É curioso que a
primeira coisa que li sobre os protestos na Venezuela não foi uma notícia num
jornal, mas a carta aberta da pianista Gabriela Montero ao Gustavo Dudamel. Nessa
carta dizia:
“Mas não posso permanecer em silêncio
por mais tempo. Ontem, quando dezenas de milhares de manifestantes pacíficos
marcharam em toda a Venezuela para expressar a sua frustração, dor e desespero
perante o total colapso cívico, moral, físico, económico e humano da Venezuela,
e enquanto as milícias armadas pelo governo, a Guarda Nacional e a policia
atacavam, matavam, feriam, prendiam e faziam desaparecer muitas vítimas
inocentes, Gustavo e Christian Vazquez dirigiam a orquestra num concerto que
celebrava o Dia da Juventude e os 39 anos da criação do El Sistema. Estavam a
fazer um CONCERTO enquanto o seu povo estava a ser massacrado.”
Foi esta carta que me fez procurar mais
notícias sobre o que se estava a passar nesse país. Alguns dias mais tarde, um
outro músico venezuelano, Carlos Izcaray, ex-aluno no El Sistema, fazia um
apelo online:
“Através deste meio, gostaria de vos
chamar todos para nos juntarmos e, com instrumentos na mão, repudiarmos e demonstrarmos
fortemente contra a excessiva violência e as violações dos direitos humanos que
estão neste momento a ser perpetuados pelo governo venezuelano contra os seus
próprios cidadãos. Prestemos a nossa homenagem de apoio àqueles que deram a sua
vida em defesa da nossa Liberdade. Este direito básico de todas as pessoas
livres foi agora inequivocamente sequestrado por um governo despótico e
tirânico, que deseja governar através do medo, da intimidação e da
violência.”
Estes dois músicos escolheram viver fora
da Venezuela, provavelmente por razões profissionais e talvez também políticas.
Gustavo Dudamel vive e trabalha também no estrangeiro, mas mantém a sua ligação
ao El Sistema e através deste – ou por causa deste – ao governo do seu país.
Assim, li as declarações apaixonadas de Montero e Izcaray considerando que a
posição a partir da qual exprimiam as suas opiniões não precisava de ser tão
diplomática como a de Dudamel, que deve considerar, para além das suas próprias
opiniões, o contexto em que actua o El Sistema e a sua dependência do governo
venezuelano. Devo confessar, no entanto, que não estava preparada para a sua
decepcionante afirmação “diplomática” ao LA Times:
“Sou músico. Se fosse político, estaria a agir pelo
meu próprio interesse. Mas sou artista e um artista deve agir por todos.”
Dudamel espera (e aceita) que os
políticos ajam pelo seu próprio interesse? E os artistas por ‘todos’? Como é
que agem por todos? Quem são estes ‘todos’? Os políticos que agem pelo seu
próprio interesse estão incluídos?
Alguns dias mais tarde, surgiu uma outra
controvérsia, desta vez em Nova Iorque, quando artistas, activistas, professores e
estudantes associados ao Occupy Museums, GULF Labor e outros grupos fizeram um protesto no Guggenheim Museum a propósito das condições laborais em Saadiyat Island nos
Emirados Árabes Unidos, onde o Guggenheim está a construir o seu franchise.
Duas coisas se destacaram para mim enquanto acompanhava o desenvolvimento desta
notícia. Primeiro, o facto do Guggenheim não ter escondido a cabeça na areia,
permanecendo silencioso e esperando que tudo acalmasse. Ao contrário do que é
prática comum aqui entre políticos e instituições culturais, que se comportam
como se fossem intocáveis e imunes à crítica dos cidadãos, o director do
Guggenheim, Richard Armstrong, emitiu os seus comunicados, tornou clara a
posição da instituição e não evitou nenhuma pergunta (mais leituras no final
deste post). As instituições culturais não estão (não deviam estar)
colocadas algures acima dos cidadãos comuns, fingindo estar a operar num vácuo
confortável e protector, livres de responsabilidades sociais.
A outra coisa que se destacou para mim nesta controvérsia foi descobrir que
a arquitecta Zaha Hadid – que desenhou um dos estádios para o Mundial de Futebol de 2022 no Qatar – sente que
“não é da minha responsabilidade como arquitecta olhar para isto [“isto” sendo
a morte de centenas de trabalhadores imigrantes no local de construção]… Não
posso fazer nada porque não tenho o poder para fazer nada.” (ler aqui)
Pensei na Ucrânia. Em
Dezembro passado, o meu amigo e colega Ihor Poshyvailo escrevia neste blog:
“(…)o ICOM Ucrânia e uma série de museus ucranianos emitiam declarações
públicas condenando a inesperada repressão de manifestantes pacíficos e a
retirada do pacto de associação à União Europeia. O Conselho de Directores dos
Museus de Lviv coordenou as declarações de protesto de vários museus de Lviv.
Um dos mais antigos museus etnográficos da Europa Oriental-Central, o Museu de
Etnografia e Artesanato de Lviv, exibiu um estandarte na sua varanda que dizia
“Apoiamos as exigências do Euromaidan”. Em Kiev, uma dúzia de museus fizeram
declarações públicas, incluindo o Museu da História de Kiev que é gerido pela
Câmara e tutelado pelo seu Presidente, cuja sede foi ocupada pelos
manifestantes. O Museu-Memorial Pavlo Tychyna (perto de Maidan) abriu as suas
portas aos manifestantes e ofereceu-lhes chá, um espaço para descansarem e
programas culturais. (…)”
Provavelmente, nunca
vamos saber os nomes das pessoas que tomaram estas decisões e agiram naqueles
momentos. Pessoas que não são “apenas um músico” ou “apenas uma arquitecta”,
pessoas que não são “apenas funcionários públicos”, mas que são, em primeiro
lugar e sobretudo, cidadãos. Foram cidadãos de um estado autoritário, que
arriscaram os seus trabalhos, a sua segurança pessoal, talvez as suas vidas,
talvez o financiamento público se as coisas tivessem o resultado contrário. Foram cidadãos “anónimos”
que sentiram que tinham o poder e a responsabilidade de fazer algo. E
fizeram-no. Fizeram o que podiam.
Dudamel contradiz-se de
alguma forma quando afirma ao LA Times “(…) no El Sistema criamos não apenas
músicos mas cidadãos melhores”. Se é isto que o El Sistema faz, então as
pessoas mais velhas deveriam mostrar a esses jovens cidadãos que, quando chega
o momento, não se devem esconder por trás da afirmação “Sou apenas um músico”.
Mais neste blog
Mais leituras:
Venezuelan conductor Gustavo Dudamel: 'An artist should act for everybody', The Guardian, 21 Fev 2014
Sistema in the crossfire, by Jonathan Andrew Govias
Guggenheim Responds to Saturday’s G.U.L.F. Protest Action, Hyperallergic, 24 Fev 2014
G.U.L.F. Responds to Guggenheim, Calls on Museum to Open Its Doors to Free Public Assembly, Hyperallergic, 24 Fev 2014
Guggenheim Responds: Guards Paid Competitively, Gugg Abu Dhabi Not Under Construction, No Public Forum, Hyperallergic, 25 Fev 2014
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