Monday, 3 March 2014

Ser "apenas"


É curioso que a primeira coisa que li sobre os protestos na Venezuela não foi uma notícia num jornal, mas a carta aberta da pianista Gabriela Montero ao Gustavo Dudamel. Nessa carta dizia:

“Mas não posso permanecer em silêncio por mais tempo. Ontem, quando dezenas de milhares de manifestantes pacíficos marcharam em toda a Venezuela para expressar a sua frustração, dor e desespero perante o total colapso cívico, moral, físico, económico e humano da Venezuela, e enquanto as milícias armadas pelo governo, a Guarda Nacional e a policia atacavam, matavam, feriam, prendiam e faziam desaparecer muitas vítimas inocentes, Gustavo e Christian Vazquez dirigiam a orquestra num concerto que celebrava o Dia da Juventude e os 39 anos da criação do El Sistema. Estavam a fazer um CONCERTO enquanto o seu povo estava a ser massacrado.”
Foi esta carta que me fez procurar mais notícias sobre o que se estava a passar nesse país. Alguns dias mais tarde, um outro músico venezuelano, Carlos Izcaray, ex-aluno no El Sistema, fazia um apelo online:

“Através deste meio, gostaria de vos chamar todos para nos juntarmos e, com instrumentos na mão, repudiarmos e demonstrarmos fortemente contra a excessiva violência e as violações dos direitos humanos que estão neste momento a ser perpetuados pelo governo venezuelano contra os seus próprios cidadãos. Prestemos a nossa homenagem de apoio àqueles que deram a sua vida em defesa da nossa Liberdade. Este direito básico de todas as pessoas livres foi agora inequivocamente sequestrado por um governo despótico e tirânico, que deseja governar através do medo, da intimidação e da violência.” 

Estes dois músicos escolheram viver fora da Venezuela, provavelmente por razões profissionais e talvez também políticas. Gustavo Dudamel vive e trabalha também no estrangeiro, mas mantém a sua ligação ao El Sistema e através deste – ou por causa deste – ao governo do seu país. Assim, li as declarações apaixonadas de Montero e Izcaray considerando que a posição a partir da qual exprimiam as suas opiniões não precisava de ser tão diplomática como a de Dudamel, que deve considerar, para além das suas próprias opiniões, o contexto em que actua o El Sistema e a sua dependência do governo venezuelano. Devo confessar, no entanto, que não estava preparada para a sua decepcionante afirmação “diplomática” ao LA Times:

“Sou músico. Se fosse político, estaria a agir pelo meu próprio interesse. Mas sou artista e um artista deve agir por todos.”

Dudamel espera (e aceita) que os políticos ajam pelo seu próprio interesse? E os artistas por ‘todos’? Como é que agem por todos? Quem são estes ‘todos’? Os políticos que agem pelo seu próprio interesse estão incluídos?

Alguns dias mais tarde, surgiu uma outra controvérsia, desta vez em Nova Iorque, quando artistas, activistas, professores e estudantes associados ao Occupy Museums, GULF Labor e outros grupos fizeram um protesto no Guggenheim Museum a propósito das condições laborais em Saadiyat Island nos Emirados Árabes Unidos, onde o Guggenheim está a construir o seu franchise. Duas coisas se destacaram para mim enquanto acompanhava o desenvolvimento desta notícia. Primeiro, o facto do Guggenheim não ter escondido a cabeça na areia, permanecendo silencioso e esperando que tudo acalmasse. Ao contrário do que é prática comum aqui entre políticos e instituições culturais, que se comportam como se fossem intocáveis e imunes à crítica dos cidadãos, o director do Guggenheim, Richard Armstrong, emitiu os seus comunicados, tornou clara a posição da instituição e não evitou nenhuma pergunta (mais leituras no final deste post). As instituições culturais não estão (não deviam estar) colocadas algures acima dos cidadãos comuns, fingindo estar a operar num vácuo confortável e protector, livres de responsabilidades sociais.

A outra coisa que se destacou para mim nesta controvérsia foi descobrir que a arquitecta Zaha Hadid – que desenhou um dos estádios para o Mundial de Futebol de 2022 no Qatar – sente que “não é da minha responsabilidade como arquitecta olhar para isto [“isto” sendo a morte de centenas de trabalhadores imigrantes no local de construção]… Não posso fazer nada porque não tenho o poder para fazer nada.” (ler aqui)

Pensei na Ucrânia. Em Dezembro passado, o meu amigo e colega Ihor Poshyvailo escrevia neste blog: “(…)o ICOM Ucrânia e uma série de museus ucranianos emitiam declarações públicas condenando a inesperada repressão de manifestantes pacíficos e a retirada do pacto de associação à União Europeia. O Conselho de Directores dos Museus de Lviv coordenou as declarações de protesto de vários museus de Lviv. Um dos mais antigos museus etnográficos da Europa Oriental-Central, o Museu de Etnografia e Artesanato de Lviv, exibiu um estandarte na sua varanda que dizia “Apoiamos as exigências do Euromaidan”. Em Kiev, uma dúzia de museus fizeram declarações públicas, incluindo o Museu da História de Kiev que é gerido pela Câmara e tutelado pelo seu Presidente, cuja sede foi ocupada pelos manifestantes. O Museu-Memorial Pavlo Tychyna (perto de Maidan) abriu as suas portas aos manifestantes e ofereceu-lhes chá, um espaço para descansarem e programas culturais. (…)”

Provavelmente, nunca vamos saber os nomes das pessoas que tomaram estas decisões e agiram naqueles momentos. Pessoas que não são “apenas um músico” ou “apenas uma arquitecta”, pessoas que não são “apenas funcionários públicos”, mas que são, em primeiro lugar e sobretudo, cidadãos. Foram cidadãos de um estado autoritário, que arriscaram os seus trabalhos, a sua segurança pessoal, talvez as suas vidas, talvez o financiamento público se as coisas tivessem o resultado contrário. Foram cidadãos “anónimos” que sentiram que tinham o poder e a responsabilidade de fazer algo. E fizeram-no. Fizeram o que podiam.

Dudamel contradiz-se de alguma forma quando afirma ao LA Times “(…) no El Sistema criamos não apenas músicos mas cidadãos melhores”. Se é isto que o El Sistema faz, então as pessoas mais velhas deveriam mostrar a esses jovens cidadãos que, quando chega o momento, não se devem esconder por trás da afirmação “Sou apenas um músico”.


Mais neste blog



Mais leituras:


Sistema in the crossfire, by Jonathan Andrew Govias





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