"Some use for your broken clay pots", de Christoph Meierhans, apresentado no Teatro Maria Matos. (Foto: Jan Lietaert) |
A semana passada, fui
ver ao Teatro Maria Matos “Some use for your broken clay pots” com Christoph Meierhans. Inspirado no antigo
sistema do ostracismo em Atenas, onde um líder político que assumisse
demasiado poder podia ser exilado pelos cidadãos, Meierhans deseja propor-nos um novo sistema
democrático, uma nova constituição que, ele acredita, poderá também produzir um
novo tipo de cidadão.
Segui a sua teoria com
interesse e fiquei a pensar: nós, como cidadãos, precisamos mesmo de um sistema
diferente para ‘ostracizarmos” ou 'desqualificarmos' políticos maus ou
incompetentes? Não podemos simplesmente, dentro dos direitos que nos são dados
pelo actual sistema, não votar neles? Mas votamos
neles, uma e outra vez. Porquê? Alguns
de nós não estão suficientemente interessados, outros sentem-se impotentes, outros
ainda acreditam que tudo isto está fora do seu controlo, outros pensam que
podem ter benefícios se se associarem aos que têm o poder. Pensei em particular
sobre este último ponto ao ouvir uma das espectadoras falar apaixonadamente
sobre a luta das classes. Será mesmo uma questão de classes? Como é que se pode
explicar, então, que pessoas de uma determinada classe votem em políticos que
representam outra? Não será porque esperam ter algum benefício, para eles e
para os seus?
O que é preciso para produzir os cidadãos activos,
informados, exigentes dos quais necessita o sistema de Meierhans? Penso que
este é o ponto fraco da sua teoria, o ponto relacionado com os cidadãos em si.
Penso que ignorou ou subvalorizou o poderoso factor humano, aquele que não é
moldado por sistemas, aquele que consegue subverter até o melhor dos sistemas.
Até na Grécia Antiga, onde o ostracismo parecia ser um bom sistema, o factor
humano acabou por agir contra ele ou, melhor, por usá-lo em seu próprio
benefício, acabando por fazer uso do ostracismo para se ver livre de oponentes
políticos. O problema era do sistema?
Poderíamos ser um género diferente de cidadão no sistema
actual, se quiséssemos, se não tivéssemos medo, se estivéssemos preparados para
agir como um colectivo. A consciência e o sentido de responsabilidade
individual são provavelmente importantes para cada um de nós poder dormir
descansado à noite, mas não trazem revoluções nem verdadeira mudança. O poder,
para o bem e para o mal, está no colectivo. Pensei muitas vezes no quão me
senti orgulhosa e tocada quando vi os portugueses a saírem para a rua no dia 15
de Setembro de 2012. Era algo novo para mim, que já vivia neste país há 17
anos. Mas, por muito que tenha acarinhado aquele momento, não tinha ilusões. A grande
maioria daquelas pessoas voltou para a sua vida ‘normal’, segunda de manhã,
aceitando, compactuando, permanecendo silenciosa perante as coisas, aquelas
coisas do costume, que os tinham levado à rua dois dias antes. Mas, ao mesmo
tempo, quando acontece algo assim, as coisas nunca mais poderão ser as mesmas.
Pode não ser muito visível, mas algo mudou e o próximo passo será daí para a
frente. Isto é progresso.
Nos últimos três anos testemunhámos momentos de grande
agitação social em diferentes partes do mundo. E testemunhámos igualmente a
emergência de um novo tipo de cidadão. Dois museus, dois museus de arte,
decidiram focar-se nos protestos. “140 caracteres” e “Objectos Desobedientes” são
os títulos de duas exposições. A primeira encerrou ontem no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, a segunda abre no próximo verão no Victoria & Albert
Museum em Londres.
“140 caracteres” juntou 140 obras da colecção do museu com o objectivo de permitir às pessoas
reflectir sobre os protestos que tiveram recentemente lugar no Brasil e a
mobilização política através das redes sociais (sendo 140 o limite de
caracteres a ser usados num tweet no Twitter). Vejo isto como o resultado do
desejo de ser relevante, um desejo que resultou num olhar novo e imaginativo
através da colecção permanente do museu, permitindo uma nova leitura dos
objectos em si num contexto específico, actual.
“Objectos Desobedientes” abre no V&A a 26 de Julho. Um dos
co-curadores, Gavin Grindon, explicou que “As culturas dos movimentos sociais
não são normalmente coleccionadas pelos museus, excepto gravuras e cartazes.
Queríamos levantar a questão da ausência de outros tipos de objectos
desobedientes no museu.” A exposição irá juntar exemplos de arte e design que foram desenvolvidos
por contra-culturas para comunicar mensagens políticas ou para facilitar os
protestos. A abordagem aqui é diferente daquela no museu de São Paulo. Neste
caso, foi identificada uma lacuna na colecção e o objectivo é preenchê-la, não
apenas porque isto faz sentido no âmbito da política de gestão de colecções,
mas também porque é a natureza da política de gestão de colecções que torna o
museu relevante – ou não – para a actual sociedade. Não deveria ser este o
objectivo de qualquer museu?
“140 caracteres” e “Objectos Desobedientes” são mais do que dois títulos que contrariam a tendência para títulos chatos, descritivos, pouco imaginativos das exposições propostas ao público. São duas exposições que afirmam aquele que é realmente o papel dos museus. São as pessoas por trás delas, artistas e curadores, que, juntamente com outras – escritores, músicos, performers, ensaístas, filósofos – nos desafiam, nos intrigam, nos confrontam e nos confortam, fazem-nos pensar no tipo de cidadãos que desejamos ser, no tipo de cidadãos que podemos ainda ser, especialmente quando as paredes parecem muito altas e a batalha totalmente sem esperança, talvez mesmo perdida.
Exposição "140 caracteres" no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Foto: Karina Bacci) |
Pedra insuflável gigante criada para ser atirada aos polícias e que fará parte da exposição "Disobedient Objects" no V&A. (Imagem retirada de De Zeen magazine) |
“140 caracteres” e “Objectos Desobedientes” são mais do que dois títulos que contrariam a tendência para títulos chatos, descritivos, pouco imaginativos das exposições propostas ao público. São duas exposições que afirmam aquele que é realmente o papel dos museus. São as pessoas por trás delas, artistas e curadores, que, juntamente com outras – escritores, músicos, performers, ensaístas, filósofos – nos desafiam, nos intrigam, nos confrontam e nos confortam, fazem-nos pensar no tipo de cidadãos que desejamos ser, no tipo de cidadãos que podemos ainda ser, especialmente quando as paredes parecem muito altas e a batalha totalmente sem esperança, talvez mesmo perdida.
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