Claudia Roth, Ministra de Estado para a Cultura alemã, na Belinale. Foto: Andreas Rentz | Getty Images (retirada do The Guardian) |
Há alguns dias, estive num encontro internacional, onde o assunto era museus e democracias em declínio. Ouvimos falar dos infortúnios dos directores de museus polacos, amplamente divulgados na imprensa internacional (exemplos desde 2017: aqui, aqui, aqui, aqui, aqui); ouvimos falar de museus na Hungria, que deveriam “interpretar para o povo as vontades do governo” ou a serem censurados por causa de um projecto de arte participativa que representava o Presidente ou, mais recentemente, a verem um director ser despedido por ignorar a lei contra a “promoção da homossexualidade”, na qual ele próprio votou quando era deputado. Também ouvimos falar da Holanda, onde a extrema-direita tem vindo a atacar há já algum tempo as narrativas dos museus e que está agora a tentar formar um governo, depois de vencer as eleições em Novembro.
Um dos pontos que surgiram durante a discussão é que os
resultados eleitorais recentes – na Holanda, mas também em Portugal –, que
confirmaram a ascensão da extrema-direita, não foram uma surpresa. Ao mesmo
tempo, as tácticas fascistas e populistas também não são uma surpresa, têm sido
estudadas e são conhecidas há décadas. O que é bastante surpreendente para mim
é como podemos ver certas coisas a aproximar-se, ou realmente a acontecer, e
não fazer nada. Sentimos que isto tem algo a ver connosco, a nível individual e
profissional, ou nem por isso? Como é viver numa democracia em declínio? Na
verdade, será que percepcionamos a situação como tal ou estamos “embalados”,
como disse um colega, a executar as nossas tarefas diárias no nosso “business
as usual”?
A nossa discussão tornou-se mais complexa e desafiante
quando uma colega síria, que vive na Alemanha há dez anos, perguntou se a
Alemanha é considerada uma democracia em declínio. Já tínhamos pensado nisso
antes? Porque o que mais podemos dizer sobre um estado democrático onde as
pessoas (incluindo artistas e profissionais da cultura) são criticadas ou
censuradas por falarem sobre o genocídio em Gaza ou por condenarem as políticas
israelitas (ver notícias no final desta página),
quando os profissionais da cultura precisam de autorização para falar com os media
ou quando Claudia Roth, Ministra de Estado para a Cultura, presente na
Berlinale, insiste que estava
apenas a aplaudir a metade israelita, mas não a metade palestiniana, de uma
dupla de cineastas que ganhou o prémio de melhor documentário por “No Other
Land”. “Vim para a Europa em busca de liberdade”, disse-nos a nosso colega,
“e vejo isto”.
Deveríamos também referir aqui a extensa proibição de
livros nos EUA, outro farol da democracia em declínio, impulsionada por
políticos conservadores e grupos ultra-conservadores, como o Moms for Liberty. “Eating away our democracy” (Destruindo
a nossa democracia”) foi o título usado pelo Guardian ao reportar sobre esta
situação em Setembro passado. No início do mês, li um artigo sobre os
próprios estudantes a lutar contra esse ataque à democracia. E fez-me
pensar mais uma vez no silêncio generalizado no sector cultural quando o
lançamento do livro “No meu Bairro”, em Lisboa, foi interrompido
por manifestantes porque optou por uma linguagem inclusiva. Tanto quanto
sei, apenas duas organizações culturais reagiram publicamente na altura: LU.CA
- Teatro Luís de Camões, lembrando discretamente que o livro estava disponível
na sua pequena biblioteca; e o Teatro do Bairro Alto, vizinho da livraria onde
o livro foi lançado, com um post a manifestar a sua solidariedade e a aplaudir
o uso de linguagem inclusiva.
Numa reunião recente com colegas, ouvi falar de dois casos
de diretores de escolas que decidiram unilateralmente que os alunos não podem
optar por discutir questões LGBT em projectos culturais, porque “Os pais não querem
isso” ou porque “Não temos este tipo de problemas aqui”. Numa das minhas
formações, uma colega reclamou que não é fácil escrever um comunicado de
imprensa, não se sabe que palavras usar. Numa outra formação, outra colega
partilhou connosco que o seu filho chega a casa chateado pela complexidade de
todas as questões sociais e culturais com que se tem de lidar hoje.
O mundo não é o lugar simplista que os fascistas e os
populistas pintam para nós – precisamente porque sabem o quanto muitos de nós
ansiamos por isso, o quanto nos sentimos ameaçados e cansados por qualquer
coisa que exija mais tempo, atenção e cuidado do que um título de jornal
sensacionalista. O mundo é, realmente, complexo e essa complexidade pode causar
desconforto. Talvez uma das maiores responsabilidades que nós que trabalhamos
na Cultura temos hoje seja ajudar a sociedade a abraçar este desconforto,
descobrir como a diversidade pode enriquecer as nossas vidas, quão mais
interessante e entusiasmante o nosso mundo pode ser graças às nuances. Em vez
disso, muitos de nós expressamos frustração, impaciência e irritação porque o
mundo – e o nosso trabalho – não é simples, não é o que costumava ser. Assim,
deixamos passar sem contestação tantos pequenos sinais diários de uma
democracia em declínio.
No dia 11 de Março, segunda-feira a seguir às eleições em
Portugal, estava numa formação sobre mediação cultural. Estava curiosa para ver
se alguém mencionaria os resultados das eleições. Estávamos a meio da manhã, a
discutir os valores das Bibliotecas de Lisboa (democratização do acesso à
cultura e ao conhecimento; promoção da criatividade, participação e pensamento
crítico; cidadania, diversidade, inclusão, sensibilidade artística…), quando
uma jovem colega pediu para falar. Disse-nos que trabalha todos os dias por
esses valores e princípios, e que a sociedade lhe deu uma resposta que foi como
um murro no estômago. Pensei: quantos mais profissionais da cultura sentiram o
mesmo, um murro no estômago que poderia fazer-nos questionar porque é que nos
levantamos todas as manhãs e vamos trabalhar, porque é que fazemos o que
fazemos. O nosso trabalho faz sentido se não for para sermos melhores pessoas e
sabermos cuidar uns dos outros? E até que ponto estamos preparados e
conscientes sobre os desafios que temos pela frente quando, com 50 deputados de
extrema-direita no Parlamento, o discurso de ódio e as discriminações de todos
os tipos se tornarem “naturais” e legitimados?
Mais leituras:
Dias depois das eleições presidenciais portuguesas em 2021,
escrevi um artigo intitulado no Público, intitulado “A
curadoria do desconforto”. Acho que o meu questionamento persiste.
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