Monday 11 October 2010

A liberdade de expressão

No passado dia 4 de Outubro tive a oportunidade de assistir ao simpósio Identidade, Liberdade e Violência, que juntou na biblioteca municipal de Santa Maria da Feira a iraniana Shirin Ebadi, Prémio Nobel da Paz em 2003, e o dinamarquês Kurt Westergaard, autor do cartoon de Maomé que provocou uma grande onda de violência em 2006.

(Foto: NFactos - Jornal Expresso)

Confesso que ia ao simpósio com grandes expectativas. A liberdade de expressão (e os seus limites) é algo em que penso frequentemente sem poder chegar a conclusões definitivas, que possam servir para tudo. Parece que, quando se fala nisso, cada caso é um caso. Assim, tinha muita curiosidade em saber que rumo ia levar este debate entre um artista que ‘ousou’ representar o profeta Maomé e uma muçulmana praticante, defensora dos direitos humanos.

O debate ficou aquém das minhas expectativas. Shirin Ebadi e Kurt Westergaard fizeram duas intervenções paralelas. E tanto o moderador, o jornalista Carlos Magno, como o público (que incluía alguns jornalistas) deixaram passar despercebida (ou não perceberam mesmo) uma afirmação de Shirin Ebadi que poderia ter resultado num cruzamento das duas comunicações e num debate interessante. Shirin Ebadi disse claramente: “Na Convenção dos Direitos Humanos a liberdade de expressão é garantida a todos, mas existem excepções: quando se trata de propaganda racista, ódio ou incentivo à guerra. Assim, um cartoon que representa o profeta Maomé com uma bomba no lugar do turbante constitui uma violação dos Direitos Humanos. E a reacção de uma parte do mundo muçulmano ao referido cartoon também.” Esta afirmação foi, de alguma forma, ‘ignorada’. Tanto Carlos Magno como Kurt Westergaard referiram-se mais que uma vez ao choque das culturas, ao conflito entre o cristianismo e o islão, à necessidade de defendermos o nosso modo (europeu) de viver.

Desde aí, tenho estado a pensar que, em vez de incidentes como o do cartoon servirem para darmos mais um passo em direcção ao encontro do ‘outro’, continuamos a optar por uma interpretação simplista e conveniente e de falar de um choque entre culturas. Estou eu, europeia e cristã, em conflito com Shirin Ebadi, iraniana e muçulmana? Não se bate ela, muito mais do que eu, pela liberdade de expressão? Não é este um valor que partilhamos, que nos define e nos une?

Voltei a ler excertos de um livro que tinha lido no ano passado e do qual tinha gostado muito, porque o considerei esclarecedor e equilibrado. Chama-se La peur des barbares: au-delà du choc des civilisations (editado pela editora brasileira Vozes com o título O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações) e foi escrito pelo filósofo búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov. Os capítulos do livro são: Barbárie e civilização; As identidades colectivas; A guerra dos mundos; Navegando entre escolhos (aqui faz a análise de acontecimentos como o assassínio do realizador holandês Theo Van Gogh, a publicação dos cartoons de Maomé pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten ou o discurso do Papa Bento XVI na Universidade Ratisbon na Alemanha); Identidade europeia.

Diz, então, Todorov no seu primeiro capítulo: “Civilizado é, sempre e em qualquer lugar, quem pode reconhecer totalmente a substância humana dos outros. Assim, uma pessoa para se tornar civilizada tem que atravessar duas fases: na primeira, descobre que os outros têm modos de viver diferentes do nosso; na segunda, aceita considerá-los portadores da mesma substância humana que a sua.” E continua: “Tornar compreensível para os outros uma identidade alheia, individual ou colectiva, é um acto de civilização, porque assim se alarga o ciclo da humanidade; deste modo, intelectuais, filósofos e artistas contribuem para o recuar da barbárie.”

Conhecer o ‘outro’ significa ao mesmo tempo saber respeitá-lo. E respeitar significa saber auto-regular-se. Não significa negarmos os nossos direitos (como o da liberdade de expressão), mas aprender a exercê-los com sentido de responsabilidade. “A responsabilidade limita a liberdade”, diz Todorov. Entre um direito e o seu exercício existe um longo caminho, em que são consideradas as eventuais consequências do mesmo dentro de um determinado contexto.

Os cartoons publicados pelo jornal Jyllands-Posten em Setembro de 2005 tinham sido uma encomenda do editor de cultura Flemming Rose, uma espécie de manifesto contra a auto-censura provocada pelo medo dos muçulmanos. Vieram numa altura em que na sociedade dinamarquesa eram cada vez mais evidentes os sentimentos xenófobos, e em particular anti-muçulmanos. Quatro anos antes, as eleições legislativas tinham resultado numa coligação, apoiada no Partido do Povo da Dinamarca, que reclamava “A Dinamarca aos Dinamarqueses”, “O Islão é um carcinoma, uma organização terrorista”, “Existe apenas uma cultura, a nossa”. Assim, existe, por um lado, o direito de um cartoonista de criticar e provocar através da sua arte (o que é a arte do cartoon se não a crítica através da provocação?) e, por outro, a responsabilidade que traz para o editor de um jornal de grande tiragem o exercício da liberdade de expressão dentro de um determinado contexto.

Toda esta problemática demonstra um choque entre culturas? Poderíamos alguma vez afirmar que entre os europeus e/ou os cristãos não se registam actos bárbaros e entre os asiáticos (neste caso) e/ou os muçulmanos actos civilizados? Não será, por isso, mais correcto, considerando a definição de Todorov, falarmos de um choque entre pessoas civilizadas e menos civilizadas, independentemente da sua nacionalidade ou religião?

Em jeito de epílogo: li na internet que em Fevereiro de 2006 o mesmo editor de cultura, Flemming Rose, disse à CNN que o seu jornal iria publicar cartoons satíricos que faziam referência ao Holocausto e que iriam ser publicados por um jornal iraniano. O Jyllands-Posten estava a tentar contactar esse jornal para que a publicação fosse simultânea. Mais tarde nesse mesmo dia o redactor-chefe do jornal dinamarquês informou que em caso algum iriam publicar os cartoons do Holocausto e no dia seguinte anunciou que Flemming Rose ia tirar uma licença por tempo indefinido.



Nota a 18 de Outubro:
O Público publicou hoje uma notícia intitulada Cartoon de orgia da família real leva a fecho de exposição na Dinamarca. Os artistas falam de censura, lembram o caso do cartoon de Maomé e afirmam: "A Dinamarca pretende incentivar a liberdade de expressão e defendeu a publicação de um cartoon que atingiu milhões de muçulmanos, mas quando se trata da sua realeza a história é diferente". E a resposta do director do museu: "Da mesma forma que um editor decide o que é publicado num jornal, o responsável do museu tem a última palavra em relação aos trabalhos de uma exposição." Estou curiosa em ver de que forma a sociedade dinamarquesa vai reagir ao encerramento desta exposição. As analogias com o caso do cartoon são mais que muitas.

2 comments:

Anonymous said...

O presente post fez-me recordar um caso decidido por um tribunal Sul Africano sobre uma t-shirt que parodiava o rótulo da Black Label Carling Beer substituindo-a por Black Labour White Guilt (ver t-shirt aqui). Independentemente do problema relacionado com a marca registada, realmente interessante é uma das conclusões retiradas neste caso, e cito “A sociedade que se leva demasiado a sério arrisca-se a reprimir as suas tensões e a tratar cada exemplo de irreverência como uma ameaça à sua existência.”. O Tribunal classificou aquele conteúdo como Paródia e como assentando a sua legitimidade na liberdade de expressão, mesmo perante o facto de o apartheid ser um tema extremamente sensível na África do Sul e de ter sido alegado que a t-shirt rasava um discurso de ódio que poderia instigar à violência.
Os direitos fundamentais apenas podem ser limitados no seu escopo se, do lado oposto, encontrarmos um outro direito fundamental que pode vir a ser contraído, de forma inadmissível, pelo exercício do primeiro. Assim sendo, na minha opinião, a liberdade de criação artística, que é também um direito fundamental, só deve encontrar o limite, no que respeita ao seu conteúdo, quando for susceptível de ofender outro direito fundamental. Quando pensamos em liberdade de expressão e liberdade de criação artística devemos equacionar que ambas são corolário da democracia moderna que proíbe, por exemplo, em Portugal, a formação de organizações de ideologia racista ou fascista, já que a probabilidade de incitamento a perturbações de ordem pública e o risco de desvalorização de direitos humanos e valores universalmente reconhecidos, enfim, da mentalidade maioritária numa comunidade, torna-se real.
O mesmo post fez-me ainda recordar um sacerdote que afirmou que se Deus é infinitamente bom, certamente não se ofende quando nos rimos dele.
Em conclusão, porque é suposto fazer um comentário e não um post:
- a criação artística deve, parece-me, ser tão livre quanto a liberdade de expressão em sentido estrito, o que significa que só pode ser silenciada ou limitada se for apta a pôr em risco o respeito por direitos fundamentais de forma a poder alterar os valores em que assenta uma determinada comunidade ou passível de provocar, de forma séria e realista, perturbações na ordem pública;
- se uma criação artística inclui conteúdos chocantes outra questão se coloca é a de saber como proteger os “consumidores” e as classes mais sensíveis (como os menores) de chegarem até ou de serem expostos àqueles conteúdos caso não o desejem ou não se mostre adequado, mas o direito de o artista criar exactamente o que pretende com o seu próprio limite criativo é, obviamente, uma questão que deve ser subsumida aos direitos à liberdade de expressão e de criação artística que devem ser, em todos os casos diferentes dos acima descritos, respeitados.

M Sebastião

Maquiavel said...

Quando se têm objectivos pré-definidos, nada melhor do que ignorar frases de elevada sapiência e veracidade, para continuar a martelar no "choque de civilizaçöes".

Quando aos defensores da liberdade dos cartunistas que agora berram pela "indecëncia"... noda, comam do próprio remédio, já que mostraram o que säo, que é altamente hipócritas!