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Um recente artigo do NPR, intitulado Italy's 'Cultural Allowance' For Teens Aims To Educate, Counter Extremism (O subsídio
de cultura para os adolescentes na Itália pretende educar, combater o
extremismo) demonstra a
confusão que existe, a vários níveis e meios, em relação ao acesso à cultura e
à cultura como panaceia para vários males deste mundo.
O título não é um exagero do jornal. Foi o próprio
Primeiro-Ministro italiano que, ao anunciar este subsídio de cultura (€500 para
cada jovem com 18 anos gastar em produtos culturais), pouco depois dos ataques
terroristas em Paris, em Novembro 2015, afirmou: “Destroem estátuas, nós
protegemo-las. Queimam livros, somos o país das
bibliotecas. Concebem o terror, respondemos com cultura."
Destroem estátuas, nós
protegemo-las”... Dito pelo
Primeiro-Ministro do país que no início deste ano recebeu o Presidente de uma
República Islâmica e que - para acomododar as sensibilidades do distinto
convidado, mas sem se saber muito bem por decisão de quem - cobriu as estátuas
nuas nos museus (aqui e aqui). O convidado é o Presidente de um país que autoriza execuções públicas, manda
os dissidentes e defensores dos direitos humanos para prisões horríveis e confisca
os passaportes de intelectuais e activistas. O que é que isto diz da nossa
Cultura?
A medida
anunciada pelo governo italiano foi por muitos aplaudida. As palavras e
aspirações do Primeiro-Ministro causaram, como é natural, muito boa impressão e
foram consideradas um sinal de aposta na Cultura, num momento em que vários
outros governos desinvestem. Penso que a iniciativa, tal como outras da mesma
natureza antes dela, levanta várias questões:
Em primeiro
lugar, o que é que a Cultura representa para os políticos? Qual é a visão que eles
têm sobre ela a nível da sua própria vida e prática diária (como responsáveis
políticos, mas também como pais, profissionais de diferentes áreas, cidadãos
comuns) e a nível do papel que esta pode ter na sociedade? Será a Cultura uma forma
de estar na vida consciente, praticada ou uma espécie de pílula contra os males
do mundo (do género “Jovem vai ao concerto de Justin Bieber = Jovem dissuadido de
seguir o Islão radical”)?
Em segundo
lugar - partindo do princípio que se reconhece o potencial contributo da
Cultura na construção de uma sociedade mais humana, justa, crítica, tolerante, democrática
-, qual seria o objectivo de um investimento na promoção da participação
cultural? Lê-se na legenda da fotografia que ilustra o artigo do NPR que o
objectivo do subsídio italiano é “ajudar um número crescente de jovens
imigrantes a assimilar”. E ainda, o alerta de Barak Mendelsohn, senior fellow no Foreign Policy Research
Institute em Filadélfia e perito no combate ao extremismo: “É possível que a
Lady Gaga seja exactamente o que vai tornar alguém furioso. Isso não significa
que eles aderem aos vossos valores.” Qual é o objectivo, então, da participação
cultural e dos ‘encontros’ que esta pode proporcionar? A assimilação do
“outro”, o desaparecimento das diferenças, a prevalência de uma mono-cultura?
Ou a celebração da diversidade cultural, dos princípios que nos unem e também
da “contaminação” mútua?
Em terceiro
lugar, este tipo de investimento na cultura – no formato de “subsídio” (como
foi, por exemplo, o Vale Cultura no Brasil ou poderá vir a ser o Cartão +Cultura, anunciado pelo governo português), um investimento isolado, sem contexto, põe ênfase no dinheiro como
principal barreira à participação cultural ou como principal estímulo para a
sua procura. E insiste em ignorar uma série de outros factores – sociais,
intelectuais, psicológicos – que mantém a maioria das pessoas afastadas ou
indiferentes. Até quando estaremos a concentrar os nossos esforços na falsa
questão do dinheiro em vez de na tarefa, mais complexa e continuada, de
reflectir e trabalhar sobre aquelas que constituem barreiras essenciais para
quem tem e para quem não tem dinheiro? Com todas as consequências que esta
exclusão traz para as nossas sociedades (pelo menos, para quem acredita no
contributo da Cultura na construção dessas sociedades) e para a qualidade das
nossas democracias.
O programa "Ahlan" na Vancouver Art Gallery (imagem gentilmente cedida pelo Institute of Canadian Citizenship / Kenin Hill) |
Pouco a
pouco, fico agora a conhecer melhor o trabalho do Institute for Canadian Citizenship (ICC). A notícia que as cerimónias de cidadania (citizenship ceremonies, em que é atribuída a cidadania a novos
canadianos) têm lugar em museus tinha chamado a minha atenção há uns anos. O
simbolismo desta escolha de lugar significou muito para mim. Notícias mais
recentes sobre o programa “Ahlan”, para a inclusão dos refugiados, e sobre o Cultural Access Pass fizeram-me procurar mais
informações.
“A
diversidade é uma realidade. A inclusão é uma escolha”, lê-se na homepage do
ICC. E a sua missão: “Inspirar os Canadianos a serem inclusivos, abraçar novas
ideias, praticar uma cidadania activa e sentirem-se donos da nossa cultura e
espaços colectivos”. A Cultura é um factor presente, activo, na forma como o
ICC procura prosseguir a sua missão. Não é apenas uma teoria nem, muito menos, é
dada como pílula. E até é muito tentador querer acreditar que a eleição de
Justin Trudeau como Primeiro-Ministro possa ser também o resultado desta
Cultura; um resultado da prática desta Cultura (se bem que falta ainda ver como vai receber um dia o Presidente do Irão). De qualquer forma, parece-me
ser um caso que valerá a pena estudar melhor porque coloca questões muito mais
profundas e fundamentais do que a distribuição - desapoiada, descontextualizada
- de subsídios ou de entradas gratuitas.
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