Conheci a Zeina Soudi no mês passado, graças à
Laurinda Alves. São as gestoras do Dialogue Café em Ramallah e Lisboa, respectivamente. Em duas horas
conseguimos falar de imensas coisas, mas o que chamou em particular a minha
atenção foi a busca da Zeina pela sua identidade. Nascida no Líbano de pais
palestinianos, visitou pela primeira vez a Palestina com passaporte jordano.
Foram precisos mais 10 anos para conseguir o seu bilhete de identidade
palestiniano. A pergunta “De onde és?” foi sempre difícil de responder. Apesar
do contexto palestiniano ter, naturalmente, as suas especificidades, várias
partes na sua narrativa terão um significado especial para muitos de nós e irão
levantar novamente questões sobre cultura, identidade, raízes, ‘nós’ e o
‘outro’. mv
No passaporte de Zeina Soudi. |
“De onde és?” é uma pergunta com a qual fui
muitas vezes confrontada quando era mais nova. Uma pergunta que durante anos me
deixava confusa e que não podia responder sem primeiro pensar. A resposta era
normalmente uma embrulhada. Sou o produto de uma “terceira cultura”. Nasci no
Líbano e vivi em Malta e no Chipre até quase ao fim da adolescência, quando
mudei para a Jordânia. Sou cidadã jordana de origem palestiniana. Mas até àquele
momento, nunca tinha vivido na Jordânia ou estado na Palestina. A Palestina era
apenas uma terra da fantasia sobre a qual falavam os meus pais e eu via na
televisão. Sendo uma estrangeira nesses países, a pergunta “De onde és?” era
uma pergunta que me apavorava, quando deveria ser uma das mais simples
perguntas à qual uma pessoa devesse responder.
Na minha viagem para afirmar e reafirmar a minha
identidade houve muitas reviravoltas, confusões e restrições. A começar pela
pergunta “De onde és?”.
Fiz os dois últimos anos da escola em Amman, e
apesar de ter adquirido um sentimento de pertença, algo faltava ainda. Havia
uma pequena parte em mim que ainda precisava de encontrar para me sentir
completa. Assim, quando acabei a escola, decidi ir à Palestina sozinha e
inscrever-me na universidade. Esta decisão ia ser o início de uma viagem muito
difícil. Foi em 1997.
Como sabem, a Palestina continua ocupada. Para
ir até lá preciso de ter autorização de Israel, o que provou ser mais difícil
do que tinha alguma vez imaginado. Quando finalmente consegui a autorização a
primeira vez, cheguei a meio caminho e depois não me foi permitida a entrada na
fronteira israelita. Quando questionei porquê, responderam “Por razões de
segurança”.
“Razões de segurança”? Que género de ameaça poderia ser por
ir para a universidade estudar Inglês e Literatura? Isto não lhes interessava.
Puseram um carimbo “Entrada NEGADA” no meu passaporte e mandaram-me de volta
para Amman. Essas duas palavras no meu passaporte mudaram a minha vida. Tinha apenas
18 anos naquela altura. Só muitos anos depois descobri porque é que era uma
“ameaça”.
Cheguei tão perto, mesmo assim estava ainda longe.
Lembrei-me de A Letter to His son
do escritor palestiniano Ghassan Kanafani:
“Ouvi-te no outro quarto a perguntar à tua mãe
‘Mamã, sou palestiniano?’. Quando ela respondeu ‘Sim’, um pesado silêncio caiu
em toda a casa. Era como se algo que estivesse suspenso sobre as nossas cabeças
tivesse caído, o seu barulho a explodir, depois – silêncio. Depois… ouvi-te
chorar. Não conseguia mexer-me. Havia algo maior do que a minha consciência a
nascer no outro quarto através do teu choro perplexo. Era como se um bisturi
abençoado estivesse a abrir o teu peito para colocar ai o coração que te
pertencia… Era incapaz de me mexer para ir ver o que se passava no outro
quarto. Sabia, no entanto, que uma pátria distante estava novamente a nascer:
colinas, olivais, pessoas mortas, bandeiras rasgadas e dobradas, tudo isto a
abrir caminho para um futuro de carne e sangue e a nascer no coração de uma
outra criança… Acreditas que o homem cresce? Não, nasce de repente – uma
palavra, um momento, penetra o seu coração dando um novo pulsar. Uma cena pode
lançá-lo do tecto da infância para a dureza da rua.”
Mas não desisti facilmente. Tentei várias vezes
até conseguir a autorização para ir à Palestina.
Maqueta do The Palestinian Museum que começou a ser construído este ano. O museu será dedicado à exploração e compreensão da cultura, história e sociedade da Palestina e dos palestinianos. Podem ler uma entrevista com o director do museu aqui. |
Estava a aprender lentamente quantos bilhetes de
identidade diferentes nós palestinianos somos obrigados a ter. E essas diferentes
identidades determina por que rua podemos passar ou a que cidade podemos ir.
Por exemplo, não me era permitido ir a Jerusalém, de onde é a minha família.
Nós palestinianos somos obrigados a estar separados e a ser categorizados de
acordo com a nossa origem e cor do bilhete de identidade.
Quando começou a segunda Intifada, decidi ficar
na Palestina e acabar o meu curso. Foi quando me tornei numa
“estrangeira-ilegal” no meu próprio país e passei 8 anos numa prisão ao ar
livre, sem possibilidade de viajar, por ter receio que a entrada no meu país me
pudesse ser negada para sempre. Estava determinada em plantar as minhas raízes,
tal como os meus pais, avós e bisavós tinham feito. Apesar de me sentir
claustrofóbica às vezes, e prestes a desistir, no fim consegui o que queria.
Tive direito a um bilhete de identidade palestiniano e tornei-me “legal”. Esta
foi a minha maneira de resistir a esta injustiça. Esta foi a minha maneira de
afirmar a minha identidade. Esta foi provavelmente a razão porque para os israelitas
era uma ameaça.
E aqui
estou ainda hoje, sentada na minha sala de estar com todos os meus amigos,
todos com bilhetes de identidade de cor diferente, passaportes diferentes,
aqueles que nasceram na Palestina e outros, como eu, que nasceram noutros países.
Seguimos todos caminhos diferentes. Mas temos todos uma coisa em comum, somos
todos persistentes. Recusamos todos esta injustiça. Recusamos todos ser
categorizados. Acordamos todos dia após dia e dizemos ‘não’ à ocupação.
E no final do dia, quando alguém me pergunta “De onde és?”
posso dizer facilmente “Sou daqui”.
1 comment:
Obrigada, Maria, por amplificares mais esta voz e por dares sempre tempo e espaço a tantas e tão boas causas. Abraço! Hoje em dia a Zeina é muito mais do que um par ou uma 'colega' de DC para mim. É uma verdadeira amiga que me inspira e que muito admiro. Abraço daqui para ela, também.
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