe a cada indivíduo. É por isso que, há anos, comecei a questionar as declarações feitas por diferentes organizações culturais que contribuem para a coesão social, o bem-estar individual e colectivo, o entendimento intercultural, a tolerância, etc., etc., quando não vemos nenhum sinal de que algo do género esteja, realmente, a acontecer numa escala maior – a começar pela forma como as próprias organizações culturais são geridas por dentro. Algumas organizações culturais (nem todas, talvez nem mesmo a maioria) disponibilizam as “ferramentas”. Estou a falar daquelas organizações que estão conscientes da diversidade humana e no serviço que prestam às comunidades, com base nos princípios de acesso, inclusão e equidade. No entanto, elas fazem parte de uma rede cultural, educacional e social mais ampla, cujo “sucesso” reside na colaboração e nas interligações, e não apenas na Cultura.

A forma como a cultura e as artes têm sido frequentemente retratadas como “remédios” que resolverão todos os males na sociedade (injustiças, desigualdades, guerras e outros conflitos sociais) deixa-me normalmente desconfortável, por duas razões principais: porque parece ignorar a rede cultural, educativa e social mais ampla, que deve assumir-se como tal e tornar-se funcional, servindo uma visão comum para uma sociedade futura; e também porque atribui à cultura e às artes um propósito que não é o deles, em primeiro lugar.

No início de Novembro, participei numa conferência em Portugal onde a nossa colega Mariana Mata Passos, da associação cultural Pó de Vir a Ser, falou sobre um programa-piloto de “prescrição cultural” na região do Alentejo Central. Na sua breve apresentação, a cultura e as artes foram mencionadas associadas à “saúde mental”, ao “isolamento”, aos “centros de saúde”, aos “médicos”, às “prescrições médicas”. Dado que o tempo para debate foi bastante escasso, alguns de nós saímos da sala sentindo-nos confusos e perturbados. Dias depois, deparei-me com um artigo num jornal grego intitulado “No teatro e no museu com receita médica”. O título soou o alarme para mim. O próprio artigo descrevia algo semelhante à experiência portuguesa: um programa-piloto de prescrição cultural e a ambição de que, até 2025, todos os psiquiatras privados possam prescrever arte-terapias, com o objectivo de incluir a prescrição cultural no Sistema Nacional de Saúde. O que pode ser prescrito são actividades artísticas com duração de três meses ou a participação em espectáculos, filmes ou concertos pelo menos três vezes por mês, que os beneficiários poderão depois discutir, expressando os seus pensamentos e sentimentos. Tudo isso fez-me comentar no Facebook, com alguma ironia: “Se o paciente não melhorar, a culpa será do espectáculo ou será aumentada a dose?”. Colegas mais próximas destas iniciativas ou envolvidas em actividades similares ofereceram-se para falar sobre o assunto. Queria mesmo poder falar mais e melhor. Mas antes, fiz um pouco de trabalho-de-casa.

As minhas principais preocupações, como indicado no meu comentário no Facebook, têm a ver com os critérios usados pelos médicos para prescrever uma actividade ou um espectáculo específico e, principalmente, como os resultados podem ser interpretados em relação à qualidade ou “capacidade de cura” das actividades prescritas e, indo um pouco mais longe, o impacto que isto poderá ter (é suposto ter?) na avaliação e talvez também no financiamento da cultura e das artes.

Teatro de Dodoni, Ioannina, Grécia, 2023. Foto: Maria Vlachou

O artigo no jornal grego mencionava que “parâmetros como o grau de melhoria observado nos pacientes, que tipo de intervenção (ou seja, assistir a uma apresentação de teatro ou participar num grupo de terapia de prática teatral) se revelou mais eficaz, quantos pacientes abandonaram, por que razões e quais as suas características serão avaliadas com critérios científicos.” Considerando as minhas principais preocupações, tudo ainda me parecia demasiado absurdo, mas, afinal, este era apenas um breve artigo de jornal. Ao ler o documento que apresenta o projecto-piloto português, escrito por Mariana Mata Passos e Patrícia Deus Claudino da associação cultural Pó de Vir a Ser, não encontrei referências específicas à avaliação – nem tanto em relação à evolução dos pacientes, mas, principalmente, quanto ao que um desenvolvimento positivo ou negativo para cada um deles nos diria sobre o próprio “remédio”. Esta é a parte que me parece mais problemática relativamente ao “uso” da cultura e das artes neste contexto.

Neste documento lê-se (p.11) que “A investigação científica internacional sobre Prescrição Cultural ilustra a melhoria na saúde mental e bem estar em diferentes parâmetros: aumento do nível de energia; maior vitalidade, alegria e prazer na vida; melhoria no estabelecimento de relações interpessoais e competências; melhor auto-estima; aumento na motivação; melhor capacidade de compreensão das suas necessidades; melhor capacidade de auto-cuidado; maior proximidade ao mercado de trabalho.” Para além destes benefícios, outro documento, Libraries on Prescription, escrito pelas colegas gregas Lida Tsene e Dina Ntziora, também refere que (pp.4-5):

  • Os programas de referência social e cultural podem ajudar os indivíduos a construir ligações sociais e redes de apoio, que são cruciais para o bem-estar mental.
  • De acordo com “Art, Culture and the Brain” (2022), a participação em actividades culturais está associada ao bem-estar, a um sentido de coesão e mobilização, enquanto a saúde mental das pessoas que vivem em áreas em desenvolvimento pode melhorar através da exposição a actividades criativas e artísticas.
  • Além disso, de acordo com Katherine Cotter, investigadora da Universidade da Pensilvânia, “museus e espaços de arte têm o potencial de afectar positivamente as pessoas, reduzindo o stress, criando experiências emocionais positivas e ajudando-as a se sentirem menos sozinhas e mais ligadas.”

Isto não é exactamente uma surpresa para os profissionais da cultura e muitos de nós temos este tipo de evidência empírica/pessoal. Também é útil ter dados científicos que apoiem esta evidência. Mas será que podemos, realmente, dizer que se trata de uma espécie de “receita”, de uma “regra”? Algo além e independente da vontade, capacidade, agência e contexto de cada indivíduo? Num artigo intitulado “Could visiting a museum be the secret to a healthy life?” (Visitar um museu poderia ser o segredo para uma vida saudável?), Emma Dupuy refere que Mikaela Law, investigadora em psicologia da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e os seus colegas fizeram a revisão da literatura científica acerca de estudos sobre a resposta fisiológica às artes visuais e o seu efeito no stress auto-relatado. “Alguns dos estudos mencionados no seu trabalho mostram que o contacto com obras de arte pode diminuir a pressão arterial, a frequência cardíaca e o cortisol secretado na saliva. Tais mudanças reflectem uma redução no estado de cautela do corpo, também chamado stress. Essa mudança parece ser percepcionada pelo indivíduo, reflectida na redução do stress sentido após a exposição. Outros estudos, por outro lado, não observaram efeitos.” Isso também não é uma surpresa, pois não?

Alexandra Wilson, num artigo para o jornal The Critic sobre a mudança forçada da English National Opera de Londres para Manchester, criticou os comunicados de imprensa da organização, que se centravam repetidamente e intensamente na contribuição que esta mudança terá para o bem-estar e a saúde pública dos habitantes locais. Em primeiro lugar, comentou a ironia de tal afirmação, considerando os danos que já foram causados ao estado mental de músicos altamente qualificados, que temem pela sua subsistência, como resultado desta mudança. “É claro que a música clássica traz, sem dúvida, muitos benefícios para a saúde e a felicidade das pessoas. Ao nível mais básico, assistir a uma bela apresentação levantará provavelmente o ânimo da maioria do público”, mas Wilson chama a isso de “um sub-produto feliz”. Ela cita também a académica Eliane Glaser, que no seu livro Elitism: A Progressive Defence escreve que “Ao transformar a cultura, a educação e o jornalismo em arenas de relações públicas para combater a desigualdade, a política desistiu de tentar melhorar a sociedade de qualquer forma organizada.”

E esta é também a questão que eu quero levantar.

Como já afirmei, não duvido dos benefícios físicos, emocionais e intelectuais que a cultura e as artes podem trazer para as pessoas e também para as diversas comunidades que estas formam. Os participantes nas Libraries on Prescription relataram que o programa lhes ofereceu a oportunidade de encontrar uma forma criativa de se expressarem, de socializarem e de promoverem o seu bem-estar e saúde mental; enriquecer criativamente o seu dia; sentir-se parte de uma equipa e ter oportunidade de trabalhar em grupo; aumentar a sua confiança e contribuir para a sua auto-melhoria (pp.14-15). Como profissional da cultura, porém, o meu foco principal não é usar a cultura e as artes para abordar (e provar ser capaz de resolver) questões como “a recuperação e o bem-estar dos pacientes com doenças crónicas (hipertensão, diabetes), condições neurológicas, distúrbios cognitivos ou problemas de saúde mental” (conforme mencionado no artigo de Emma Dupuy sobre a prescrição de museus no Canadá). O meu foco principal não é lidar com as causas dos problemas de saúde mental, referidas pelas nossas colegas portuguesas como “determinantes sociais da saúde” (p.15: rendimento disponível e proteção social; educação; desemprego e precariedade laboral; condições de vida no trabalho; insegurança alimentar; habitação, comodidades básicas e meio ambiente; desenvolvimento na primeira infância; inclusão social e não discriminação; conflito estrutural; acesso a serviços de saúde acessíveis e de qualidade decente); ou falhas no sistema de saúde, como “a sobreprescrição farmacológica, a ausência de recursos humanos nos centros de saúde que permitam dar uma resposta complementar terapêutica, ao nível da intervenção psicológica, a hiperutilização dos serviços” (p.9).

Como profissional da cultura, estou muito feliz com todos os sub-produtos. Mas também estou muito consciente do meu lugar e da minha contribuição para a rede cultural, educacional e social mais ampla dentro da sociedade, da qual faço parte. E espero que cada profissional (médicos, enfermeiros, terapeutas, assistentes sociais, professores, juízes, polícias, etc.) faça a sua parte para cumprir os objectivos desta rede.

Uma vez que os governos e os profissionais de diferentes sectores parecem reconhecer o contributo da cultura, acredito que precisamos de ser claros sobre a natureza desse contributo e o papel específico dos profissionais da cultura. Assim, as perguntas que estão na minha mente neste momento são as seguintes:

  • Deveriam os profissionais da cultura investir tempo, esforço e dinheiro para liderar programas-piloto que confirmarão as evidências científicas sobre “sub-produtos felizes”?
  • Não estamos preocupados com o facto de, ao focarmos os sub-produtos, sermos solicitados a fornecer provas da nossa eficácia no tratamento de questões e objectivos que são tudo menos culturais e artísticos?
  • Considerando o aparente consenso sobre a contribuição da cultura, não deveríamos estar a lutar contra o desinvestimento nas artes e nas humanidades, e o seu desaparecimento sistémico dos currículos escolares e universitários?
  • Se a cultura e as artes nos dão ferramentas para nos tornarmos mais criativos e imaginativos, para alimentarmos o nosso espírito crítico, para imaginarmos um mundo melhor e o nosso lugar nele, não deveríamos concentrar-nos no acesso e na inclusão, a fim de garantir oportunidades de presença e participação a pessoas muito diversas?
  • Não deveríamos estar a trabalhar para tornar as organizações culturais mais relevantes e acolhedoras para diferentes pessoas, com ou sem problemas de saúde e outras questões?
  • Não deveríamos concentrar-nos mais na capacitação dos profissionais da cultura, a fim de compreendermos melhor conceitos como acesso, inclusão, equidade, democracia cultural e como estes conceitos podem afectar a forma como fazemos o nosso trabalho?
  • Não deveríamos esforçar-nos para garantir que os profissionais da cultura (incluindo artistas e mediadores) tenham condições adequadas para realizar o seu trabalho?
  • Não deveríamos preocupar-nos com a saúde mental dos próprios profissionais da cultura?
  • Não deveríamos todos nós (cidadãos, profissionais de diferentes sectores e políticos) estar mais conscientes da necessidade de construir uma visão para o futuro e de compreender melhor o papel e a contribuição de cada sector na rede cultural, educacional e social mais ampla da qual fazemos parte?

Acredito que poder imaginar e construir um mundo melhor deveria ser tarefa partilhada de todos os sectores que formam a rede. Alcançar os nossos objetivos comuns será o resultado de colaboração, reconhecendo a natureza específica da contribuição de cada um e da sua expertise. A prescrição cultural, as suas razões e objectivos, suscitam-me sérias preocupações. Agora que consegui expressá-las de forma mais organizada, estou ansiosa para as discutir com as colegas envolvidas.


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