O último blogger
convidado este ano é um sonhador, um contador de histórias, é o meu amigo Mohamed El
Ghawy. O Mohamed é aquele género de sonhador que nos surpreende pela forma como consegue manter os pés
na terra. É cauteloso mas determinado, procura sempre dar passos em frente, sabe o que é preciso fazer para que os sonhos se tornem realidade e... fá-lo. Tivemos
longas conversas no verão passado sobre a situação no Egipto e os seus planos
para a AFCA, a organização que criou em 2004 com o objectivo de educar as
crianças egípcias através das artes e da cultura. Esta é a sua contribuição para o
futuro do seu país, um futuro habitado por cidadãos criativos, imaginativos, sensíveis
e activos, capazes de aceitarem os outros e de encontrarem o seu caminho
sozinhos. mv
Workshop de artes visuais com crianças carenciadas. (Foto: AFCA) |
“As crianças
enchiam o hall e, como
habitualmente, eu estava a contar uma história. Algumas delas abriam as suas
boquinhas imitando-me, outras abriam os seus olhinhos fascinadas. A interacção
era maravilhosa, divertia-me muito a esticar a minha voz para imitar
personagens e vários animais. As crianças estavam a rir-se. Estavam felizes por
assistir, tal como eu estava feliz por representar. De repente, reparei num
rapaz que estava na última fila, contra a parede. Os seus olhos fecharam-se e
cabeceou. Adormeceu e senti-me chocado, era a primeira vez que isto me
acontecia. Chateado por não ter conseguido atrair a sua atenção, continuei e no
fim apresentei as minhas desculpas à professora. Ela, vendo como isto me tinha
afectado, riu-se e disse: «Este rapaz sofre de insónia e estamos a trabalhar
com os seus pais para o ajudar. O médico diz que não dorme porque não se sente
seguro»”.
Isto não me
aconteceu a mim; foi um contador de histórias da Croácia que nos contou numa
formação na Irlanda. Há muito tempo que estou interessado na forma como usar as
artes na educação dos mais novos. No meu país, o Egipto, o sistema de educação
é muito tradicional e as crianças é suposto decorarem tudo sem reflectirem
sobre aquilo que estão a memorizar, o que acaba por ser aborrecido. Para mim, a
Educação é uma ferramenta e deve continuar a sê-lo.
Quando tinha 25
anos, fiz uma viagem de barco no sul do Egipto com um grupo de amigos, para
fugir da vida louca de Cairo. Navegámos ao longo do Nilo num barco pequeno
durante 4 noites. Sem tecnologia, sem stress, só a natureza e nós. Uma noite, o
céu estava cheio de estrelas e um dos meus amigos, o Damian, abriu um mapa de
estrelas e começou a brincar com pedrinhas. Disse que se fizéssemos um desejo
naquele momento, tornar-se-ia realidade antes do fim do ano seguinte. Sem
hesitar, falei do meu sonho em abrir um espaço onde as crianças pudessem
aprender tudo através das artes. Os meus amigos ficaram muito entusiasmados e
começámos a procurar um nome. “Deve incluir o francês, tu adoras essas língua”,
disse Marwa; e a Yasmine disse: “Irás abri-lo no Cairo, certo?”. O Damian disse
que no seu país, a Bélgica, esse género de projectos chamava-se “academia das
artes” e naquele momento surgiu o acrónimo francês AFCA - Académie Francophone Cairote des Arts.
Meio ano
depois, juntámo-nos todos para a inauguração da minha academia das artes. O
Damien estava na Europa e voltou para o natal, vestido de Pai Natal e cantando
para as crianças: “Há um ano, brincávamos com as estrelas no céu, agora
brincamos convosco aqui na terra…”.
A missão da
AFCA é “Educar as crianças e os jovens através das Artes e da Cultura no
Egipto”. As actividades que propomos são desenhadas para reforçar o uso das
línguas – francês, inglês e árabe – e para estimular a criatividade e talento
artístico natural de cada criança, usando-o como um meio para desenvolver
capacidades pessoais.
Algumas pessoas
acreditaram na nossa missão. Lembro-me da mãe de Aly, que nos apoiou imenso
desde o primeiro momento. Tal como nós, acreditava que a sua criança podia
aprender e falar uma segunda língua sem ser necessário passar por um sistema
académico, apenas através das artes. Conversámos dois anos depois da abertura
da AFCA. Disse que Aly estava muito feliz. A sua personalidade tinha mudado e
tinha desenvolvido muito as suas capacidades de socialização – mas só falava
apenas a língua que lhe ensinavam na escola. Três anos mais tarde,
telefonou-me. “Há quatro dias que estamos em França e Aly é o nosso guia, fala
em francês. Obrigada!”. Na AFCA, tínhamos brincado juntos com as línguas,
tínhamos pintado, até tínhamos cozinhado com elas. Aly tem agora 12 anos e faz
parte da equipa que está a planear o nosso décimo aniversário em 2014.
Depois da
revolução, tínhamos energia positiva e sentimos que estávamos livres. Decidimos
construir pontes com outras culturas e criámos o Hakawy International Arts
Festival for Children com o objectivo de trazer ao Egipto espectáculos de todo
o mundo. A exposição a outras culturas irá apoiar o desenvolvimento da
imaginação e criatividade das crianças e abrir as suas mentes para o mundo e a
diversidade cultural. Abrimos o festival a crianças carenciadas, que
normalmente têm acesso limitado às artes. Mas têm também o direito de se
exprimirem e de se sentirem aceites pelos outros, também a nível internacional.
Acreditamos que as artes e a cultura são inestimáveis para as crianças, tão
importantes como a comida e a saúde. Comer é uma cultura, conduzir um carro é
uma cultura, ouvir enquanto se conversa com outros é uma cultura, limpar é uma
cultura. No Egipto, especialmente agora, precisamos destes lados intangíveis da
cultura.
Segunda edição do Festival Hakawy, com crianças com necessidades especiais. (Foto: AFCA) |
Algumas pessoas
pensam que ensinar artes às crianças é um luxo. Não é; é tão importante como
qualquer outra coisa. Ensina criatividade, capacidades de socialização e
imaginação. A história de um país, contada como conto ou representada numa
peça, nunca será esquecida. Quantas pessoas se lembram das datas históricas se
as estudaram apenas para responder às perguntas de um exame?
Aprender
através das artes enriquece muito a educação de uma criança. A equipa da AFCA
ensina línguas estrangeiras através de teatro e de canções, e até disciplinas
mais complexas, como a matemática e as ciências, podem ser ensinadas através
das artes visuais. É mais importante do que nunca para as gerações mais novas
possuírem um amplo leque de capacidades. Considerando algo tão simples como
cozer bolos, uma tarte de maçã pode ajudar surpreendentemente uma criança a
aprender a comportar-se como membro de uma equipa. As artes não são uma
disciplina por si; atravessam todo o currículo.
Devido à
situação económica do Egipto, que impede 20 em cada 100 crianças de encontrar
um lugar numa escola pública, não podemos deixá-las mais na dependência do
governo. Temos que as formar desde muito cedo, de uma forma criativa, para
aprenderem a pensar e a investigar. Não só para nos seguirem, mas para estarem
no centro, sendo nós aqueles que as seguem.
Nas instalações da AFCA, no dia a seguir à demissão de Hosni Mubarak. (Foto: AFCA) |
Para contribuir
para o desenvolvimento do nosso país, e considerando que as organizações
independentes devem fazer parte da solução, a AFCA juntou-se ao conselho
consultivo das escolas de Heliópolis – Cairo Oriental, para desenvolver a
educação através das artes e da cultura nas escolas públicas. Estamos a
espalhar o nosso conhecimento, observamos os processos e avaliamos depois da
implementação de cada projecto. Dizemos sempre que “A educação através das
artes e da cultura não precisa de um PhD; todos podem fazê-lo, em casa, na rua…
com as suas crianças ou com as crianças dos seus amigos”. Não posso ainda
esquecer-me do papel das artes e da cultura na construção da inclusão social
das crianças ou daquelas com necessidades especiais. Podem até substituir um medicamento.
Lembro-me ainda do impacto que as nossas actividades tiveram nos refugiados do
Iraque e agora da Síria, que se sentiram socialmente incluídos através das
artes. Não custa nada, temos apenas que acreditar que, para assegurarmos o
futuro das nossas crianças, precisamos de começara trabalhar com elas desde cedo. O nosso objectivo é ajudar todas
as crianças egípcias a serem capazes de aceitar os outros e a encontrarem o seu
caminho sozinhas.
Não é fácil
trabalhar nas artes, especialmente com a situação política actual, mas estamos
a avançar e tentamos ser criativos na resolução dos nossos problemas. Dou
sempre coragem a mim próprio e à minha equipa lembrando a todos que o rapaz que
adormeceu não estava aborrecido com a história; adormeceu porque se sentiu
seguro.
Mohamed ElGhawy é
licenciado em Artes, Francês e Literatura pela Universidade de Cairo. Começou a
sua carreira como professor de teatro, actor e contador de histórias, em várias
escolas e centros culturais. Escreveu várias peças de teatro e encenou muitas
produções. Tendo recebido formação pela organização IBO em como usar as artes
na educação, fundou no Egipto em 2004 a AFCA, uma organização artística e
cultural independente. A fim de promover a cultura árabe e egípcia em todo o
mundo, tem viajado a vários países como contador de histórias e formador em
educação pela arte. Criou o Hakawy International Arts Festival for Children in
Egypt, sob a égide do Ministério da Cultura do Egipto, e com o apoio de várias
embaixadas e da UNESCO. É membro do Conselho Consultivo das escolas de
Heliópolis – Cairo Oriental. Estudou no DeVos
Institute of Arts Management no Kennedy Center for the Performing Arts, em
Washington. Colaborou com artistas
internacionais em vários projectos que tinham como objectivo usar as artes e a
cultura como ferramenta para a aprendizagem intercultural, em França, Alemanha
e Argélia. Recentemente, tornou-se representante de Assitej International
Network for Theatre for Young Audience and Youth no Egipto e está a trabalhar
localmente com outras organizações para a sua reconstrução.
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