Imagem retirada da página do Facebook do Louvre-Lens. |
Quando se pensa em cultura e
regeneração urbana, surge logo o caso de Liverpool, assim como o trabalho de J.
Pedro Lorente na análise deste e de outros casos de estudo de cidades que
procuraram revitalizar-se, com mais ou menos sucesso, através da cultura e das
artes. Na introdução do seu paper The role of museums and the arts in the urban regeneration of Liverpool (1996),
Lorente escreveu: “... qualquer área abandonada no seio de uma cidade próspera
irá, de qualquer forma, ser revitalizada pelos urbanistas. No entanto, há menos
hipóteses de desenvolvimento quando essa área abandonada se encontra no meio de
uma cidade em declínio, que enfrenta a recessão económica, o desemprego, o
despovoamento, a agitação social/étnica e a decadência física. (...) Liverpool é um caso destes: nas últimas décadas tudo
parece ter corrido mal, excepto as artes (…)”.
De alguma forma, Lens parece ser
também um caso destes. Trata-se de uma antiga cidade mineira de 35.000
habitantes no norte de França, orgulhosa da sua equipa de futebol e muito
atingida pela crise. Lens é também, desde o dia 4 de Dezembro, a cidade onde se
encontra o novo museu Louvre-Lens, que
apresenta objectos pertencentes à colecção do museu parisiense, incluindo
algumas das suas obras de referência, como A Liberdade guiando o Povo de
Delacroix. No seu discurso durante a cerimónia de inauguração, o
Presidente francês François Hollande usou palavras como “desenvolvimento
regional”, “descentralização cultural” e “democracia cultural” e manifestou-se
confiante que os visitantes virão da região inteira, da França inteira, da
Europa inteira e talvez do mundo inteiro (o objectivo anual neste momento é
500.000 visitantes; em menos de três semanas depois da sua abertura, o museu recebeu 100.000 visitantes).
Por outro lado, o Presidente do Louvre, Henri Loyrette, explicou numa entrevista ao jornal El País:
“[aquando da decisão sobre o local] o que me interessava era que pudesse ter um
carácter social, não uma cidade com cultura. Esta é uma zona industrial, muito
afectada pelo desemprego e que sofreu em todas as guerras. É uma espécie de
reparação”.
Estamos bastante habituados a
ouvir declarações politicamente correctas, pelas quais raramente alguém presta
contas nos anos seguintes, mas um museu que tem como objectivo compensar uma
região pelos seus flagelos é um novo conceito para mim. Li vários artigos e
reportagens relativamente a este novo museu, alguns dos quais podem ser
encontrados no fim deste texto, mas gostaria de destacar três deles que, na
minha opinião, levantam algumas questões importantes.
No blog francês Option
Culture, Jean-Michel Tobelem analisa os três desafios que o museu é chamado a enfrentar – frequentação, impacto territorial e democratização – e argumenta:
1. apesar do museu ter bons acessos e das exposições serem de alta qualidade, o
edifício não será suficiente para atrair o grande número de visitantes com o
qual sonham os que desejam um “efeito Bilbao”; 2. mesmo que haja um grande
número de visitantes, Tobelem duvida que haja uma oportunidade para a criação
de riqueza enquanto não existirem infra-estruturas (hotéis, restaurantes,
comércio, etc.) que irão dar resposta às necessidades desses visitantes e
fazê-los querer ficar mais tempo e gastar mais dinheiro; 3. Tobelem duvida
ainda que a abordagem cronológica da Galeria do Tempo, as actividades
educativas actualmente propostas e as reservas abertas sejam capazes de atrair
os chamados públicos “novos”. Bernard Hasquenoph criticou igualmente as
referências oficiais à democracia cultural e à descentralização, afirmando no
seu artigo Louvre-Lens: la culture comme alibi que a região onde se situa Lens
dificilmente poderia ser considerada culturalmente ‘sinistrada’ e citou o
Presidente do Louvre que disse que Lens é uma cidade numa “… região reputada
pelo seu excepcional dinamismo cultural e a densidade da sua rede de museus”. Por fim, Jonathan Jones do jornal The Guardian
avisa que The Louvre risks losing its magic with Lens move (O Louvre arrisca-se a perder a sua magia com a mudança para Lens) e considera
esta mudança uma prova que “o politicamente correcto enlouqueceu”. Pede aos
museus britânicos para não cometerem o mesmo erro e para continuarem a criar
ligações e promover empréstimos entre as regiões e os museus da capital.
Estes três textos resumem a minha
opinião sobre este assunto. Lens encontra-se a uma hora de Paris de comboio.
Faz, realmente, sentido (em nome da “descentralização e democracia cultural” ou
em género de reparações) fragmentar uma colecção mundialmente conhecida,
visitada por milhares de pessoas que vivem em França ou que vêm do estrangeiro,
para a aproximar de pessoas que poderiam ter facilmente acesso a ela? E se não
for esse o caso de todos (e provavelmente não é), não faria mais sentido tornar
o transporte até Paris mais acessível a todos os interessados em visitar o
museu? Além disso, numa região que parece ter já uma rica oferta cultural, não
faria mais sentido apoiar estruturas existentes e as suas ligações com a
capital? Ou, no caso de ser realmente considerado o momento e local certo para
a criação de um novo equipamento cultural, não seria mais apropriado, também em
termos de competitividade, criar algo único e distinto dessa região? Por
último, se a decisão foi tomada em nome do desenvolvimento regional, será
esperado do museu fazer um milagre sozinho, quando faltam ainda
infra-estruturas complementares básicas?
Imagem retirada da página de Facebook de Pompidou-Metz. |
Isto faz ainda lembrar o caso de
Pompidou-Metz, que abriu em 2010 com
objectivos bastante parecidos, enunciados pelo Presidente Francês na altura, Nicolas Sarkozy: uma
cidade que não fazia parte dos percursos turísticos, a pouco mais de uma hora
de comboio de Paris; uma cidade com uma rica oferta cultural; um museu criado
numa zona previamente dada à indústria, parte de um plano para impulsionar o
turismo; várias auto-estradas que entretanto abriram para facilitarem o acesso.
Mesmo assim, menos de três anos depois da sua abertura, o museu não conseguiu
atingir o seu objectivo de 600.000 visitantes para 2012 (ler aqui).
Alguma coisa correu mal? Haverá alguma explicação para isto? Alguém estará a
avaliar este caso no momento em que abre um museu novo aparentemente com o objectivo
de servir uma visão idêntica?
E com tudo isto,
questiono-me ainda: e Foz Côa? Este é
um dos meus lugares favoritos em Portugal. Visitei os sítios das gravuras
pré-históricas em 1999 e em 2000. Em 2011 regressei, desta vez para visitar
também o museu, que tinha aberto no ano anterior. Apesar deste projecto ter
sido apresentado como um factor decisivo no desenvolvimento da região (e,
provavelmente, consegue mesmo atrair mais pessoas), a verdade é que a única
novidade que encontrei foi o próprio
museu, onde, na tarde de um Domingo de Novembro, era a única visitante.
O café do museu estava encerrado e tive que regressar à vila e enfrentar a tarefa
quase impossível de encontrar algo para comer num lugar que parecia deserto e
que ainda não tem um hotel decente (ou um restaurante) que pudesse fazer as
pessoas considerar passar a noite. Além disto, considerando o tráfego turístico
no Douro, os planos anunciados para criar uma ligação aos barcos ainda não se
concretizaram, isto é, não existe ainda um cais e um teleférico que permitiriam
a esses turistas chegarem ao museu e visitarem os sítios pré-históricos.
Não sou perita em regeneração urbana e só
posso exprimir uma opinião com base em algumas leituras e na minha experiência
como visitante. Parece-me, portanto, que, tal como uma andorinha não faz a
primavera, é preciso mais que um museu para garantir o desenvolvimento
sustentando de uma vila, cidade, região. Há muito a aprender com as cidades que
souberam gerir isto com sucesso. Foi preciso mais que cultura. E foi preciso
mais que afirmações politicamente correctas.
Acima de tudo, é necessário haver um forte compromisso político e a
junção de forças públicas e privadas no sentido de cumprir um claro objectivo
comum. As artes não foram a única coisa que não correu mal em Liverpool…
Mais leituras
Louvre-Lens: helping a mining town shed its image, by Oliver Wainwright (The Guardian,
5 December 2012)
The Louvre comes to town, by Edwin Heathcote (The
Financial Times, 7 December 2012)
L´ouverture du Louvre-Lens, par Didier Rykner
(La Tribune de l´Art, 4 Décembre 2012)
Louvre-Lens: la naissance d´un musée
(Le Monde, 5 Décembre 2012)
Le Louvre-Lens ouvre ses portes au public
(Le Figaro, 12 Décembre 2012)
Le Louve Lens, le succès en dépit des grincheux (Lunettes Rouges, 11 Janvier 2013)
Le Louve Lens, le succès en dépit des grincheux (Lunettes Rouges, 11 Janvier 2013)
Les musées seremettent en scène, para Valérie
Duponchelle (Le Figaro, 7 Décembre 2012)
What's the big idea behind the Pompidou-Metz?, Jonathan Glancey, (The Guardian, 6 April 2010)
Centre Pompidou: Metz gears up for its moment,
Natasha Edwards (Telegraph, 8 May 2010)
Museu do Côa, por António Martinho Baptista (Informação
ICOM.PT, Nº 16, Mar-Maio 2012)
Amigos do Parque e Museu do Côa, por José Manuel Costa
Ribeiro (Côavisão – Cultura e Ciência, Nº 12, 2010)
World-leading urban regeneration expert: “Liverpool has assets most cities would die for”, Liverpool Daily Post 9 Nov 2012
We built way too many cultural institutions during the good years, by
Emiy Badger (The Atlantic Cities, 5 July 2012)
Philharmonie de Paris: a granddesign turned £300m 'bottomless pit', by Angelique Chrisafis (The Guardian,
30 December 2012)
Mais e novos museus, por Joana Sousa Monteiro (Mouseion, 7 Janeiro 2012)
Mais e novos museus, por Joana Sousa Monteiro (Mouseion, 7 Janeiro 2012)
Vídeos
Le Journal du Temps: Lens, le Havre et une seule cause (André Malraux inaugure le premier musée –
Maison de la Culture en 1961)
5 comments:
Entretanto, esclarece-se que o Restaurante/Cafetaria já se encontra aberto desde meados do último Verão.
Museu do Côa
www.facebook.com/museudocoa
Esta é uma boa notícia, obrigada. Isto significa que terei que voltar ao meu sítio favorito... Continuação de bom trabalho.
Maria,
Devo confessar que não tinha os elementos que aqui expões sobre o "novo" Louvre e dos restantes exemplos a não ser do de Foz Côa (que eu também gosto muito)... A criação de novos museus e os motivos/razões que presidem à sua criação é um tema que deveria ter mais relevância do que a actualmente lhe dão. A Joana (é da inteira responsabilidade dela a escolha do tema) aborda o tema de uma forma muito interessante também. Penso que um caso que também não correu muito bem (não em termos de desenvolvimento urbano, mas de ligação do museu com a sua comunidade) foi o MACBA (museu de arte contemporânea de Barcelona)... a área envolvente teve o seu desenvolvimento, mas a ligação museu e vizinhos, do que tive a oportunidade de ler há pouco tempo, não é das melhores.
Vou enviar este teu texto à Joana também.
Alexandre
Obrigada, Alexandre. Para mim, a abertura de um novo museu é sempre motivo de grande alegria e satisfação. O que me preocupa, no entanto, cada vez mais, é os objectivos traçados (sobretudo quando envolvem questões como o desenvolvimento regional ou a regeneração urbana), que soa muito bem quando se cortam as fitas, mas que, quando não existe um compromisso sincero, real, realista para a sua concretização, resulta em instituições que acabam por ter que lutar pela sua sobrevivência. Igualmente preocupante, como digo também no meu texto, é o facto de quase nunca ninguém prestar contas por aquilo que anunciou e não fez.
Nesse sentido, é igualmente interessante o texto da Inês Fialho Brandão, "Os museus da crise", publicado no Património.pt e citado também no meu post "O lobby da ficção cultural, de 12 de Novembro 2012.
Abraço, vamos reflectindo e "inter-linkando".
Maria
Que eu também já tinha lido com interesse e agrado. Realmente é como dizes... a parte do compromisso futuro, do planeamento, da estratégia e da consequente avaliação são normalmente esquecidas em grande parte dos projectos de novos museus! É a cultura de avaliação e responsabilização que ainda nos falta!
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