A relação de muitas pessoas com o sector cultural, talvez da maioria, é aquela que John Holden descreve, na página 32 do seu texto Capturing Cultural Value, como non-use values (valores de não-utilização). Ou seja, apreciam o facto dele existir (existence value), independentemente de usufruírem ou não; mantêm em aberto a possibilidade de o utilizar no futuro, apesar de não o usufruírem no presente (option value); acham importante legar algo a gerações futuras (bequest value).
Assim, enquanto estava a ler uma série de textos sobre o valor da cultura e o seu financiamento, perguntava-me cada vez mais: fará sentido continuarmos a centrar o debate no como provar o valor da cultura? É disso que precisamos de convencer as pessoas – públicos, não-públicos, políticos, patrocinadores -, do ‘valor da cultura’? Alguém o contesta?
A cultura tem um valor próprio, em grande parte intangível, imensurável. A cultura toca-nos, maravilha-nos, faz-nos crescer como pessoas, torna-nos mais tolerantes e exigentes, menos ignorantes e arrogantes. Faz-nos pensar em nós e no mundo. A forma como cada um de nós vive esta relação é muito pessoal; e cada um de nós pode falar por si. Esses testemunhos, muitas vezes registados, não constituem propriamente ‘provas’, mas ajudam-nos a percebermos, e a mostrarmos a outros, como é que a oferta cultural é recebida, entendida e sentida.
Quando debatemos o financiamento para o sector cultural, raramente usamos, então, este género de argumentos. Porque não são fáceis de ‘provar’ e porque parece-nos que não são suficientes. Não são esses os indicadores esperados. No entanto, na nossa ‘apologia’ recorremos frequentemente aos resultados dos ‘efeitos colaterais’ da cultura, ou seja, aos relacionados com a economia, a regeneração de centros urbanos, os problemas sociais, de saúde etc. Estes existem e já foram provados em variadíssimos relatórios.
Parece-me, no entanto, que não é com base neles que se deveria avaliar a cultura em geral e as artes em particular. A monitorização desses resultados compete aos agentes que representam cada uma dessas áreas, que interagem com o sector cultural por considerarem a interacção benéfica. Penso que ao sector cultural compete provar que procura e consegue criar pontes com estes outros sectores, para que a oferta possa ser mais divulgada, mais acessível e mais usufruída, de modo a que cada vez mais pessoas possam ser ‘confrontadas’ com o seu valor intrínseco – aquele que é difícil de provar e de medir, mas que cada pessoa sente, à sua maneira, quando vive a experiência. É nestes termos, na minha opinião, que deverá ser debatido e avaliado o valor do sector cultural. E é também com base neles que deveriam ser pensados os critérios para financiamento.
Quando se pensa na distribuição dos apoios, parece-me que, grosso modo, poderíamos identificar três tipos de beneficiários: os artistas que trabalham individualmente, que produzem; os artistas que têm uma estrutura à sua volta; as instituições culturais.
Aos artistas compete criar. Criar arte de excelência. E o Estado deve garantir as condições para isso. O artista não cria para o bem da sociedade. Cria porque esta é a sua forma de respirar, de comunicar. Não lhe compete provar que a sua arte ajuda a resolver problemas de saúde ou sociais ou outros. A decisão de atribuir financiamento ou não deveria ser baseada na qualidade do seu trabalho. No entanto, parece-me legítimo esperar que um artista financiado pelo Estado esteja aberto para colaborar com os mediadores (educação, outreach, comunicação) que procuram abrir o caminho para o público chegar à sua arte. Os públicos, os políticos, os patrocinadores dificilmente atribuem valor a algo cuja existência ignoram ou a algo que lhes é estranho, incompreensível, por isso aparentemente inútil e às vezes assustador.
Neste contexto, deveríamos dar particular atenção ao medo e ao desconforto que as palavras ‘criação contemporânea’ exercem sobre as pessoas. Ninguém protesta pelo financiamento aos museus, às companhias com repertório clássico, a artistas plásticos cujo trabalho não contraria os cânones… Estas são propostas que o público em geral aceita como importantes, mesmo que nunca usufrua delas. Já a relação das pessoas com a arte contemporânea experimental, a arte que procura questionar os cânones, criar novas formas de olharmos para nós próprios e para o mundo, é menos pacífica. Porquê? Porque a maioria das pessoas não tem as ferramentas necessárias para lhes poder atribuir valor e importância. Para além da obrigação de criar condições para que esta arte possa ser criada, existe uma outra obrigação: a de ‘educar’ o público para aprender a apreciá-la (e depois aceitá-la ou rejeitá-la), dar-lhe as ferramentas para a poder descobrir e explorar. E isto não se faz sem a colaboração do artista.
Quanto às estruturas à volta de um artista ou às companhias e às entidades culturais em geral (museus, galerias, centros culturais, salas de espectáculos), não me incomoda de todo a ideia do estabelecimento de objectivos (alguns comuns a todos e outros específicos, decididos entre o financiador e a entidade cultural de acordo com a missão desta última – ver post sobre estabelecimento de objectivos nos acordos de financiamento entre os museus ingleses e o estado). E parece-me legítimo que a decisão de financiar dê prioridade àqueles interessados em assumir os mesmos. Se se valoriza a criação de serviços educativos ou a criação de relações com públicos-alvo com menor representação, não deveria ser dada prioridade àqueles que pretendem avançar nesse sentido? Se se valoriza a eliminação de barreiras físicas, para que os cidadãos com necessidades especiais possam usufruir da oferta cultural, não será legítimo esperar que as estruturas financiadas com dinheiros públicos providenciem acesso às pessoas com deficiência? São apenas dois exemplos.
Penso que só assim, criando objectivos concretos e mesuráveis a médio e longo prazo, conseguimos evoluir. Conseguimos quebrar pouco a pouco as barreiras de acesso à cultura, sejam elas mentais, físicas ou financeiras. Não se trata do valor da cultura, mas sim do acesso a ela.
Estas e outras questões serão discutidas no dia 6 de Outubro, num debate que se quer provocador e que se intitula “Afinal, para que serve a arte?”, organizado pelo Institute of Ideas em parceria com a Culturgest.
Assim, enquanto estava a ler uma série de textos sobre o valor da cultura e o seu financiamento, perguntava-me cada vez mais: fará sentido continuarmos a centrar o debate no como provar o valor da cultura? É disso que precisamos de convencer as pessoas – públicos, não-públicos, políticos, patrocinadores -, do ‘valor da cultura’? Alguém o contesta?
A cultura tem um valor próprio, em grande parte intangível, imensurável. A cultura toca-nos, maravilha-nos, faz-nos crescer como pessoas, torna-nos mais tolerantes e exigentes, menos ignorantes e arrogantes. Faz-nos pensar em nós e no mundo. A forma como cada um de nós vive esta relação é muito pessoal; e cada um de nós pode falar por si. Esses testemunhos, muitas vezes registados, não constituem propriamente ‘provas’, mas ajudam-nos a percebermos, e a mostrarmos a outros, como é que a oferta cultural é recebida, entendida e sentida.
Quando debatemos o financiamento para o sector cultural, raramente usamos, então, este género de argumentos. Porque não são fáceis de ‘provar’ e porque parece-nos que não são suficientes. Não são esses os indicadores esperados. No entanto, na nossa ‘apologia’ recorremos frequentemente aos resultados dos ‘efeitos colaterais’ da cultura, ou seja, aos relacionados com a economia, a regeneração de centros urbanos, os problemas sociais, de saúde etc. Estes existem e já foram provados em variadíssimos relatórios.
Parece-me, no entanto, que não é com base neles que se deveria avaliar a cultura em geral e as artes em particular. A monitorização desses resultados compete aos agentes que representam cada uma dessas áreas, que interagem com o sector cultural por considerarem a interacção benéfica. Penso que ao sector cultural compete provar que procura e consegue criar pontes com estes outros sectores, para que a oferta possa ser mais divulgada, mais acessível e mais usufruída, de modo a que cada vez mais pessoas possam ser ‘confrontadas’ com o seu valor intrínseco – aquele que é difícil de provar e de medir, mas que cada pessoa sente, à sua maneira, quando vive a experiência. É nestes termos, na minha opinião, que deverá ser debatido e avaliado o valor do sector cultural. E é também com base neles que deveriam ser pensados os critérios para financiamento.
Quando se pensa na distribuição dos apoios, parece-me que, grosso modo, poderíamos identificar três tipos de beneficiários: os artistas que trabalham individualmente, que produzem; os artistas que têm uma estrutura à sua volta; as instituições culturais.
Aos artistas compete criar. Criar arte de excelência. E o Estado deve garantir as condições para isso. O artista não cria para o bem da sociedade. Cria porque esta é a sua forma de respirar, de comunicar. Não lhe compete provar que a sua arte ajuda a resolver problemas de saúde ou sociais ou outros. A decisão de atribuir financiamento ou não deveria ser baseada na qualidade do seu trabalho. No entanto, parece-me legítimo esperar que um artista financiado pelo Estado esteja aberto para colaborar com os mediadores (educação, outreach, comunicação) que procuram abrir o caminho para o público chegar à sua arte. Os públicos, os políticos, os patrocinadores dificilmente atribuem valor a algo cuja existência ignoram ou a algo que lhes é estranho, incompreensível, por isso aparentemente inútil e às vezes assustador.
Neste contexto, deveríamos dar particular atenção ao medo e ao desconforto que as palavras ‘criação contemporânea’ exercem sobre as pessoas. Ninguém protesta pelo financiamento aos museus, às companhias com repertório clássico, a artistas plásticos cujo trabalho não contraria os cânones… Estas são propostas que o público em geral aceita como importantes, mesmo que nunca usufrua delas. Já a relação das pessoas com a arte contemporânea experimental, a arte que procura questionar os cânones, criar novas formas de olharmos para nós próprios e para o mundo, é menos pacífica. Porquê? Porque a maioria das pessoas não tem as ferramentas necessárias para lhes poder atribuir valor e importância. Para além da obrigação de criar condições para que esta arte possa ser criada, existe uma outra obrigação: a de ‘educar’ o público para aprender a apreciá-la (e depois aceitá-la ou rejeitá-la), dar-lhe as ferramentas para a poder descobrir e explorar. E isto não se faz sem a colaboração do artista.
Quanto às estruturas à volta de um artista ou às companhias e às entidades culturais em geral (museus, galerias, centros culturais, salas de espectáculos), não me incomoda de todo a ideia do estabelecimento de objectivos (alguns comuns a todos e outros específicos, decididos entre o financiador e a entidade cultural de acordo com a missão desta última – ver post sobre estabelecimento de objectivos nos acordos de financiamento entre os museus ingleses e o estado). E parece-me legítimo que a decisão de financiar dê prioridade àqueles interessados em assumir os mesmos. Se se valoriza a criação de serviços educativos ou a criação de relações com públicos-alvo com menor representação, não deveria ser dada prioridade àqueles que pretendem avançar nesse sentido? Se se valoriza a eliminação de barreiras físicas, para que os cidadãos com necessidades especiais possam usufruir da oferta cultural, não será legítimo esperar que as estruturas financiadas com dinheiros públicos providenciem acesso às pessoas com deficiência? São apenas dois exemplos.
Penso que só assim, criando objectivos concretos e mesuráveis a médio e longo prazo, conseguimos evoluir. Conseguimos quebrar pouco a pouco as barreiras de acesso à cultura, sejam elas mentais, físicas ou financeiras. Não se trata do valor da cultura, mas sim do acesso a ela.
Estas e outras questões serão discutidas no dia 6 de Outubro, num debate que se quer provocador e que se intitula “Afinal, para que serve a arte?”, organizado pelo Institute of Ideas em parceria com a Culturgest.
Notas a 7 de Outubro:Vítor Belanciano escreveu sobre a organização deste debate num artigo intitulado A poesia não contribui para o PIB, logo, não deve ser subsidiada?, publicado a 6 de Outubro no jornal Público. No dia 7 de Outubro, Cláudia Carvalho fez, também no Público, um breve relato a propósito de algumas das coisas que foram ditas, no artigo Batalha de Ideias na Culturgest sobre o papel económico da arte.
Sendo este um assunto muito actual e relevante para o sector cultural, está a ser discutido em vários fóruns e países. Também hoje foi publicado no blog Artsblog um post intitulado Proving what we know is true, que nos informa sobre um estudo que o Theatre Bay Area irá desenvolver no sentido de poder criar um serviço que permitirá quantificar o impacto intrínseco do seu trabalho. Mais informações aqui.
Por fim, vale ainda a pena ler o artigo de Nicholas Serota, director da Tate e uma das pessoas mais influentes no meio cultural britânico, publicado no dia 5 de Outubro no jornal Guardian e intitulado A blitzkrieg on the arts. Aqui está um excerto que me parece que pode servir de base se quisermos, realmente, mudar os termos do debate: "Com um ataque cruel, a coligação ameaça a estabilidade de um sistema inteiro de oferta cultural que tem sido construído por sucessivos governos conservadores e trabalhistas: uma economia mista, com apoios públicos e privados, que tem feito do Reino Unido um país civilizado para se viver, onde todos têm a oportunidade de desfrutar as artes ou celebrar o nosso património, e têm-no feito em números cada vez maiores."
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