Monday, 24 September 2012

Blogger convidado: "Inspirar o amor pelas artes em públicos mais novos", por Consuelo Hidalgo (Equador)


Consuelo Hidalgo é uma mulher cheia de energia e entusiasmo que nos faz sentir que tudo é possível. E que trabalha muito para que as coisas realmente aconteçam. Neste momento, é a pessoa certa no lugar certo. Como Directora Executiva da Fundacion Niños com Futuro pode juntar o seu amor pelas artes ao seu amor pelas crianças. Neste texto, partilha connosco a história do seu contributo para o futuro de Equador. Sonha com e trabalha para que o seu país seja habitado por cidadãos sensíveis, criativos e genuínos pensadores críticos. mv

Uma aluna do ensino pré-escolar num concerto para crianças da Orquestra Sinfónica de  Guayaquil. (Foto: Consuelo Hidalgo)
Lembro-me da primeira vez que ouvi a minha avó contar-me com grande entusiasmo a história de La Traviatta. Tinha cinco anos e fiquei muito impressionada com o enredo e o como aquela música e aquelas vozes apaixonantes narravam o drama de uma forma tão mágica, e também tão incompreensível. Foi assim que fui apresentada à ópera: um jogo de contar histórias de uma avó que se tornou num novo modo de percepcionar e entender essa forma de arte.

Todas as formas de arte têm uma história para contar. Eu, tendo trabalhado durante muitos anos em projectos de desenvolvimento de públicos mais novos em museus, orquestras sinfónicas e fundações para crianças, aprendi a importância da forma, qualidade e frequência das histórias que contamos às crianças para as envolver nas artes.

No Equador, a maioria das actividades na área das artes performativas é gratuita para as crianças. Portanto, porque é que a maioria dos jovens equatorianos está tão afastada do ambiente artístico? Penso que o problema começa com a ‘vontade’ das instituições de ensino e dos pais de os levar a espectáculos e ensaios (que, em certos dias, são quase todos abertos ao público). Sendo assim, a minha questão é: qual é a história que estamos a contar aos professores e aos pais sobre os benefícios de assistir a um espectáculo e como é que as instituições artísticas locais planeiam as suas actividades para servir os públicos mais novos? E, ainda, quão sustentáveis serão as instituições artísticas nos próximos anos, uma vez que as artes e a música já não são uma disciplina obrigatória nas escolas e a população consome outros géneros de entretenimento?

Um concerto do Maestro Ivan Fabre (primeiro violino da Orquestra Sinfónica de Guayaquil) para crianças da Fundacion Niños con Futuro. (Foto: Consuelo Hidalgo) 
Não dispomos ainda  de estudos formais sobre o impacto de programas de educação artística nos públicos mais novos no Equador. O nosso parâmetro para medir os resultados é o feedback que recebemos dos pais e dos professores. Lembro-me muito bem quando estava a desenhar o meu primeiro programa ‘formal’ de educação artística, “Cultura para todos”. Estava a trabalhar no Museu de Arte Colonial Nahim Isaias e, como podem imaginar, despertar o interesse das crianças pelas artes coloniais não era propriamente fácil. Por isso, comecei a brincar com conceitos usados pelos nossos conservadores nas exposições que poderiam ser apresentados como uma história paralela numa linguagem familiar para os alunos. Por exemplo, com base numa exposição permanente inspirada na iconografia, criámos um programa especial de acordo com padrões académicos estabelecidos a nível nacional e local. Cada professor recebeu um caderno de actividades para poder guiar os alunos e era suposto implementar o programa na sala de aulas, enquanto os conceitos específicos de arte e iconografia eram ensinados durante a visita ao museu. O programa tinha sido feito para apoiar a aprendizagem na sala de aulas. O objectivo de tudo isto, e também dos programas para o desenvolvimento de públicos mais novos que se seguiram na Orquestra Sinfónica de Guayaquil, era envolver os alunos através de uma abordagem criativa ao ensino, proporcionar experiências artísticas às crianças e fornecer aos estudantes instrumentos de auto-expressão. Esta experiência incluía visitas ao museu, onde as crianças recebiam um caderno de actividades, como palavras cruzadas, adivinhas, e pistas para jogar um jogo de mistério conduzido pelo pessoal do museu; incluía ainda visitas à orquestra sinfónica, concertos do quarteto de cordas nas suas escolas, acompanhados também de um caderno de actividades realizadas após o concerto. A reacção dos professores e dos pais foi muito positiva, uma vez que podiam ver claramente que os alunos se envolviam mais nas aulas e demonstravam uma apreciação pelas artes mais activa e mais sustentada. A experiência mais recompensadora era ver as crianças regressarem com os seus pais no fim-de-semana (e darem-nos conhecimento que tinham regressado), assim como saber que as escolas que tinham participado nos nossos programas incluíam agora feiras de artes e cultura no seu calendário escolar (fomos convidados a inaugurar oito dessas feiras).

Foi assim que, há oito anos, comecei a desenvolver parcerias com a comunidade para garantir uma educação artística de alta qualidade para os mais novos, e estabeleci o objectivo de melhorar a capacidade das escolas e da comunidade para abraçar as artes, o que, espero, irá criar no futuro uma procura sistémica de educação artística.

Então, qual é a história que deveríamos estar a contar à sociedade sobre a importância das artes na vida das crianças? A arte é uma estratégia relevante para a educação em todas as áreas. Nos primeiros anos da infância, aumenta o pensamento criativo, reflectivo e crítico. É um instrumento de aprendizagem que estimula a habilidade de criar e inovar. Podemos, por isso, dizer que, através da arte, as crianças podem expressar os seus sentimentos e criatividade à medida que desenvolvem a sua capacidade de pensamento crítico.

Crianças da Fundacion Niños con Futuro visitam o teatro em Guayaquil. (Foto: Consuelo Hidalgo)
A questão com a qual estamos a ser confrontados neste momento não é “educação menos arte” versus “educação mais arte”, mas, sim, qual é a qualidade das capacidades essenciais com as quais esperamos – e devemos – equipar as futuras gerações? Será um kit de ferramentas para o desempenho de simples tarefas práticas? Ou, em vez disto, iremos promover aquele pensamento flexível, imaginativo e crítico que é necessário para lidar com os desafios, complexos e em constante mudança, com os quais somos confrontados no mundo contemporâneo? Será limitado à sala de aulas? Ou, em vez disto, irá tornar-se num recurso ao longo da vida para o crescimento e enriquecimento pessoal? Irá tornar-nos mais conscientes dos detalhes subtis da vida?

O meu envolvimento nas artes quando era criança mudou a minha vida para sempre. Não seria hoje tão activa neste campo se assim não fosse. Esta é a história que vos quero contar e espero poder ouvir histórias parecidas no futuro contadas pelas gerações seguintes.


Consuelo M. Hidalgo é jornalista. Actualmente, é Directora Executiva da Fundacion Niños con Futuro. Antes, tinha sido promotora cultural da Orquestra Sinfónica de Guayaquil, onde foi responsável pelos programas de desenvolvimento de públicos, relações internacionais e programas educativos. Iniciou a sua carreira profissional como Directora de Relações Públicas do Museu de Arte Colonial Nahim Isaias, em Guayaquil. Durante o seu tempo no museu, desenvolveu vários projectos culturais com o objectivo de integrar pessoas com menos recursos. O projecto foi chamado “Cultura para Todos” e estendeu-se a outras cidades do país. Em 2006 foi convidada pelo MAAC, um museu de antropologia e arte contemporânea, para gerir o projecto “Vivir la Cultura”, um projecto que proporcionava espectáculos gratuitos tendo como palco zonas regeneradas da cidade. Em 2008, entrou no Bureau of Education and Cultural Affairs do U.S Department of State e no John F. Kennedy Center for the Performing Arts International Cultural Exchange Fellows Mentoring Program for Performing Arts Managers. Acabou recentemente o seu fellowship em Arts Management no DeVos Arts Management Institute at the John F. Kennedy Center for the Performing Arts.

Monday, 17 September 2012

Sobre o nosso valor público

Imagem retirada de detroitfunk.com

A discussão à volta do valor das artes e da cultura conta já com bastante literatura. As questões relativamente à sua instrumentalização pelos governos ou ao seu carácter intrínseco têm estado na ordem do dia desde há muitos anos, sobretudo em países como os EUA, o Reino Unido ou a Austrália. Num determinado momento, considerando todas as ‘provas’ que se tem que dar, pensei que os profissionais da cultura são mesmo e apenas isso: profissionais da cultura. Não são nem professores, nem terapeutas, nem médicos, nem padres, nem polícias… Se o seu trabalho tem um impacto positivo noutras áreas, este impacto deve ser registado e os profissionais dessas outras áreas, assim como os ‘utentes’ das mesmas, deverão ser os nossos embaixadores. Mais do que qualquer estudo sobre, por exemplo, o impacto da cultura na economia de um país (existem vários, os governos usam-nos ou ignoram-nos), mais do que qualquer argumento que nós possamos apresentar em defesa do nosso contributo à sociedade, fazem falta os testemunhos dos ‘beneficiários’ directos - mesmo que de benefícios ‘colaterais’ - do nosso trabalho. E não nos esqueçamos, são essas as pessoas que votam nas eleições.

No entanto, mais que uma vez partilhei aqui a minha preocupação pelo facto dos profissionais do sector cultural estarem afastados da sociedade, das pessoas. Sempre que se debate a importância da cultura, as razões porque deve ser financiada pelo Estado, apresentamos argumentos que servem sobretudo para consumo interno. Somos nós a falar para os nossos pares em defesa do nosso ‘cantinho’. Passamos mesmo a ideia de que estamos a defender questões pessoais e não o bem comum.

As pessoas defendem e apoiam com os seus impostos a existência de hospitais públicos (esperando até que nunca venham a pôr pé neles, mas porque reconhecem na sua existência um bem comum). Como fazer para que se pense e se fale dessa mesma forma sobre a cultura? Para que todos, utilizadores e não utilizadores, a encarem como um bem comum e indispensável?

Há aproximadamente dois anos, deparei-me pela primeira vez nas minhas leituras com o termo ‘valor público’ (public value), num texto de John Holden de 2004 que se chamava Capturing Cultural Value: How culture has become a tool for government policy. Neste texto, o ‘valor público’ é definido como o valor acrescentado por um governo e pelo sector público no sentido mais amplo. Trata-se da diferença entre aquilo que os cidadãos dão às entidades públicas e aquilo que recebem. Os cidadãos reconhecem valor quando abdicam de algo para receber esse valor (na cultura seria, por exemplo,  dinheiro – para a compra de bilhetes, donativos… -, tempo, energia, trabalho voluntário, etc.).

No mês passado, o Detroit Institute of Arts (DIA) tornou-se notícia porque conseguiu convencer os habitantes de três distritos de Michigan a votar num novo imposto de propriedade que reverterá para o museu. Assim, o DIA terá $23 milhões por ano nos próximos 10 anos (91% do seu orçamento), ao mesmo tempo que tentará angariar mais fundos para, findos os 10 anos, poder continuar a funcionar. Após a votação do imposto, o museu ofereceu entrada gratuita a todos os habitantes dos três distritos.

A propósito deste acontecimento, Diane Ragsdale, autora do blog Jumper, fez uma excelente análise (ler aqui), com links também para outros textos, onde coloca questões que me parecem extremamente pertinentes: terá sido calculado o impacto (no sentido da redução) nas contribuições habituais dos cidadãos (donativos, compra de bilhetes, assinaturas, etc.); teria sido uma solução mais inteligente e mais ética procurar beneficiar com esta taxa várias instituições da área; estará o DIA a colocar-se numa posição desconfortável perante a comunidade ao ter que renegociar a sua relação com ela findos os 10 anos; o que motivou as pessoas a votarem o imposto e como se estarão a sentir o que votaram ‘não’; como deverá ser interpretada a triplicação do número de visitantes na semana a seguir à votação; e, por fim, qual será o impacto deste acordo quid pro quo no que diz respeito aos benefícios que uma comunidade poderá (e quererá) receber pelo seu apoio à uma instituição cultural?

Esta última questão leva-me a um outro excelente texto, de Nina Simon, autora do blog Museum 2.0, que se concentrou na discussão pública que se gerou durante a campanha do museu (ler aqui). Nina analisou os mais de 300 comentários no Detroit Free Press Online e voltou a colocar questões relativamente à forma como é entendido pelas pessoas o valor público da cultura e a forma como estes debates podem e devem ser conduzidos pelas próprias instituições culturais. Nina citou um interessantíssimo estudo, The Arts Ripple Effect: A research-based strategy to build shared responsibility for the arts, que, entre outros, identifica três principais ‘pré-conceitos’ no que diz respeito às artes: as artes são uma questão privada (uma questão de gostos, experiências e enriquecimento pessoais e também uma questão de expressão pessoal); as artes são um bem que pode ser adquirido (e por isso, deveriam funcionar como qualquer outro produto no mercado); as artes não são uma prioridade (até entre as pessoas que as valorizam). Portanto, o estudo sugere que, conhecendo estas e outras suposições, é possível construir argumentos em prol da cultura que a maioria das pessoas possa entender, reconhecendo o seu impacto na sua própria vida e naquela da sua comunidade. Um bem comum precisa de uma linguagem e de um quadro comum, partilhado por todos.

Rebecca Lamoin, Directora Associada de Estratégia no Queensland Performing Arts Centre e minha colega no Kennedy Center, está actualmente a trabalhar num projecto sobre o valor público das instituições culturais. No âmbito do projecto, irá promover um programa de rádio a nível nacional, aberto ao público. Nesta fase preparatória, está a convidar profissionais da cultura de todo o mundo a fazer breves depoimentos, respondendo às seguintes perguntas:
Qual é a coisa mais importante que a sua organização fornece à sua comunidade?
Porque é que a sua comunidade gosta da sua organização? 
De que é que as pessoas na sua cidade sentiriam falta se a sua organização deixasse de existir?

Penso que tentar responder a essas perguntas, e em especial à última, seria um bom exercício para todos nós. E seria ainda interessante saber quantas instituições culturais em Portugal têm já as respostas, porque procuram activamente recolher esses dados e registos. Rebecca Lamoin irá dar-nos conta neste blog de como as coisas correram na Austrália no início de Novembro.


Ainda neste blog

Mais leituras
Public Value and the Arts in England: Discussion and conclusions of the arts debate

Sobre outros esquemas de impostos que beneficiam instituições culturais em cidades americanas, vale a pena ler este post de Ian David Moss no blog Createquity.

Monday, 10 September 2012

Blogger convidado: "Reinventando e tornando os museus relevantes", por Ihor Poshyvailo (Ucrânia)


Ihor Poshyvailo é um homem muito discreto, mas, quando começamos a falar com ele, descobrimos alguém rico em conhecimentos e experiências. Nestas conversas, tornam-se evidentes as suas preocupações relativamente à abertura do seu país, da Ucrânia, para o mundo e ao papel que os museus podem ter durante este período, que é ainda um período de transição, especialmente no que diz respeito ao encontro entre a cultura popular e a expressão artística contemporânea. Neste post, partilha as suas opiniões sobre o presente e o futuro dos museus no seu país. mv

Desfile de "vyshyvankas" no Dia da Independência em Kiev. (Foto: Bohdan Poshyvailo)

Cresci num ambiente onde as artes e a cultura eram muito apreciadas. Os meus avós eram proeminentes ceramistas populares que fundaram a primeira casa-museu na Ucrânia, aquela que foi o antecessor do Museu Nacional de Cerâmica Ucraniana em Opishne, uma pequena aldeia que ostenta o título de “Capital da Cerâmica”.

Tenho estado a trabalhar no sector cultural há mais de vinte anos, mas devo dizer que os últimos três têm sido especialmente favoráveis para mim. Fui um Fulbright Scholar na Smithsonian Institution e neste momento sou um Summer International Fellow do DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center. Estas generosas oportunidades deram-me novos conhecimentos, ideias e visões.

O nosso mundo está-se a tornar mais pequeno e globalizado. Mesmo assim, permanece instável. A cultivação do respeito multicultural e da compreensão mútua entre diferentes comunidades pode ser uma das soluções para enfrentar os maiores desafios e ameaças do século XXI. Neste processo, as instituições culturais e artísticas têm um papel especial, em particular os museus, que hoje em dia não são apenas as clássicas instituições de preservação e apresentação de valores históricos, culturais e naturais, mas importantes espaços de comunicação. Têm a capacidade de mudar profundamente os nossos conhecimentos e a ideia que temos de nós próprios e do mundo à nossa volta, transmitindo informações através da apresentação de objectos e conceitos, e da sua interpretação. Conforme foi sugerido por vários investigadores, os museus transmitem também, implicitamente, mensagens sobre a autoridade, o poder e os valores da cultura dominante. Os museus ajudam-nos a reconstruir o passado, assim como fornecem conhecimentos essenciais para entender o presente.

Nas últimas décadas, os museus nos Estados Unidos têm estado a interagir com públicos mais diversos, mudando o foco da apresentação para a interpretação de objectos e para a produção de experiências, enquanto as exposições têm-se tornado mais orientadas para as pessoas e as ideias e mais contextualizadas. De acordo com a visão de Stephen E. Weil, “O museu do futuro próximo, como instrumento de comunicação complexo e potencialmente poderoso… irá disponibilizar à comunidade… a sua profunda perícia em contar histórias, extrair emoções, despertar memórias, agitar a imaginação e incentivar a descoberta.”

Actuação de um famoso grupo etno-caos, DakhaBrakha, no Museu Ivan Honchar. (Foto: Bohdan Poshyvailo)
A expansão das fronteiras da herança cultural na segunda metade do século XX forneceu novas respostas no que diz respeito às relações entre os objectos patrimoniais e os seus consumidores. A “herancização” (heritagization) do espaço – um processo de reinterpretação do nosso ambiente – coloca os objectos patrimoniais e as instituições culturais na mesma linha com outros espaços populares de lazer, incluindo circos e casinos, restaurantes e resorts, até a televisão e a Internet. Este fenómeno tem tido um impacto sobre os conteúdos e os métodos de apresentação e interpretação da herança cultural e tem inspirado a transformação dos museus em espaços especiais e importantes para um diálogo sobre o papel da herança cultural no desenvolvimento da democracia e da sociedade civil. De acordo com o famoso futurologista Rolf Jensen, a actual sociedade, caracterizada pela abordagem científica e o racionalismo, regressará inevitavelmente às emoções, à história e aos valores.

Neste contexto, deveríamos mencionar que o papel social e a popularidade de um museu na Ucrânia são bastante pequenos em relação aos Estados Unidos e outros países desenvolvidos. Existem várias razões para isso. A política de genocídio dos comunistas na Ucrânia e a opressão cultural dos últimos 80 anos resultaram, claro, numa perda considerável da memória histórica dos Ucranianos. Durante os anos de repressão da cultura soviética, grande parte da distinta herança cultural ucraniana ficou dormente, escondida. Isto foi lamentável por várias razões, no entanto, o nosso isolamento cultural preservou a nossa cultura tradicional como numa cápsula do tempo. Desde 1991, foram introduzidas novas liberdades, proporcionando acesso a novos mercados e culturas. Juntamente com este acesso, houve uma inundação de culturas globais. Apesar de poder haver várias vantagens económicas, na Ucrânia, este fluxo de culturas globais encontra um vácuo de memória cultural. Para a nossa nação, a criação de um caminho distinto para o futuro e uma sociedade aberta e democrática requer alguma memória do que fomos.

O Museu Ivan Honchar, assim como muitos outros museus, pode fornecer de uma forma única esta bagagem cultural. O único problema é como evoluir do ainda dominante modelo soviético de museu – que servia apenas como repositório de tesouros culturais e étnicos aprisionados e para propósitos ideológicos, para a criação de uma nova nação, o povo soviético. Hoje em dia, centenas de museus na Ucrânia podem orgulhar-se de colecções únicas e ricas, mas não se apresentam inspirados para a transição, para se reinventarem e para se tornarem relevantes. A área dos museus na Ucrânia encontra-se numa conjuntura crítica, enfrentando desafios diários. Isto acontece devido à falta de conhecimentos profissionais e de cooperação internacional, métodos de operação, políticas e programas antiquados, que os impedem de tornar-se em centros importantes de aprendizagem e educação, formando, criando e interpretando valores. As suas colecções, bibliotecas, arquivos e outros recursos de documentação ainda não estão abertos ao grande público. Na Ucrânia, estão a emergir novas formas de expressão artística e novos segmentos do sector cultural. No entanto, não existe uma gestão profissional e eficiente nesta área nem uma política cultural eficaz. E a Família – um elemento importante no modelo do Ciclo, desenhado por Michael Kaiser, o Presidente do Kennedy Center – não foi ainda construída.

Desfile de moda no Lion Fest, nas salas do Museu Ivan Honchar. (Foto: Bohdan Poshyvailo)
Mas acredito na diplomacia cultural e concordo em absoluto com a minha colega no Fellowship, Caroline Miller, que, no seu post para este blog, sugeriu que um grande evento cultural ou desportivo pode comunicar eficazmente para as massas mais sobre o país organizador “apenas num único espectáculo do que os políticos têm conseguido em décadas”. Numa viagem recente à Tunísia fiquei tão surpreendido ao ver muitas pessoas (até na região do sul, a porta de entrada para o Sara) sorrirem amigavelmente ao saberem que era da Ucrânia e exclamarem com admiração “Ukrajna. Shevchenko!”. Teria preferido, claro, que tivessem a referir-se ao nosso ícone nacional – o lendário poeta, filósofo e artista Taras Shevchenko, que viveu no século XIX -, não apenas ao nosso famoso jogador de futebol Andriy Shevchenko. Uma bela ilustração de como este Campeonato de Futebol Euro 2012 serviu para a Ucrânia como um grande diplomata cultural.

E acredito ainda que a experiência de profissionais estrangeiros no sector cultural pode ser de grande importância e valor para a Ucrânia. Ajudar-nos-á a encontramos uma forma de compreender e avançar com o uso da nossa herança cultural e das novas formas de expressão artística num ambiente que está a mudar rapidamente, concentrando-nos sobre o porque é que os museus são importantes para a nossa cultura, qual pode ser o seu contributo para a qualidade da experiência e o bem-estar humano, como podem enriquecer as vidas das pessoas envolvendo as emoções, melhorando as experiências e aprofundando a compreensão de pessoas, lugares, eventos, ideias, conceitos e objectos do passado e do presente.


Ihor Poshyvailo é Etnólogo, doutorado pelo Instituto de Estudos Artísticos, Arte Popular e Etnologia, Academia Nacional das Ciências da Ucrânia (1998). É Director-Adjunto do Centro Nacional de Cultura Popular “Ivan Honchar Museum” (Kiev); Presidente da Delegação Regional de Kiev da União Nacional de Mestres de Arte Popular; membro fundador do Conselho da Fundação Ivan Honchar. Foi um dos peritos da Comissão Estatal de Arte do Ministério da Cultura da Ucrânia, assim como da Comissão Intergovernamental da UNESCO para a Preservação do Património Cultural Imaterial (2009). É o autor do livro premiado Phenomenology of Pottery (semiotic and ethnological aspects). Co-moderador e co-organizador de seminários internacionais sobre gestão de museus (desde 2005). Participou no International Visitor Program (EUA, 2004), Global Youth Exchange Program (Japão, 2004) e The World Master’s Festival in Arts and Culture (Coreia do Sul, 2007). Curador de projectos artísticos internacionais, incluindo a exposição itineráriaSmithsonian Folklife Festival: Culture Of, By, and For People” (2011), “Interpreting Cultural Heritage” (2011), “Home to Home: Landscapes of Memory” (2011-2012). Foi bolseiro do International Charitable Fund “Ukraine-3000” (2005–2006). Foi Fulbright Scholar no Smithsonian Center of Folklife and Cultural Heritage (2009-2010) e actualmente é Summer International Fellow no Kennedy Center (2011-2013). 

Monday, 3 September 2012

Choque de culturas

Aung San Suu Kyi no parlamento birmanês no dia 2 de Maio de 2012. (Foto retirada de  http://photoblog.nbcnews.com)

Tenho estado a pensar sobre o medo e a forma como nos aprisiona, como nos limita, como nos leva a aceitar constantes compromissos, como nos impede de sonhar, como nos mantém no lugar onde estamos, tornando-nos medíocres, pequenos; a forma como e as razões porque se cultiva. A cultura do medo.

Li recentemente o livro Freedom from Fear, uma compilação de textos e discursos públicos de Aung San Suu Kyi, a activista birmanesa, Prémio Nobel da Paz, que passou vários anos em prisão domiciliária, mas que, há poucos meses, entrou no parlamento do seu país como deputada. Isto significou muito para mim. A primeira petição que alguma vez assinei, tinha uns 19-20 anos, era da Amnistia Internacional e pedia a libertação de Suu. Um dos discursos que agora li no livro começava assim: “Não é o poder que corrompe, mas o medo. O medo de perder o poder corrompe aqueles que o detém e o medo de serem castigados por ele corrompe aqueles que lhe estão sujeitos.”

Com esta frase, o meu pensamento voou da Birmânia novamente para os países da Primavera Árabe. Confesso que, desde que tudo isto começou, nunca olhei para eles como países que vêm agora, ‘finalmente’, juntar-se a nós - os ‘países-guardiões da democracia’, o ocidente ‘livre’. Pelo contrário, ao acompanhar o desenvolvimento da Primavera Árabe e o que se lhe seguiu, senti que teríamos que estar muito atentos porque há aqui várias lições para nós. O que eu vi nesta revolução foram povos que se juntaram para vencer o medo, que agiram como um corpo pelo bem de todos, que lutaram pela democracia - pelos direitos que ela traz, mas assumindo igualmente as obrigações. Tenho lido artigos em jornais, textos em blogs, tenho trocado opiniões com algumas pessoas provenientes desses países, e o que encontro são cidadãos que se sentem responsáveis pela manutenção dos ideais que guiaram esta acção, que têm perfeita noção que a luta não acabou e que terão que estar em alerta permanente para não voltarem atrás. Conhecendo o nosso percurso, será uma utopia desejar que eles possam permanecer assim? E que isto funcione mesmo? Porque confesso que houve momentos em que me senti envergonhada: pelas coisas que nós tomamos por certas; por fazermos parte do ciclo vicioso da cultura do medo - ora no lugar de quem detém o poder ora no lugar de quem lhe é sujeito -, inconscientes dos ideais e dos valores que sacrificámos pelo caminho ou, então, conscientes, mas absolvendo-nos a nós próprios com desculpas como “são as regras do jogo”, “é algo que me ultrapassa” ou “estou a seguir ordens”. As palavras de Wassyla Tamzali, escritora e activista argelina que participou num debate em Lisboa sobre a Primavera Árabe, tornam-se extremamente relevantes, para todos nós. Tamzali citou Michel Foucault, que tinha dito que “Revolução é dizer ‘não’ ao rei”, e acrescentou: “Na Argélia não houve essa junção mágica [como na Tunísia] entre todos os elementos da sociedade. [Na Tunísia] tinha sempre havido resistência, a resistência ao poder existiu desde sempre e dentro de várias categorias sociais (os artistas, os intelectuais, as mulheres, os juizes, os mineiros…), mas nunca tinha havido esta junção de todas as categorias. Apenas há revolução quando todas as categorias sociais se encontram e se posicionam.”

Neste contexto, a entrevista do Secretário de Estado da Cultura ao jornal Le Monde no mês passado causou-me alguma consternação. Apesar da mesma não ter sido dada na qualidade de SEC, não é possível separar o homem do cargo, sobretudo porque as suas declarações estão intimamente relacionadas com questões que têm a ver com a cultura de um povo.

Francisco José Viegas disse: “(…) Pertenço a uma geração que a um determinado momento deve responder ‘sim’. E aceitar compromissos. Quando o nosso país atravessa uma crise terrível, escrever em jornais ou em blogues o que deve ser a cultura ou a sociedade, como fazer o cinema sair do marasmo ou salvar as bibliotecas, já não basta..(…).”  E disse ainda: “Vivemos numa sociedade que perdeu os seus sonhos. Os portugueses têm medo do futuro, de falar. E isto acontece depois da Inquisição, que foi há 300 anos, e de 50 anos de regime fascista de Salazar. Hoje, com a crise, continua. É terrível.” (ler aqui um resumo no jornal Público e aqui a entrevista na íntegra no Le Monde).

É verdade, a Inquisição foi há 300 anos e o país viveu ainda 50 anos de regime fascista. Mas têm sido também quase 40 de regime ‘democrático’. O que têm produzido? Uma cultura de medo; uma cultura de yes men; uma cultura de compromisso, que faz até algumas cabeças mais erguidas baixarem-se, alinharem com a mediocridade, para sobreviverem (vale muito a pena ler a crónica do jornalista grego Nikos Demou The alliance of the lesser; o regime ‘democrático’ tem alimentado comportamentos semelhantes em países como a Grécia, com um percurso histórico e político diferente do de Portugal, o que leva a pensar que provavelmente nem a Inquisição nem o Salazar serão os únicos responsáveis).

Talvez não baste escrever em jornais e blogs sobre o que deve ser a cultura e a sociedade. Mas basta, sem dúvida, sermos governados ou manipulados, a todos os níveis e em vários meios, por quem pertence à ‘geração’ do SEC, a ‘geração’ (que, na verdade, abrange várias gerações, inclusivamente as mais novas) que alimenta a cultura do medo, que acha que deve dizer ‘sim’ e aceitar compromissos. Não terá chegado também aqui, nos nossos ‘países-guardiões da democracia’, o momento de entrarmos em confronto com a cultura do medo recuperando a nossa cultura de pensamento e de prática democrática? Não terá chegado o momento de dizermos ‘não’ aos reis e às suas cortes e de declararmos que há compromissos que são inaceitáveis, intoleráveis? Não terá chegado o momento de sonharmos com algo mais do que a mediocridade? De formarmos cidadãos atentos, sensíveis, tolerantes, exigentes e críticos, envolvidos nos assuntos da polis, que possam exprimir a sua opinião livremente e com sentido de responsabilidade, sem medo de serem castigados por isso? De alimentarmos a imaginação, de apoiarmos a criatividade, de premiarmos o empenho e o mérito? De esperarmos de quem confiamos com um poder executivo a obrigação de accountability* e de assumirmos todos, como cidadãos, o direito e o dever de a exigir? Sobretudo porque, como lembra o SEC, este país (como outros) atravessa uma crise terrível, uma crise que não apenas financeira. E esta é também uma questão de Cultura.

*Accountability significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir. Não se trata, portanto, apenas de prestar contas em termos quantitativos, mas de auto-avaliar a obra feita, de dar a conhecer o que se conseguiu e de justificar aquilo em que se falhou. (Fonte: Wikipedia)