Monday 7 October 2013

Blogger convidado: "Qual cultura e de quem?", por Farai Mpfunya (Zimbabwe)

Conheci Farai Mpfunya há um ano no Kennedy Center e tive o prazer de partilhar com ele a sala de seminários, e algumas pausas para almoço, em dois verões consecutivos. O que mais gostei nas nossas conversas e ao ouvir os comentários de Farai nas aulas, foi o seu conhecimento sólido do sector cultural no Zimbabwe e no estrangeiro, assim como as suas opiniões ponderadas e equilibradas. Farai fala quando tem mesmo algo a dizer e sinto-me com sorte por o ter conhecido. mv

Cinema Mai Musodzi, Mbare (Foto: Farai Mpfunya)
Mbare, subúrbio de Harare, Zimbabwe.

A maioria dos meninos e das meninas que cresceram neste bairro nos anos 70 estava a cinco minutos de um cinema, de uma biblioteca, de um centro desportivo, de uma igreja e de uma escola. Um ambiente educacional e cultural rico para os pequenos, diriam. Ainda por cima, tratava-se de uma das mais diversas comunidades multi-étnicas. Muitas pessoas de todo o país e além fronteiras queriam viver na próspera capital de um pequeno país rico. Enquanto os residentes locais tinham trazido essas incrivelmente ricas culturas e a sua arte, a infraestrutura da cidade impôs uma cultura urbana e encorajou certo tipo de artes.
Qual Cultura e de quem?

Antes da independência do Zimbabwe do domínio britânico em 1980, Mbare era uma área onde viviam os pretos. Os brancos não viviam aqui, excepto, ocasionalmente, o pároco católico. Os polícias e superintendentes brancos das autoridades locais vinham apenas de manhã e iam-se embora à noite. Viviam nos subúrbios brancos ou em bairros resguardados pelas áreas industriais e comerciais.

Um par de ruas principais ligavam o bairro ao resto do mundo e essas ruas podiam ficar vedadas pela polícia quando os pais do meninos começavam a fazer barulho a propósito dos direitos humanos e das condições de vida na zona. A julgar pela forma como a polícia se comportava, os episódios esporádicos em que perseguiam os pretos com cães, motocicletas e veículos anti-motim, por vezes, para as crianças, parecia ser uma brincadeira de crescidos. Fazia tudo parte da paisagem cultural urbana. Uma pequena comunidade branca de origem europeia tinha governado o Zimbabwe desde 1896 e ‘construído’ uma nova ‘nação’, chamada Rodésia, cultura incluída.
Qual cultura e de quem? 

Nos anos 70, os meninos divertiam-se em Mbare nos cinemas. Viam o James Bond no Gold Finger e o James Coburn em A Man Called Flint e a seguir brincavam aos espiões. Viam cowboys e índios e depois do filme perseguiam índios no bairro. Viam o Bruce Lee em Enter The Dragon e imaginavam-se peritos em artes marciais.

Biblioteca Municipal de Mbare (Foto: Farai Mpfunya)
Na biblioteca local, alguns liam Shakespeare. Na escola falavam-lhes das viagens de descoberta de novos mundos e culturas de Cristóvão Colombo e de David Livingstone. Em casa, era-lhes dito que Livingstone descobriu e deu o nome às poderosas cataratas Victoria em honra da sua própria rainha. Essas mesmas cataratas faziam parte do seu património e eram conhecidas como Mosi-oa-Tunya (Tokaleya Tonga: o Fumo que troveja). Os professores pretos ensinavam nova história e cultura, enquanto os pais e os avós ensinavam a história e cultura antiga.

Nos anos 70, os meninos de Mbare divertiam-se nas piscinas públicas, cujo nome era de um dos primeiros colonos europeus que tinham expulsado os seus antepassados da sua terra. Na piscina clorada, sonhavam e treinavam para se tornarem Mark Spitz, vencedor em 1972 de sete medalhas de ouro e americano..., sem esquecer os fatos de banho Speedo. Jogavam futebol e davam-se uns aos outros novos nomes, como Pele e Sócrates, como os gigantes do futebol brasileiro. Abraçavam a cultura global antes do ‘global’ se tornar moda.
Qual Cultura e de quem?

O Zimbabwe teve eleições harmonizadas em Julho 2013, como acontece, mais ou menos, de cinco em cinco anos. Essas eleições foram declaradas pacíficas por todo o mundo. Muitos zimbabueanos tinham rezado para que prevalecesse a paz, em parte porque, da última vez, as eleições tinham-se tornado violentas em algumas zonas e o desenvolvimento tinha parado. Os zimbabueanos têm também uma genuína cultura de paz. Enquanto o partido no poder, ZANU (FP), estava obviamente eufórico com os resultados das eleições, porque ganharam com grande maioria, alguns ficaram surpreendidos e outros zangados. Mesmo assim, no dia a seguir, a vida no Zimbabwe continuava pacífica como antes das eleições. A vontade dos diversos povos do Zimbabwe tinha sido expressa. Fim da história, certo?

Não para o meu país. Os resultados tinham sido dissecados pela sua justiça e credibilidade. Internamente, o maior partido da oposição contestou tanto a justiça como a credibilidade do processo e dos resultados. Entidades políticas africanas regionais e continentais que tinham enviado observadores para o terreno, foram rápidas em endossar os resultados como uma representação credível da vontade do povo, enquanto alguns poderosos países ocidentais, aos quais não tinha sido permitido enviarem observadores oficiais para o terreno, foram rápidos a pronunciarem-se sobre a credibilidade dos resultados como uma verdadeira representação da vontade do povo… do Zimbabwe.
A cultura do voto no Zimbabwe não os tinha impressionado.

Escola de Artes Visuais da National Gallery, Departamento de Mbare (Foto: Farai Mpfunya)
O actual Presidente do Zimbabwe, um herói da guerra da independência contra o poder colonial, tem tido uma década de confrontos diplomáticos com países do ocidente. Impuseram-lhe sanções, a ele e a uma centena dos seus camaradas, também heróis da guerra de independência contra o poder colonial. Enquanto tudo isto acontecia, os meninos em Mbare tinham novos jogos em espaços não tão bem cuidados. Culpam as sanções. Enquanto uma nova cultura de pobreza penetra o território, reina uma profunda resiliência.

Não se deixando abalar pelos seus críticos, o Presidente declarou vitória nas eleições harmonizadas, tomou posse e avançou para a formação de um novo executivo. Os ministérios foram reduzidos, foi anunciado um novo Ministério do Desporto, das Artes e da Cultura. Muitos no sector cultural e artístico que tinham feito “lobby” durante anos para um ministério separado, ficaram surpreendidos. Tiveram mais do que esperavam, apesar de não saberem muito bem o que fazer com os seus irmãos do Desporto.

Os meninos e as meninas de Mbare estão ansiosos para que os seus equipamentos degradados, no seguimento de anos de sanções direccionadas, sejam renovados, para que o seu bairro seja regenerado. Nova energia irá com certeza aparecer nas suas culturas…. Facebook…. Twitter….
Qual Cultura e de quem?



Farai Mpfunya é fundador e director executivo do Culture Fund of Zimbabwe Trust, a maior entidade financiadora do sector artístico e cultural do Zimbabwe a nível local. Fez parte do Cultural Policy Task Group do Arterial Network que desenvolveu um enquadramento para a criação de políticas culturais pelos governos africanos. Educado no Zimbabwe, na França e na Inglaterra, iniciou a sua carreira profissional na função pública e depois no sector empresarial. Estudou engenharia electrónica e depois gestão de empresas (MBA), antes de se virar para a cinematografia e a gestão cultural. Farai é Chevening Scholar, fellow do Salzburg Global Seminar (Session 490) e do DeVos Institute of Arts Management no Kennedy Center.

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