Aung San Suu Kyi no parlamento birmanês no dia 2 de Maio de 2012. (Foto retirada de http://photoblog.nbcnews.com) |
Tenho estado a pensar
sobre o medo e a forma como nos aprisiona, como nos limita, como nos leva a
aceitar constantes compromissos, como nos impede de sonhar, como nos mantém no
lugar onde estamos, tornando-nos medíocres, pequenos; a forma como e as razões
porque se cultiva. A cultura do medo.
Li recentemente o livro Freedom
from Fear, uma compilação de textos e discursos públicos de Aung San Suu
Kyi, a activista birmanesa, Prémio Nobel da Paz, que passou vários anos em
prisão domiciliária, mas que, há poucos meses, entrou no parlamento do seu país
como deputada. Isto significou muito para mim. A primeira
petição que alguma vez assinei, tinha uns 19-20 anos, era da Amnistia
Internacional e pedia a libertação de Suu. Um dos discursos que agora li no
livro começava assim: “Não é o poder que corrompe, mas o
medo. O medo de perder o poder corrompe aqueles que o detém e o medo de serem
castigados por ele corrompe aqueles que lhe estão sujeitos.”
Com esta frase, o
meu pensamento voou da Birmânia novamente para os países da Primavera Árabe.
Confesso que, desde que tudo isto começou, nunca olhei para eles como países
que vêm agora, ‘finalmente’, juntar-se a nós - os ‘países-guardiões da
democracia’, o ocidente ‘livre’. Pelo contrário, ao acompanhar o
desenvolvimento da Primavera Árabe e o que se lhe seguiu, senti que teríamos
que estar muito atentos porque há aqui várias lições para nós. O que eu vi
nesta revolução foram povos que se juntaram para vencer o medo, que agiram como
um corpo pelo bem de todos, que lutaram pela democracia - pelos direitos que
ela traz, mas assumindo igualmente as obrigações. Tenho lido artigos em
jornais, textos em blogs, tenho trocado opiniões com algumas pessoas
provenientes desses países, e o que encontro são cidadãos que se sentem
responsáveis pela manutenção dos ideais que guiaram esta acção, que têm
perfeita noção que a luta não acabou e que terão que estar em alerta permanente
para não voltarem atrás. Conhecendo o nosso percurso, será uma utopia desejar
que eles possam permanecer assim? E que isto funcione mesmo? Porque confesso
que houve momentos em que me senti envergonhada: pelas coisas que nós tomamos
por certas; por fazermos parte do ciclo vicioso da cultura do medo - ora no
lugar de quem detém o poder ora no lugar de quem lhe é sujeito -, inconscientes
dos ideais e dos valores que sacrificámos pelo caminho ou, então, conscientes,
mas absolvendo-nos a nós próprios com desculpas como “são as regras do jogo”,
“é algo que me ultrapassa” ou “estou a seguir ordens”. As palavras de Wassyla Tamzali, escritora e activista argelina que
participou num debate em Lisboa sobre a Primavera Árabe,
tornam-se extremamente relevantes, para todos nós. Tamzali citou Michel
Foucault, que tinha dito que “Revolução é dizer ‘não’ ao rei”, e acrescentou:
“Na Argélia não houve essa junção mágica [como na Tunísia] entre todos os
elementos da sociedade. [Na Tunísia] tinha sempre havido resistência, a
resistência ao poder existiu desde sempre e dentro de várias categorias sociais
(os artistas, os intelectuais, as mulheres, os juizes, os mineiros…), mas nunca
tinha havido esta junção de todas as categorias. Apenas há revolução quando
todas as categorias sociais se encontram e se posicionam.”
Neste contexto, a entrevista do Secretário
de Estado da Cultura ao jornal Le Monde no mês passado causou-me alguma
consternação. Apesar da mesma não ter sido dada na qualidade de SEC, não é
possível separar o homem do cargo, sobretudo porque as suas declarações estão
intimamente relacionadas com questões que têm a ver com a cultura de um povo.
Francisco
José Viegas disse: “(…) Pertenço a uma geração que a um determinado momento
deve responder ‘sim’. E aceitar compromissos. Quando o nosso país atravessa uma
crise terrível, escrever em jornais ou em blogues o que deve ser a cultura ou a
sociedade, como fazer o cinema sair do marasmo ou salvar as bibliotecas, já não
basta..(…).” E disse ainda: “Vivemos numa sociedade
que perdeu os seus sonhos. Os portugueses têm medo do futuro, de falar. E isto acontece depois da
Inquisição, que foi há 300 anos, e de 50 anos de regime fascista de Salazar.
Hoje, com a crise, continua. É terrível.” (ler aqui um resumo no jornal Público e aqui a entrevista na íntegra no Le Monde).
É verdade, a Inquisição foi há 300
anos e o país viveu ainda 50 anos de regime fascista. Mas têm sido também quase
40 de regime ‘democrático’. O que têm produzido? Uma cultura de medo; uma
cultura de yes men; uma cultura de compromisso, que faz até algumas
cabeças mais erguidas baixarem-se, alinharem com a mediocridade, para
sobreviverem (vale muito a pena ler a crónica do jornalista grego Nikos Demou The alliance of the lesser;
o regime ‘democrático’ tem alimentado comportamentos semelhantes em países
como a Grécia, com um percurso histórico e político diferente do de Portugal, o
que leva a pensar que provavelmente nem a Inquisição nem o Salazar serão os
únicos responsáveis).
Talvez não baste escrever em
jornais e blogs sobre o que deve ser a cultura e a sociedade. Mas basta,
sem dúvida, sermos governados ou manipulados, a todos os níveis e em vários
meios, por quem pertence à ‘geração’ do SEC, a ‘geração’ (que, na verdade,
abrange várias gerações, inclusivamente as mais novas) que alimenta a cultura
do medo, que acha que deve dizer ‘sim’ e aceitar compromissos. Não terá chegado
também aqui, nos nossos ‘países-guardiões da democracia’, o momento de
entrarmos em confronto com a cultura do medo recuperando a nossa cultura de pensamento
e de prática democrática? Não terá chegado o momento de dizermos ‘não’ aos reis
e às suas cortes e de declararmos que há compromissos que são inaceitáveis,
intoleráveis? Não terá chegado o momento de sonharmos com algo mais do que a
mediocridade? De formarmos cidadãos atentos, sensíveis, tolerantes, exigentes e
críticos, envolvidos nos assuntos da polis, que possam exprimir a sua
opinião livremente e com sentido de responsabilidade, sem medo de serem
castigados por isso? De alimentarmos a imaginação, de apoiarmos a criatividade,
de premiarmos o empenho e o mérito? De esperarmos de quem confiamos com um
poder executivo a obrigação de accountability* e de assumirmos todos,
como cidadãos, o direito e o dever de a exigir? Sobretudo porque, como lembra o
SEC, este país (como outros) atravessa uma crise terrível, uma crise que não
apenas financeira. E esta é também uma questão de Cultura.
*Accountability significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por que faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir. Não se trata, portanto, apenas de prestar contas em termos quantitativos, mas de auto-avaliar a obra feita, de dar a conhecer o que se conseguiu e de justificar aquilo em que se falhou. (Fonte: Wikipedia)
2 comments:
" O que eu vi nesta revolução foram povos que se juntaram para vencer o medo, que agiram como um corpo pelo bem de todos, que lutaram pela democracia - pelos direitos que ela traz, mas assumindo igualmente as obrigações. Tenho lido artigos em jornais, textos em blogs, tenho trocado opiniões com algumas pessoas provenientes desses países, e o que encontro são cidadãos que se sentem responsáveis pela manutenção dos ideais que guiaram esta acção, que têm perfeita noção que a luta não acabou e que terão que estar em alerta permanente para não voltarem atrás. "
Plenamente ...
Um abraço , MV ;)
_________
E quanto a "accountability" contraponho " empowerment ", melhor dizendo , português falando EMPODERAMENTO . Faz falta ... de baixo para cima , em toda a extensão. Uma GRANDE base é o que precisamos.
Estamos em sintonia, Isabel :-) Mas primeiro é preciso vencer o medo...
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